Jovem do Grande Bom Jardim é finalista de prêmio por livro de estreia sobre a vida na periferia
Residente no bairro Parque São Vicente, Rafael Silva é um dos destaques do Prêmio Book Brasil com a obra “Escritos Sobre um Velho em Ruínas”

Toda vida merece um livro. Essa frase – subtítulo da obra “Cartas a um jovem escritor”, do peruano Mario Vargas Llosa – vez ou outra surge no cotidiano. O processo de desenvolver uma narrativa, porém, é complexo e dialoga com muitas variáveis. Uma das mais importantes é a sensibilidade para observar o entorno e transformar em palavras o sentimento do mundo.
Rafael Silva não apenas entende isso como está imprimindo vigor na literatura cearense ao publicar o primeiro livro, “Escritos Sobre um Velho em Ruínas”. Lançada no último mês de dezembro, a obra é finalista do Prêmio Book Brasil – iniciativa cearense de reconhecimento dos talentos literários – em quatro categorias: Autor do ano 2021, Livro do ano 2021, Autor Revelação 2021 e Melhor Livro de Narrativa Curta.
Aos 25 anos e morador do bairro Parque São Vicente, região do Grande Bom Jardim, periferia de Fortaleza, o autor não esconde a satisfação pela conquista. “Quando escritores periféricos emergem, estamos colocando na conta do cenário literário de Fortaleza e do Ceará outros corpos, outras vivências e narrativas”, festeja.
Nesse sentido, “Escritos Sobre um Velho em Ruínas” surge a partir da experiência de Rafael com o avô – retratada no primeiro conto da obra, desenvolvido em meados de 2018. Na história, o personagem herda o nome do parente, Gonçalo, e também as marcas do racismo, da pobreza, do sertão, da rigidez do machismo estrutural, do amor e da saudade. Feita de incontáveis paisagens afetivas, políticas e sociais, a trama ganha corpo de variadas formas.
Com habilidade, o autor transita pelos gêneros conto, carta e poesia, introduzindo também monólogos. “É um livro que poderíamos chamar de ‘multigênero’. Gosto dessa expressão para demarcar que uma história pode ser contada de modos diversos”, explica Rafael. Nascido e criado no lugar onde reside, ele traz todas as memórias dessa parte da capital cearense, fazendo com que as linhas da criação ficcional sejam reflexo de um panorama real.
Não à toa, escrever sobre Gonçalo, esse velho em ruínas, é se conectar a uma figura muito típica das periferias: o homem que migrou do interior para a cidade a fim de encontrar oportunidades. Mas a urbe, conforme o autor, não é feita para esses corpos. Restam somente as margens. “Gonçalo representa isso, essa vivência e o que pode se desenrolar a partir dela”.
Abertura ao outro
Graduado em Psicologia, o jovem escritor diz que a formação universitária ecoa no processo literário, tornando-o muito aberto ao que as outras pessoas mostram e têm a dizer. O título em questão nasce basicamente de uma escuta, de apreciar o quê e como aquele homem, Gonçalo, estava lhe contando a própria trajetória. “Escrevo por afetação, mas isso é algo para além de ser psicólogo. Creio que tem mais a ver com a coragem de ser gente”.
Quanto aos desafios de conceber a narrativa de estreia, Rafael Silva diz que os conflitos foram mais da ordem do interno. Vez ou outra ele se deparava com questões do tipo: “O que é ser escritor? E para que serve esse ofício?”. Assim, tentou vislumbrar como chegaria à cena literária de Fortaleza – confessando estar ainda envolto por inquietações.
“Tem algumas inseguranças que me rodeiam – em parte até eu, de fato, me autorizar a referir-me a mim como escritor. Quem me ajudou muito nesse processo foi a escritora Argentina Castro. Hora ou outra, ela me relembra, ‘tu escreve bem, criatura!’. Tive a honra de ela prefaciar meu livro. Felizmente, as pontes que foram criadas facilitaram e desburocratizaram muito o processo de publicar a obra”.
O autor teve o cuidado de desenvolver um personagem que conversasse com a realidade das pessoas ao redor. Ou seja, alguém capaz de sentir muito e de trazer no íntimo as dores de um homem marcado por realidades sócio-políticas compartilhadas por Rafael, por familiares dele e por pessoas que vivem num Brasil sem maquiagem. O resultado é certeiro: o público diz se identificar com Gonçalo ou conhecer alguém semelhante.
“Escrevo há muito tempo. Mas só nos últimos quatro anos tenho, de fato, dado mais atenção a isso. A escrita me salva. É meu momento de organizar o que está desorganizado e desorganizar o que está demasiado organizado. Como escrevi em diário íntimo: ‘A minha escrita é minha perdição e salvação. Escrevo para ler-me, para decifrar alguma coisa que não consigo desvelar apenas em autorreflexão. Escrever é minha mediunidade’”.
Gonçalo existe
Citada por Rafael, a escritora e antropóloga Argentina Castro posiciona o jovem como um grande talento. Ela ficou encantada com o estilo literário do autor, sobretudo pela maneira como nos apresenta Gonçalo de diferentes formas e olhares. Para a cearense, Gonçalo existe.
“Quem já não viu, não dialogou com Gonçalo, na vida? Gonçalo está em nós. Quem lê, se identifica de imediato. Rafael prende a gente, a escrita dele é sedutora e envolve por unir, num livro de narrativas curtas, o simples e o complexo que habita todos nós, seres humanos”.
Ela igualmente destaca o fato de Silva ser um psicólogo e, como tal, atento à mente e ao comportamento das pessoas – principalmente nessa relação com espaços que, além de físicos, também são sociais. Argentina leu todo o conteúdo da obra como se acompanhasse poemas, algo que destaca no prefácio da edição.
“Logo no primeiro livro, Rafael já nos diz para que veio ao mundo (o literário, em especial) e que caminhos e gêneros ele pode aportar de forma confortável. É justo dizer que ele tem um leque de possibilidades. Houve momentos em que chorei pela força, pelas memórias que, em mim, foram acionadas. Eu também sou Gonçalo, também abrigo um dentro de mim”, emociona-se.
Por sua vez, quando considera a cena literária cearense para além dos espaços hegemônicos de produção artística, Castro percebe ser este um panorama excludente. Quem, feito ela, nasceu e cresceu nas periferias de Fortaleza, precisa ter muita força para construir em si um espírito criativo altamente resistente. “Furar bolhas dá trabalho, leva tempo, gera angústias, rupturas, mas também outras e novas associações”, destaca.
“A periferia não está apartada da cidade. Somos a cidade, criamos a cidade, reconstruímos a cidade com nossa voz, nossas palavras escritas em diferentes suportes. O livro é o mais socialmente aceito (?). Mas as paredes estão aí, cheias de poemas, frases questionadoras, de luta e de resistência. A palavra, escrita ou falada, para nós que moramos do lado de cá, do lado tido como não-nobre (somos nobres, sim!) é uma das mais importantes armas de luta contra tudo que quer nos oprimir, diminuir e massacrar a nossa autoestima”.
De acordo com a literata, a escrita de pessoas que moram em bairros nos quais não chegam políticas públicas e de cidadania está permeada de histórias, rebeldia e gritos. De dores coletivas, mas também de coragem. As mulheres periféricas, de forma específica, para ela estão se movendo, tirando pedras do lugar com muita determinação.
“Não duvidem de nós. Nós, as cis, as trans, as negras, as empobrecidas. ‘Eu não vou sucumbir’ talvez seja nossa frase de guerra. Viva Elza! ‘Nós somos muitos e não somos fracos’ é um trecho de música que me remete a essa luta. A literatura feita não só aqui na periferia de Fortaleza, mas em todas as demais, se resume em luta atrás de luta”.
A potência do Bom Jardim
Ao residir no Grande Bom Jardim – território altamente vulnerável, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) bastante frágil – Rafael Silva, na visão de Argentina Castro, sai (quase) ileso de tudo o que é vivenciado na região. Por outro lado, o território é encarado como uma grande potência em várias linguagens artísticas.
Um dos exemplos é o grupo Nós de Teatro, instalado no bairro, fomentando o cenário das Artes Cênicas. “O mundo está agonizando. As periferias, à medida que o Estado lhe agride e lhe exclui direitos, vão dando nó em pingo d’água. Os jovens artistas estão tendo, como sempre, um papel fundamental nesse levantar cotidiano”, reflete Argentina.
Por isso, “Escritos Sobre um Velho em Ruínas” é um abrir de janelas. Desenvolvido em uma das maiores periferias do Ceará, o livro representa “ar paro nosso pulmão em tempos de Covid-19”.
Semelhante percepção tem a comunicóloga e cineasta recifense Taciana Oliveira. Coordenadora editorial do Selo Editorial Mirada – por onde a obra de Rafael Silva é publicada – ela diz que não há como negar a existência da periferia, sinônimo de criatividade, articulação e resistência. “Nós, como um selo editorial, temos o prazer e a honra de publicar os artistas periféricos”.
Realidades imperceptíveis
Tratando-se do escritor estreante, homem periférico e LGBTQIA+, Taciana demarca que vários aspectos sociais e psicológicos da obra reverberam no leitor um caleidoscópio de afinidades. A tessitura literária de Rafael traduz realidades por vezes imperceptíveis no dia a dia por meio das andanças de Gonçalo no mundo.
“O autor transita nos diversos estilos literários, navegando com precisão na construção de uma prosa poética que se alimenta dos recursos narrativos utilizados no conto e na crônica. Por isso, o processo criativo atinge um público plural, além das fronteiras periféricas”.
Encantada com o envolvimento dos autores e autoras cearenses diante da literatura, Taciana tem observado a construção espontânea de um movimento artístico nas periferias de Fortaleza. Há vigor brotando de cada esquina. Hoje, o Selo Editorial Mirada anda de mãos dadas com essas pessoas.
“Nosso corpo editorial é formado em sua maioria por mulheres periféricas. A escritora e antropóloga Argentina Castro tem participado ativamente dessa curadoria. Nomes como o Coletivo BaRRósas e o próprio Rafael Silva partiram desse olhar. Outro dado importante é a inclusão da acessibilidade em alguns projetos, sempre aos cuidados de Liliane Ripardo, tradutora e intérprete em Libras”, enumera.
Há, assim, uma preocupação com a identidade do autor e com a viabilidade financeira da obra, oferecendo um designer original conduzido pela artista visual e geógrafa Rebeca Gadelha – com o apoio da artista e escritora Lisiane Forte.
Numa outra vertente, a casa associa o trabalho a autores que hoje se encontram fora do circuito periférico, mas engajados a outros tipos de ativismo cultural e social. Nomes como Daniel Glaydson, Iaranda Barbosa, Vitória Andrade, Jaqueline Fraga e Karen de Alencar somam-se a essa trajetória.
Munido de projetos para mais um livro, Rafael Silva está em produção silenciosa e calma. Não há pressa para ele. Quer, inclusive, curtir esse momento de reconhecimento do primeiro trabalho publicado. O resultado do Prêmio Book Brasil será divulgado no dia 12 de março.
Quando questionado sobre qual conselho daria para as pessoas que estão iniciando agora na literatura – sobretudo para as que vêm da periferia – a resposta é direta: “Se autorizem a escrever. Se autorizem a se denominarem escritores. A Palavra é de todas. A Palavra é dada. É sua. A Palavra te serve”.
Escritos Sobre um Velho em Ruínas
Rafael Silva
Selo Editorial Mirada
2021, 56 páginas
R$30 (à venda diretamente com o autor por meio do perfil do instagram e pelo e-mail escritossobreumvelhoemruínas@gmail.com)