O direito ao carnaval
A festa que subverte algumas lógicas do mundo é também momento para exercitar a liberdade, extravasar o riso e se apoderar de si e da cidade

Às vezes, não dá nem tempo findar janeiro. As pessoas passam brilho no corpo, fazem as fantasias mais criativas e saem pela cidade - dos bloquinhos de rua aos equipamentos culturais. Ocupam com cor e festa a cidade porque carnaval, meus caros, é assim praticamente um direito mesmo.
Um direito a subverter a lógica do mundo, a misturar os atores do cotidiano. Um direito às cores mesmo quando a chuva cai e deixa o céu um pouco cinza. Não é tempo feio. Só está bonito pra chover. Então coloca a meia arrastão colorida e vai pra rua. Não tem? Vai assim mesmo, como der.
Carnaval é um direito à liberdade. Um recurso extra para empoderar as mulheres com suas hot paits brilhosas e seus maiôs adaptados para vestir os personagens que couberem na imaginação. Falo delas porque, você há de concordar, as manas dão um show extra na festa que começa muito antes do carnaval oficial. Elas são protagonistas nas ruas, dos blocos que circulam àqueles que concentram mais não saem.
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Carnaval é um direito à alegria, ao riso, ao samba no pé. Não tem idade para exercer esse direito. Vocês viram o idoso de 85 anos que há algumas semanas foi com sua cadeira de rodas curtir os blocos do Benfica? Carnaval é também um direito ao nosso patrimônio imaterial com os batuques do maracatu, à brincadeira. É tempo de lembrar para não levar a vida a sério demais sob o risco de perder a poesia.
O carnaval é pura poesia. Todo ano, rogo por equilíbrio pleno de sol e chuva nos primeiros meses para que a minha escola de samba, a Unidos do Roçado de Dentro, consiga desfilar. É uma escola de agricultores do interior do Ceará, portanto, a chance de boa colheita interfere diretamente no tamanho da festa.
Carnaval é festa, mas é também instrumento na disputa pelos imaginários urbanos. Tempo de misturar gente, de mesclar festas e tradições. É tempo de frevo, de samba, de maracatu. Tempo de misturar e pertencer.
Cecília Meireles dizia que o carnaval é um ato de afirmação da nossa identidade cultural. Nas máscaras e fantasias, transcendemos essas identidades. Carnaval é um direito de misturar-se. A libertar-se das amarras do cotidiano e experimentar novas formas de ser.
Na mesma medida, é tempo de reivindicar os espaços públicos, de ocupar as ruas e as praças com alegria e cor. Alô, mamães, já separaram as fantasias das crianças para ocupar o Passeio Público? Ali já apareceu de Airton Senna a Power Rangers. O centro deserto fora do horário comercial tem todo o potencial para virar festa. E vira!
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Fico pensando que o carnaval também é um direito à diversidade. De gente, de ritmo, de festas. Até o rock e forró das antigas entraram na festa neste ano. Lembro dos bailinhos na infância no interior, da serpentina colorindo o único clube de Várzea Alegre. Lembro do meu avô desfilando em escola de samba e dos meus próprios joelhos doloridos, anos depois, ao refazer o mesmo trajeto que ele na avenida. Lembro dos desfiles de maracatu na gloriosa Domingos Olímpio, em Fortaleza. E penso nas amizades fazendo as pazes com linhas e agulhas para costurar seus sonhos carnavalescos.
Carnaval é mesmo um direito: à memória, à cidade, à celebrar a vida. Que este clima nos desperte a todos para que ganhemos as ruas. Que lembremos todos: na melhor época do ano, não é não. E a cidade é mais nossa do que nunca!
* Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.