As lições de 'Ainda Estou Aqui'

A história que abarca família, perdas, encanto, afeto, dores, violências, brutalidade e esperança, é uma história universal, que passa a produzir identificações por todo o mundo

Escrito por
Alessandra Silva Xavier ceara@svm.com.br
Legenda: O filme é uma memória partilhada, que nos conduz a celebrar os feitos das mulheres que transbordam coragem, talento e luta
Foto: Sony Pictures Classics

Uma obra de arte pode impactar gerações, ampliar a conexão com o que sentimos, oferecer destinos outros ao que experimentamos, ressignificar o vivido, ajudar a apropriar-se da história coletiva e individual. Ao fazer pensar e fazer sentir, um filme pode nos elevar da condição bio ao psíquico, social e espiritual.  

Vivemos uma ditadura militar no Brasil durante o período de 1964 até 1985. Toda ditadura configura-se enquanto supressora de direitos políticos; houve fechamento do Congresso Nacional, perseguição a quem fizesse contraponto ou questionamentos diante do instituído à força e construção de um modo de pensar baseado na submissão e medo.

Toda ditadura visa à manutenção de poder para fins econômicos, que beneficiam apenas uma parcela da população, geralmente a que detém recursos para sustentar a ocorrência do golpe. Evitar o pensamento e a crítica faz parte da sustentação das ditaduras. Por isso, a supressão de conteúdos como filosofia e sociologia dos currículos e o cerceamento de qualquer pensamento crítico, democrático que questionasse o sistema vigente.

Em 1970, Rubens Paiva, engenheiro e deputado federal pelo PTB em 1962, é levado de casa por militares, e nunca mais volta. Sequestrado, torturado e morto sob o silêncio de informações, deixa na sua ausência o legado da sua história junto à sua família.

Eunice, sua esposa, dedica toda a vida a resgatar a história do desaparecimento do esposo e Marcelo, seu filho, escreve um livro autobiográfico em 2015 que dá nome ao filme, onde narra os dilemas, percursos, impactos e reconstruções dessa família ao longo dos tempos. Livro que se torna possível porque em 2012 foi instaurada no país a Comissão Nacional da Verdade, instituída para apurar as violações de direito ocorridas no período da ditadura.

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Em 2024, o Brasil se depara, em meio a um contexto mundial de posturas fascistas e de extrema-direita, com o retorno da sua história no período da ditadura, através do filme de Walter Salles, produzido a partir do livro escrito por Marcelo. Walter, que já havia feito "Central do Brasil", onde retratou, de forma poética e densa, a força dos encontros entre miséria e a dignidade, entre a precariedade e as narrativas de sobrevivência e resistência de tantos de nós, brilhantemente protagonizada por Fernanda Montenegro (mãe de Fernanda Torres, que conquista o Urso de Prata de melhor atriz em Berlim e obtém a primeira indicação de uma atriz brasileira ao Oscar), dirige o olhar de todos nós, para um espelho sobre a brutalidade e a delicadeza de que somos capazes enquanto humanos e nos indaga sobre o que é preciso para sobreviver a uma tragédia. 

A história que abarca família, perdas, encanto, afeto, dores, violências, brutalidade e esperança, é uma história universal, que passa a produzir identificações por todo o mundo.

Na campanha para o Globo de Ouro e para a indicação ao Oscar, lembramos que é preciso financiamento para produzir arte e cultura, que é preciso sutileza para contar histórias, que a arte é linguagem universal, que dramas e tragédias nos constituem, que precisamos tomar posse da nossa história, nossa arte e cultura e ter histórias e produções nossas para mostrar.

Eunice representa todas as perdas e todas as forças que cabem em uma mulher. Na resistência pela vida da família, faz da luta a sobrevivência, não somente por si, mas pela população indígena, pela memória dos desaparecidos e por todos nós. 

Em busca da verdade, tensiona o Governo para que assuma o passado e realize reparações.  A vida de Rubens e milhares de brasileiros não pode ser restaurada, mas a justiça é luz de esperança que protege e atenua o medo e a dor. Um luto por violência, sem reparações, dói muito mais tempo.

Marcelo que é cadeirante, devido a um acidente que inspirou o livro "Feliz Ano Velho" é uma prova da capacidade de reinventar potências e esperanças diante das tragédias e faz do verbo uma arma poderosa para elaborar o traumático.

Fernanda Montenegro ensina sobre a persistência do trabalho e do talento sem ostentação, da delicadeza de uma boa relação entre mãe e filha, da apropriação necessária do narcisismo de vida.

Quando a filha recebe o troféu do Globo de Ouro (primeira atriz brasileira a ser premiada) onde a mãe havia concorrido há 25 anos, não há inveja; há emoção, amor, cumplicidade, ternura, felicidade pela conquista da filha.

Quantas mães e filhas podem experimentar isso, uma comunicação genuína, uma parceria de trabalho com reconhecimento internacional movido pelo amor, pela competência e pela arte? Quantas famílias vibram e apoiam as conquistas dos filhos? Quantas mães e pais inspiram os filhos com a dignidade do seu ofício e sua existência?

É um filme sobre esperança, resistência, o poder da amizade, da família, na necessidade do estudo a serviço da transformação e dignidade humanas, sobre o protagonismo feminino e a necessidade de apropriação histórica para que o mal não se repita invadindo uma nação. Para não ser tolerante com a tortura, com a perda de direitos, com o autoritarismo; para defender a democracia, para compreender de onde viemos e quão frágil e esplêndida pode ser a vida.

Eunice, após dias de vivência encarcerada, no mesmo lugar onde o esposo fora torturado e morto, retorna para cuidar dos seus, de uma vida com uma falta sempre presente. Uma mulher que vivencia delicadezas, dores e forças unidas pela esperança e sonho de justiça. Para dar sentido, apesar de tudo e tanto ao que Fernanda brada: “A vida presta”.

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Fernanda Torres é a personificação da reinvenção e multiplicidade. Quantas almas cabem em uma artista? Apresenta ao mundo outras possibilidades da mulher brasileira: poliglota, elegante, inteligente, gentil, sensível, domínio amplo da cultura mundial e do seu país, rápida no humor e nas interlocuções complexas, defensora intransigente da democracia e dos direitos humanos. Uma embaixatriz do melhor de nós.

Em um momento onde se tenta silenciar o feminino, as Fernandas e a memória de Eunice são resistência e afeto. Mostramos ao mundo que nossa arte é imensa; que a diversidade do nosso povo é um legado que nos apaixona e orgulha; que apropriar-se das narrativas é exercício de poder e marco existencial; que individual e coletivo banham-se na cultura e na arte.

Fernanda nos lembra da força do sutil, da comunicação do silêncio, da fala do corpo, do indizível traumático, do intenso da memória, da pulsação do desejo pela verdade, da salvação pelo cuidado, da força do verbo, do potente da vida. O filme é uma memória partilhada, que nos conduz a celebrar os feitos das mulheres que transbordam coragem, talento e luta. 

Todos os brasileiros temos os impactos das violências em nossa identidade: do período da escravatura, da violência da colonização e da ditadura. A identificação com o agressor, o discurso de pseudopatriotismo, os efeitos do medo e a busca por figuras cruéis e autoritárias, a crença no político salvador, a análise superficial da complexidade política, a busca de um inimigo e a fragmentação de uma identidade histórica que não reconhece sua diversidade são apenas alguns dos múltiplos efeitos.

Reconhecer o que nos compõe e como reagimos a isso é fundamental para saber de que lado da ética e da dignidade humana nos posicionamos e para compreendermos porque as artes e a cultura são atacas nas ditaduras.

Diante de um enredo podemos unir uma nação, para defender que continuemos a existir, para sermos ativos na defesa dos direitos de todos os humanos e  cuidar para que nunca mais um homem se sinta no direito de torturar outros homens e que ditadura nunca mais seja uma realidade. 

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.

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