Direito de voto conquistados após árduas batalhas
Neste momento é bom relembrar passado recente da história do Brasil, onde pobres, negros, mulheres e jovens eram muito mais discriminados, marginalizados, desprovidos de direitos, do que atualmente e como os tiveram conquistados.
No Primeiro Império, o de D Pedro I, recentemente homenageado pelo governo, nenhuma dessas categorias votava e apenas alguns ricos comerciantes e fazendeiros (o agro de hoje), conseguiam algum espaço para influenciar o Poder. Alguns.
Os que queriam mudanças liberalizantes, “comunistas” da época, começaram a lutar por reformas e instituições democráticas contra os conservadores. Porém, só com o segundo imperador, D Pedro II, após muitas lutas, muita pressão, foi aprovada a primeira Constituição Brasileira, em 1824. Esta previa uma Câmara dos Deputados e um Senado, constituída, porém de brancos ricos. O imperador, mesmo assim, continuava com o poder moderador, ou seja, um poder superior aos demais que poderia intervir para obter “equilíbrio” se necessário. É esse poder, acima dos demais, que certos conservadores alegam ser agora dos militares, em decorrência do artigo 142 da Constituição. Os mais conservadores (à direita) sempre estão à procura de uma forma de conservar a sociedade como ela é, uns em cima outros em baixo, ordem.
De qualquer forma, uma constituição em 1824 era uma lufada de ar fresco, ainda que as categorias supracitadas e também soldados, continuassem sem direito a voto. Aliás, quem podia votar para governantes de províncias ou para deputado tinha que ter no mínimo o equivalente a mais de um milhão de reais hoje (cem mil réis na época) e para ser eleito precisava ter quatro vezes mais que isso. Boa parte dos senadores era indicado pelo Imperador, tal como senadores biônicos nomeados pela ditadura militar de 1964, indicados pelos generais para contrabalançar o poder dos eleitos pelo povo; eles não precisavam de nada mais que simpatia e identidade ideológica dos poderosos da Corte.
Os analfabetos continuaram proibidos até a Constituição Cidadã de 1988, que também acolheu os soldados da polícia militar, com poder de voto e ser votado (detalhe irônico essa Carta Magna ser tão atacada por alguns de seus líderes).
Apenas os recrutas que fazem serviço militar obrigatório ficaram sem poder de voto, e assim é até hoje. Como a imensa maioria dos negros era analfabeta, em mesmo com o fim da escravatura, 1888, poderiam exercer esse direito. Negros, além de analfabetos e pobres, só com a Constituição de 1998 puderam efetivamente participar das eleições dos dirigentes do país.
Os pobres, de qualquer raça, imensa maioria dos brasileiros, só adentrariam o cenário político com reformas liberalizantes bem após a Proclamação da República, em 1889. Segundo alguns historiadores teria sido único episódio em que o agro ficaria ao lado da mudança, a favor da Constituição, como vingança por ter a Princesa Isabel assinada a Lei Aurea, libertando os escravos, ou seja, os negros, sobre os quais na prática tinham poder de vida ou morte.
Outra luta de mais de século, de quem queria mudar contra quem queria conservar, foi pela concessão do direito de voto às mulheres, conquistado no Brasil apenas em 1932, por decreto do então presidente Getúlio Vargas, o mesmo que criou a Justiça Eleitoral, hoje tão vilipendiada. Sem dúvida, o direito de voto das mulheres foi o grande passo em direção à conquista da paridade com o sexo masculino em outras áreas, disputa que continua até hoje em dia, em que a prioridade é combate à misoginia, aos violentos que as agridem covardemente.
Ao longo do tempo, o direito de voto desceu dos 25 para quem fazia 18 anos e com a Constituição de 1988 tornaram-se possíveis, e opcionais, para quem tem de 16 a 18 anos. Paralelamente, o voto foi se tornando secreto, ainda que em certas regiões os coronéis do interior procurassem controlar o voto dos mais pobres através de cédulas de papel, que alguns querem trazer de volta. Foi esse mesmo diploma legal quem permitiu o voto dos analfabetos, que eram dezenas de milhões até o final do século XX. A erradicação do analfabetismo só foi se intensificando após outra luta dos que querem mudar, progressistas, Paulo Freire, outro “comunista”, onde já se viu, pela extensão da educação, pela educação como direito de todos, pública e gratuita, que como sabemos também corre risco.
Pode-se perceber o quanto essas discriminações afetaram as eleições no país, sabendo-se que em 1924, na eleição de Prudente de Morais. Foi ele o primeiro presidente eleito da República e nessa eleição votaram cerca de 2% dos brasileiros, um número menor que a população de Niterói ou Sorocaba, praticamente todos homens, brancos, ricos, com mais de 25 anos. A primeira eleição após a Constituição Cidadã levou mais de cem milhões de brasileiros às urnas para escolher o presidente e parlamentares. Hoje, um candidato a presidente nos pleitos atuais pode receber 70 milhões de votos, até mais, bem distante dos 6 milhões que recebeu Jânio Quadros em 1960. Nesse ano apenas 10% da população compareceria às urnas. O Brasil tem hoje mais de 156 milhões de eleitores, dos quais cerca de 20% em média se abstém de votar. Números significativos para uma população de 212 milhões de brasileiros (já descontados os mais de 700 mil mortos pela “gripezinha”).
A exclusão era a regra, lufadas de democracia eram exceções. Os LGTBQ só votavam porque conservadores, os mais radicais no mínimo, não os detectavam em meio da população e, portanto, não tinha como exclui-los. Quanto aos índios, uns poucos entre os alfabetizados e urbanizados só iriam poder votar bem depois da Proclamação da República.
São fatos importantes para lembrar, exigiram muitas lutas entre os que querem mudar, os progressistas, e os que querem conservar a qualquer preço. Lógico que nem sempre se deve mudar. Coisas que dão certo, boas para todos, podem e devem ser conservadas. Mas que dúvida existe que negros, mulheres, jovens, pobres, índios, devem ter o direito a voto? Agora é natural, mas foi preciso muita luta lá atrás. Justo, pois, que cada um deles pense em como se desenvolve a história, para não votar equivocadamente naqueles que querem deter e reverter o processo civilizatório, o iluminismo, a civilidade, o fim da pobreza e da fome, destruir o meio ambiente e contaminar os rios e tantas outras barbáries. E estes são fáceis de se identificar na realidade atual.
Percival Maricato é sócio do Maricato Advogados Associados