Conheça a refugiada de guerra que treinou astro da NBA e agora comanda o Fortaleza Basquete Cearense
Jelena Todorovic é a primeira mulher a treinar um time masculino de basquete no Brasil
Era março de 1991. Tinha início, naquele mês, uma série de guerras e conflitos que modificaram para sempre a história da região dos Bálcãs, no sudeste da Europa. As guerras civis desencadeadas naquele período transformaram significativamente a geopolítica europeia: da antiga Iugoslávia, surgiram países como Eslovênia, Croácia e Sérvia.
Mas não apenas a geopolítica internacional foi impactada pelos temores da guerra. A realidade de muitas famílias foi transformada em meio aos conflitos.
Foi neste cenário conturbado que nasceu, no território da então Iugoslávia, Jelena Todorovic, anunciada como nova treinadora do Fortaleza Basquete Cearense, que disputa a NBB, principal torneio do país na modalidade. A garota precisou desfrutar de sua infância em meio à dura realidade de uma guerra civil que assolava o seu país. Mas foi no esporte que ela conseguiu encontrar alegria em meio ao caos.
“Cresci nos anos 90, um período muito turbulento, marcado pela guerra civil. Jogávamos nas ruas em meio a tempos muito difíceis. O basquete nos trouxe alegria em meio à guerra. Quando não havia comida e bombas caíam, ainda víamos nossos atletas ganhando medalhas de ouro. Isso nos dava felicidade e esperança”, disse Jelena em entrevista exclusiva ao Diário do Nordeste.
As enterradas, os arremessos de três pontos e as bandejas, porém, não eram suficientes para livrar o país daquele situação e nem dar total segurança para as famílias. Por isso, sete anos depois do nascimento de Jelena, os pais da garota decidiram se mudar, juntamente com ela e seus irmãos, para a Austrália, como refugiados de guerra.
“Foi um choque cultural enorme. Dois anos depois, em 2002, a Sérvia foi campeã mundial em Indianápolis. Aquilo me inspirou ainda mais a seguir no basquete”, conta Jelena. Uma garota de apenas nove anos, a 13 mil quilômetros de casa, fugindo da guerra, mas que encontrou no basquete a sua esperança para dias melhores.
A partir dali, Jelena iniciou um relacionamento sério com o basquete, que transformaria para sempre a sua vida. Sua família sempre amou esportes, especialmente o basquete, e isso foi fundamental para que ela continuasse a jogar, mesmo na Austrália.
“Eu, meus irmãos e meus sobrinhos jogávamos. Eu treinava, jogava e, por ser a mais velha, naturalmente comecei a treinar meus irmãos e meus sobrinhos mais novos, todos eles homens. Descobri aí o gosto por ensinar. Percebi que não seria a melhor jogadora do mundo, mas tinha paixão por ensinar”, revelou Jelena.
Para vocês, o futebol é o esporte número um. Para nós, na Sérvia, é o basquete. É uma forma de vida, você nasce dentro disso. O basquete é como sangue, como religião.
Com o passar do tempo e o surgimento do desejo por ensinar basquete, Jelena buscou oportunidades profissionais. Ela teve chances de estágio em grandes clubes, na Austrália, mas revelou que precisou trabalhar em outros empregos (dar aulas de piano e trabalhar em restaurantes) para sustentar o sonho de viver só do esporte.
A primeira grande oportunidade, porém, não foi na Austrália, e sim no seu continente de origem, a Europa, agora não mais assolado pela guerra. Jelena foi convidada por Dimitrios Itoudis, um treinador grego muito famoso, para integrar sua comissão técnica na seleção da Grécia. Ali, ela trabalhou com Giannis Antetokounmpo, um dos astros da NBA.
Mas era a hora de um novo desafio. Não na Oceania, que acolheu Jelena e a família Todorovic. Não na Europa, seu lar, suas raízes, e local de prestígio no basquete mundial, com a Euroliga. Mas sim no Brasil, o conhecido país do… futebol.
ENCONTRO INESPERADO: JELENA TODOROVIC NO FORTALEZA BC
No dia 18 de julho de 2025, esta mesma Jelena Todorovic foi anunciada como a nova treinadora do Fortaleza Basquete Cearense, equipe que disputa o Novo Basquete Brasil (NBB), principal competição do basquete masculino profissional no Brasil. O encontro foi inesperado, e aconteceu inicialmente em Belgrado, capital da Sérvia, país de Jelena.
“Eu estava em Belgrado, acompanhando os treinos de um dos meus grandes mentores, Ioannis Sfairopoulos, treinador do Estrela Vermelha. Thális Braga (presidente do Fortaleza BC) e Felipe foram até lá para aprender e buscar novas ideias. Nos conhecemos em um desses treinos. O treinador me apresentou a eles e pediu que eu os ajudasse”, contou.
Criamos uma boa conexão, e logo depois fui convidada a vir ao Brasil dar minha primeira consultoria. Vim, me apaixonei pelo país e pelo Basquete Cearense, e desde então as coisas evoluíram até chegar ao convite oficial.
O desejo de aceitar o desafio partiu também de um apreço de Jelena pelo Brasil e sua cultura. Ela revelou ao Jogada que, na Sérvia, as pessoas realmente respeitam e amam o Brasil, por ser inclusive um local exótico, mas que conta com grandes estrelas do esporte.
“Na Europa, chamam a Sérvia de o Brasil da Europa, porque nós temos características semelhantes: somos batalhadores nas nossas nações, de maneiras diferentes, temos nossas lutas, mas nós sempre temos essa paixão pela vida, gostamos de sair, ter um bom tempo, não só trabalhar e trabalhar, nós gostamos de esportes, de aproveitar”, completou.
Jelena revelou que, quando criança, apesar do amor pelo basquete, também acompanhava o futebol, e tinha um brasileiro como jogador favorito: Ronaldinho Gaúcho. Ela também citou Petkovic, sérvio que brilhou no Flamengo. Pelé, astro do futebol brasileiro, foi inclusive sua “salvação” para entrar no Brasil em uma viagem na adolescência.
Eu já tinha estado no Brasil antes, em 2009, quando minha família foi assistir a Argentina x Brasil, nas Eliminatórias da Copa do Mundo. Viemos para São Paulo e depois fomos para Buenos Aires, onde era o jogo. Naquela época fiquei três dias em São Paulo. Eu tinha dois passaportes: o da Sérvia e o da Austrália. O da Austrália precisava de visto, o da Sérvia não. Mas descobrimos na hora que o passaporte da Sérvia estava vencido. O rapaz do aeroporto olhou para nós e perguntou: Sérvia tem Petkovic, vôlei, basquete… mas quem vocês acham que é o melhor jogador de futebol do mundo, Pelé ou Maradona? Nós dissemos: Pelé! E ele nos deixou entrar.
Mas o que lhe chamou a maior atenção sempre foi o basquete e, por isso, o fator de escolha foi a qualidade do basquete brasileiro. “Acredito que o NBB é a melhor liga de basquete da América do Sul: tem 20 equipes, é muito competitivo, físico, com grandes atletas e bons treinadores, muitos dos quais conheci em eventos e congressos na Europa”.
PRIMEIRA TÉCNICA DO BASQUETE MASCULINO BRASILEIRO
A contratação de Jelena Todorovic pelo Fortaleza Basquete Cearense foi histórica, com a sérvia tornando-se a primeira técnica da história do basquete masculino brasileiro. A treinadora classifica o feito como “um grande orgulho e uma honra, e, ao mesmo tempo, uma enorme responsabilidade”.
“Minha vida inteira tem sido marcada por ser ‘a primeira’ em muitos lugares. Quando era jovem, não havia referências femininas em quem eu pudesse me espelhar. Então, segui meu próprio caminho, confiando no coração e no amor pelo esporte”, disse Jelena.
Ser treinador de qualquer equipe profissional é difícil, independentemente do gênero. Nunca quis ser contratada apenas por ser mulher. O que sempre busquei foi ser a pessoa mais qualificada para o cargo. Por isso investi minha vida inteira em capacitação: viajei o mundo para assistir a treinos, gastei tudo em cursos, certificações e experiências. Minha autoridade não vem do gênero, mas do conhecimento, da preparação e da capacidade de me relacionar com os atletas.
Já instalada em Fortaleza (CE), Todorovic tem buscado conhecer melhor a cultura cearense. Ela disse estar gostando muito do estilo de vida, das pessoas, do clima tropical, do forró, das praias, da comida, e revelou até, em tom de brincadeira, que está precisando se controlar para não engordar diante de uma culinária saborosa.
Mas se Jelena está sendo impactada pela cultura cearense, ela também quer retribuir. “Meu objetivo é criar uma cultura sólida aqui. Talvez trazer um pouco da minha cultura de basquete da Sérvia e misturar com a cultura brasileira. Quero deixar uma marca que permaneça no clube e na cidade, mesmo quando eu não estiver mais aqui”, disse.
O elenco, na avaliação da treinadora, é muito qualificado, contando com jogadores de diferentes nacionalidades e com experiência internacional. Mas o reforço mais aguardado por Jelena não está na quadra, e sim nas arquibancadas.
“O primeiro passo é atrair a torcida. Quero ver a atmosfera vibrante do futebol brasileiro também nas arquibancadas do basquete. Queremos que a torcida esteja conosco, porque nosso esforço será sempre para deixá-los orgulhosos”, convocou a técnica.
Mas o seu maior sonho não é simplesmente alcançar resultados expressivos com o Basquete Cearense. Nem mesmo é ver as arquibancadas do ginásio lotadas. Mas é, na verdade, ser inspiração, para que, assim como ela, outras crianças possam encontrar no basquete a sua esperança para dias melhores
Queremos inspirar os jovens do Ceará. Que eles olhem para a equipe e pensem: “Quero jogar basquete, não só futebol.” Foi isso que aconteceu comigo quando criança, vendo meu país ser campeão mundial. Quero que meninos e meninas daqui tenham essa mesma inspiração e que o basquete cresça cada vez mais na região.
O Fortaleza Basquete Cearense se prepara, sob o comando de Jelena Todorovic, para o início da temporada 2025/2026. O time disputará o Torneio Abertura, entre os dias 26 de setembro e 4 de outubro, em preparação para o Novo Basquete Brasil (NBB).