De vila à cidade digital: relembre 10 marcos históricos sobre o crescimento de Fortaleza
O aglomerado humano que se adensa ante os verdes mares de Iracema só amplifica o tamanho das dificuldades e desigualdades que nos desafiam
Poucas expressões são tão cearenses, tão nossas quanto dizer que “Fortaleza é um ovo!” ou reclamar que “Aqui todo mundo se conhece e dá conta da vida de todo mundo!”. Todo fortalezense já falou ou ouviu coisas assim, entretanto, os dados divulgados pelo “Censo Demográfico 2022” contrariam essa sensação de pequenez. No levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) Fortaleza se destaca na nossa região e no País.
Nossa cidade passou a antiga capital colonial, Salvador, e se torna a quarta cidade mais populosa do Brasil, primeira do Nordeste. Consolidamos nosso lugar de economia mais dinâmica da região com o maior Produto Interno Bruto (PIB) entre os nove estados nordestinos. Somos a capital nacional com maior densidade demográfica do País, passando São Paulo.
Esses destaques não são, necessariamente, motivo de festa. O aglomerado humano que se adensa ante os verdes mares de Iracema só amplifica o tamanho das dificuldades e desigualdades que nos desafiam. Esse crescimento fica ainda mais relevante diante da trajetória de formação urbana tardia.
Veja também
A vigorosa resistência indígena, a hostilidade ambiental do semiárido, o interesse colonial centrado na região canavieira e força da pecuária no nosso sertão foram anteparos ao projeto de ocupação português do litoral.
Vilas interioranas integradas à Economia do Gado como Aracati, Icó, Crato e Sobral tinham relevância na economia regional, Fortaleza não. Então, entender esse processo passa por muitos momentos marcantes da nossa história, aqui, destacaremos 10 marcos simbólicos, que acreditamos serem norteadores desse processo histórico de crescimento:
1º - 26 de janeiro de 1500 - Vicente Yañez Pinzón chega ao litoral nordestino
Registros aceitos pela maioria dos historiadores indicam que antes de Pedro Álvares Cabral, o espanhol Vicente Yañez Pinzón desembarcou no “Cabo de Santa Maria de la Consolación”. Hoje há uma disputa aguerrida se o local é o cabo de Santo Agostinho (PE), à ponta de Mucuripe, em Fortaleza, ou a praia de Ponta Grossa, em Icapuí.
A evidência histórica mais forte de que Pinzón teria chegado ao Ceará é o mapa de Juan de la Cosa, de outubro de 1500, mais antiga carta náutica com a América do Sul representada, o contorno do litoral nordestino é bem definido, em especial o cearense.
2º - 10 de abril de 1649 – A fundação do Forte Schoonenborch
A era dos fortes viu várias paliçadas serem erguidas e destruídas por povos indígenas até o comandante holandês Matias Beck erguer, à margem esquerda da foz do Riacho Pajeú, uma cerca de pau-a-pique sobre um monte isolado.
A posição estratégica, com vista panorâmica para as hostis terras do Ceará, seria fortificada com estacas de carnaúba dias depois e batizada de Forte Schoonenborch. Estava plantado símbolo de ocupação que, séculos mais tarde, viria a identificar e batizar a vila de Fortaleza.
3º - 13 de abril de 1726 – Fortaleza vira Vila
O crescimento urbano do povoado culminou na sua elevação ao título de vila, onde se tinha um início de autonomia administrativa e política ante a coroa.
A vila de Fortaleza era menos relevante que vilas como Sobral, Aracati e Icó, mas, o simbolismo dessa formalidade administrativa concedida pela coroa até hoje é marcada como aniversário da cidade.
4º - 17-03-1823 – Separação de Pernambuco, elevação à cidade e à capital
Em 1799 o Ceará se separa de Pernambuco e Fortaleza assume a centralidade administrativa da província, em 1823, Pedro I, buscando uma centralidade cada vez maior no império recém independente eleva as capitais das províncias à categoria de cidade.
Assim, marcando o papel impositivo de centralidade Fortaleza é consolidada como capital, centro urbano ligado ao poder central e renomeada como Fortaleza da Nova Bragança, nome de curta validade.
5º - 12 de abril de 1861 – O algodão cearense no Mundo
A data do início da Guerra de Secessão dos EUA marca a explosão econômica do comércio de algodão, Fortaleza supera Aracati como porto. Fortaleza se torna a sétima maior população urbana do País. O excedente do algodão traz a cidade medidas de higienização social e de saneamento e modernização seguindo padrões estéticos europeus.
6º - 29 de junho de 1871 – A estrada de ferro de Baturité
Continuando a marca de modernização da virada do século 19, chega a Fortaleza o maior símbolo da modernidade industrial: a ferrovia. A Estrada de Ferro de Baturité demonstra o poder do café mesmo na terra do algodão, o escoamento da produção no Mucuripe posicionou Fortaleza como a mais importante cidade do Ceará e impulsionou o desenvolvimento industrial da região.
7º - 24 de maio de 1883 – A liberdade e a terra de Luz
Quatro anos antes de a abolição ser oficialmente decretada em todo o País, Acarape liberta seus cativos, Fortaleza a segue e se torna a primeira capital da província a renegar o regime escravocrata. Antes de nossa Data Magna estadual (25 de março de 1884) temos nosso dia maior municipal, nossa abolição.
8º - 15 de agosto de 1894 - A Padaria espiritual e as letras do Ceará
A Academia Cearense de Letras (ACL) é a mais antiga das Academias de Letras existentes no Brasil, criada três anos antes da Academia Brasileira de Letras. Fortaleza era o centro da revolução nas letras cearenses, da criação da Padaria espiritual, dois anos antes, à ACL, a cidade foi destaque no movimento literário e intelectual nacional.
9º - 4 de junho de 1937 – Pouso de Amélia Earhart em Fortaleza
Antes mesmo da II Guerra Mundial começar os preparativos do conflito já destacavam Fortaleza e Natal como centros estratégicos das rotas aéreas que dominariam os movimentos militares de 1939 à 1945.
Em 37, a lendária Amélia Earkhart, durante sua tentava tentativa de dar a volta ao mundo a bordo de um Lockheed L-10E Electra pousou e ficou hospedada na cidade, meses depois ela desapareceria no oceano e viraria lenda. A aventureira destacou como “a cidade de Fortaleza respirava Paris em suas ruas e praças. Tudo lembrava a França.”
10º - 01/06/2021 – Fortaleza Digital
Na data de instalação do 16° cabo submarino de fibra óptica de Fortaleza, conectando o Brasil à Europa, Fortaleza se destaca como o ponto de maior entroncamento de cabos de fibra óptica no mundo.
O cabo liga Fortaleza à Portugal, tem 6 mil km de extensão e teve investimento de cerca de 1 bilhão de reais, sendo o primeiro de alta capacidade a ligar diretamente o Brasil à Europa colocando Fortaleza numa posição estratégica ao mundo 4.0 e a era da internet das coisas.
Veja também
Contexto histórico
História é escolha, é seleção, mesmo pautada por método e sistema científico, passa pelo crivo do olhar pessoal. Dessa forma a escolha de dez pontos que marcam a trajetória de Fortaleza é uma tarefa inglória.
As referências a Fortaleza que selecionei se iniciam com a chegada europeia e segue com a conexão com o estrangeiro, com os padrões de civilidade dos impérios coloniais/industriais. Onde estão as referências decoloniais, os pensamentos do sul, a história visto de baixo, o olhar contra hegemônico?
Essa seleção é também uma percepção de que a Fortaleza, quarta cidade do Brasil, é um símbolo do empreendimento colonizador, de como as resistências das terras e gentes foram vencidas por um olhar centralizador imperial, eurocentrista, de uma civilidade, uma urbanidade pensada como projeto de poder e de controle. Um “case” de sucesso!
Fortaleza é uma confluência das contraposições entre poderes locais, regionais, nacionais e globais. Decifrar a “loura desposada do sol” é de grande relevância para entender o Brasil que se queria e o que se efetivou. Essa cidade provinciana e internacional, algo de carola moralista e pudica, algo de “yuppie” cosmopolita e ousada, a quarta cidade do país é um caleidoscópio.
Todas as semanas estamos discutindo as dificuldades de lidar com nosso passado, nosso patrimônio e nossas heranças. O IBGE nos deu números, precisamos pensar nossos destinos a partir desses dados.
O principal foco desta coluna é pensar nossa identidade ao cruzar memória, historiografia e ciência histórica, refletir nosso passado e nossos caminhos para o que há de vir, dessa forma pensar essa cidade que se agiganta mas que está para além dos números é um desafio que se coloca aos historiadores de hoje e aos que virão.