O palácio de Fortaleza que foi erguido para virar presente de amor

A história de Plácido e Pierina é como a história de milhares de amores cearenses

Legenda: Imponente prédio entre a Santos Dumont e Costa Barros já não existe mais
Foto: Acervo Digital Fortaleza

A história é repleta de declarações e celebrações ao amor romântico e à vida conjugal. Poesias, romances e músicas inspiram ou provocam relacionamentos e conexões carnais das mais diversas. A arte e a cultura humana sempre estiveram intimamente ligadas à celebração do amor ou de sentimentos, vazios e dores ligados à ele. Entretanto, entre tantas formas, efêmeras ou permanentes, de declarar o sentimento amoroso, a arquitetura é uma das mais grandiosas. Construções mundialmente famosas foram pensadas por corações apaixonados ou para atingir, impressionar e conquistar a pessoa amada. Sempre fomos adeptos, enquanto humanidade, à grandiosidade e ao exagero como afirmações de nós e do que é nosso.

Dos míticos Jardins Suspensos da Babilônia ao Taj Mahal, o amor se fez grandioso na mão de poderosos. O primeiro, uma das sete maravilhas do mundo antigo, teria sido um suntuoso gracejo à amada do rei Nabucodonosor, saudosa da natureza de sua terra natal. Quantos recursos e quantas vidas carregaram o peso desse amor? O segundo é um dos maiores monumentos da humanidade, construído como um mausoléu à memória do amor do imperador Shah Jahan por sua esposa - um túmulo que virou poesia edificada.

Casais apaixonados vão em massa à Ponte dos Cadeados, em Paris, prender simbólica e materialmente seu amor. É uma necessidade de externar fisicamente o intangível, cadeados, alianças e palácios tem o mesmo objetivo: materializar o etéreo, humanizar o divino, tornar eterno aquilo que não dura. É a crença que estruturas materiais guardam emoções e sentimentos e se impregnam de memórias.

Em Fortaleza, não seria diferente. Nossos amores são igualmente marcantes, e nós também temos, ou tivemos, nosso monumento ao amor.

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Plácido Carvalho era um comerciante de destaque na cidade e seu negócio o levava constantemente à Europa. Em Paris - claro que seria em Paris -, ele conheceu a italiana Maria Pierina Tacconi Rossi. Enamorado, o casal fez planos, mas a dama milanesa só aceitaria partir para os trópicos se fosse para morar em um palácio. 

Surge então o Palacete do Plácido, um “castelo europeu” em plena Avenida Santos Dumont, no bairro Outeiro, hoje Aldeota.

Plácido, enriquecido pela crise dos produtos importados e o aumento de preços provocados pela I Guerra, tem recursos para atender ao desejo da amada. O projeto do artista plástico e engenheiro João Sabóia Barbosa torna real o palácio, cópia de um prédio de Florença, e convence Pierina a vir para o Ceará. 

O casal parece ter tomado gosto pela construção de grandes obras e continuou no ímpeto da modernização europeia de “embelezamento” e “civilização” da cidade a levantar suntuosos e requintados edifícios. O Theatro Majestic Palace, na Praça do Ferreira, o Cine Moderno, o prédio onde hoje fica a Farmácia Oswaldo Cruz e, por fim, o famoso Excelsior Hotel. Prédios que emolduraram a Fortaleza do século XX e têm o amor desse casal como gérmen.

Legenda: Projeto do artista plástico e engenheiro João Sabóia Barbosa copiou um prédio de Florença
Foto: Acervo Digital Fortaleza

Pierina e Plácido viveram no palácio de 1917 a 1933, quando o adoecimento do comerciante levou a família a viver no Excelsior, mais acessível aos cuidados médicos no centro da cidade. O prédio entre a Santos Dumont e Costa Barros ficou apenas como um marco do amor dos dois. Com a morte de Pierina, o castelo foi vendido e a construção, única e já adotada pela comunidade, foi demolida para abrigar a banalidade de um supermercado. O poder da riqueza se dobrou ao desejo de amor e, por fim, este se rendeu ao desejo de consumir/lucrar.

O pior é que nem construído o mercado foi; a pressa da destruição especulativa garantiu que o Castelo dos Carvalho ficasse apenas na lembrança dessa Fortaleza antiga. O ato de amor do cearense pela italiana não se converteu em ato de amor pela cidade pois, em muitas cidades, essas histórias privadas viram paisagens coletivas, espaços do conviver que comportam e passa a abrigar as experiências afetivas da comunidade.

As críticas e apelos da imprensa, de políticos e da população não salvaram o enamorado prédio. O espaço foi por um bom tempo apenas um vazio, como um amor perdido, uma mera lembrança do vivido e do sentido em meio à privilegiada Aldeota. Poucos prédios de Plácido de Carvalho e daquela Fortaleza resistiram à gana da especulação imobiliária e ao descaso patrimonial de nossa política.

Hoje, eu levo meu filho para brincar na Praça Luiza Távora – local original do Palácio e que abriga atualmente a Central de Artesanato do Ceará (CeArt) –; aproveitamos as feiras e eventos que reúnem a população no local. Os belos castelinhos que serviam de moradia aos empregados e ainda enfeitam o local dão o gostinho do que seria aproveitar enquanto espaço público o poder arquitetônico que o amor foi capaz de produzir. Mas muitos que hoje vivenciam o local não sabem o que ali existia.

... AO AMOR COLETIVO

A historiadora Mary del Priore, em seu “História do Amor no Brasil”, demonstra como o sentimento não é pensado como seu valor em si, mas como o ato de amar e de manifestar esse amor é administrado pelo Estado, pela sociedade e pelos indivíduos. Edificações ligadas ao amor demonstram o poder de mobilização do sentir e como isso se patrimonializa, saindo do individual para o coletivo.

Fortaleza é uma cidade apaixonante, mas nossos amores se voltam realmente à cidade e seus lugares de amar? A destruição do patrimônio cultural edificado traz um prejuízo para a memória coletiva e quebra as conexões dos indivíduos com suas paisagens, deixando ainda mais efêmero um sentimento que é por natureza tão fugaz.

A destruição desses prédios é como um amor não correspondido entre a cidade e sua gente, e o abandono dos espaços afetivos parece não compreender que os lugares guardam mais que valores econômicos, imobiliários e materiais. Guardam experiências e se tornam simbólicos de uma comunidade, virando memória coletiva.

A história de Plácido e Pierina é como a história de milhares de amores cearenses. O amor romântico de um casal não precisa ser eterno para ter valido a pena e pode ser marcante mesmo quando desfaz. O amor se mantém mesmo quando é apenas memória. Já o amor patrimonial da coletividade pela cidade não sobrevive no vazio, não preservar o patrimônio da cidade é fatal para as identidades e conexões.

Um casal que no Dia dos Namorados voltou ao seu lugar especial, para recordar nos cheiros, nos gostos e nos toques o amor que os lugares guardam, pode entender que a história do amor de uma cidade passa pelo amor aos espaços. E nossa História está além dos fatos e datas, está no amar e ser amado, seja no privado ou no coletivo.



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