Rosemberg Cariry celebra 50 anos de cinema como farol para o Ceará

Trajetória do cineasta é marcada por pioneirismo e atuação aguerrida em prol da estruturação da produção audiovisual.

Escrito por
João Gabriel Tréz joao.gabriel@svm.com.br
(Atualizado às 10:09, em 03 de Novembro de 2025)
Legenda: Cineasta Rosemberg Cariry no set do filme "Lua Cambará", que foi recentemente restaurado com o apoio do Museu da Imagem e do Som do Ceará.
Foto: Cariri Filmes / Divulgação.

Os 50 anos de cinema do cineasta cearense Rosemberg Cariry, celebrados neste 2025, são também de lutas pelo desenvolvimento do audiovisual do Ceará e do Brasil e de reverência à cultura feita pelo povo.

Com mais de 10 longas e dezenas de curtas-metragens realizados ao longo da carreira, o diretor, roteirista e filósofo partilha com a coluna memórias dos anos iniciais de formação e atuação na área, avalia os desafios que passaram e os que ainda se impõem e adianta planos de celebração da trajetória, que incluem restauros de longas e mostra de retrospectiva.

Veja também

Encontro de culturas

Nascido no município de Farias Brito em agosto de 1953, Rosemberg credita à efervescência da região do Cariri cearense a base na qual montou a própria carreira. As experiências no Crato e em Juazeiro do Norte, por exemplo, permitiram “vivência mais intensa com os grandes da cultura”.

Entre eles, figuras como Patativa do Assaré, Mestre Noza, dona Çiça do Barro Cru, Cego Oliveira, Irmãos Aniceto “e tantos outros”. Elementos “musicais, dramáticos, espetaculares, operísticos-populares” destes grandes influenciaram e fascinaram o diretor quando era ainda menino.

Foto em preto e branco do cineasta Rosemberg Cariry, que está de blusa branca e usa uma câmera de cinema.
Legenda: Rosemberg Cariry estreou na direção em 1975 e celebra 50 anos de cinema em 2025.
Foto: Divulgação.

“Ao mesmo tempo, a gente via muito cinema”, avança. Dos filmes projetados pelos “cinemeiros ambulantes” ainda em Farias Brito ou pelos padres nas paredes da igreja, o encantamento foi se alargando.

A esses contatos iniciais, Rosemberg somou produções estrangeiras de vanguarda do começo do século XX e ainda obras brasileiras de diferentes épocas, como “Vidas Secas” (1963), “Mineirinho Vivo ou Morto” (1967) e “O Ébrio” (1943).

“É possível fazer cinema”

Foi o cinema do baiano Glauber Rocha, no entanto, que mais moveu Rosemberg na época, em especial “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969).

“Ele teve um impacto muito grande sobre mim, vi aquilo como uma manifestação profunda dos autos populares, me pareceu muito próximo do universo do Juazeiro. Pensei ‘é possível fazer cinema’. Ali estava o Brasil representado de uma forma bem profunda”
Rosemberg Cariry
cineasta

A formação oficial do cearense passou, ainda, pelos seminários franciscanos, em Juazeiro, e pelo Sagrada Família, no Crato, onde acessou obras de literatura e história do Brasil e do mundo. 

Testemunhar o encontro entre as culturas ditas “popular” e “erudita” fez com que Rosemberg se atentasse às proximidades entre as diferentes expressões.

“Percebi, no estudo da história e sobretudo da cultura, as permanências de muitas tradições culturais e artísticas naquilo que a gente chamava de cultura popular. Comecei a ver nisso tudo certa universalidade, o que terminou influenciando o cinema que comecei a fazer”, aponta.

Além da produção audiovisual, ele também se somou a diferentes movimentos que ocorriam no Ceará ao longo dos anos 1970, como o Grupo de Artes Por Exemplo e o Nação Cariri. Neles, jovens e artistas da região se reuniam para produzir eventos, músicas, literatura e outras expressões, em mobilizações também políticas.

Desafios e conquistas 

Foi nesse contexto que as primeiras experiências de Rosemberg no audiovisual se deram, mas o marco de estreia na direção veio em 1975, com o curta “A Profana Comédia”, filmado em super-8, tecnologia mais acessível na época.

Apesar de dificuldades políticas e tecnológicas, o diretor e outros realizadores da época, como o parceiro de produções Jefferson de Albuquerque Jr., insistiam na arte, em especial registrando as expressões e tradições da região do Cariri.

“Aqui não tinham escolas de cinema, não tinham equipamentos, os laboratórios (para revelação dos filmes) todos ficavam no Rio e em São Paulo. Ou seja, fazer cinema era muito caro”, resume.

A concretização dos filmes era possível justamente a partir de contatos com cearenses que haviam se estabelecido em outros estados, como o próprio Jefferson, Hermanno Penna e Pedro Jorge de Castro entre outros.

“No começo da década de 1980 rodamos alguns filmes já em 16 mm, mas é só em 1984 e 1985, com lançamento em 86, que faço o ‘Caldeirão de Santa Cruz do Deserto’, o primeiro longa documental do Ceará”, segue.

Dirigido por Rosemberg, ele reconta o massacre sofrido pela comunidade liderada pelo beato José Lourenço por parte do poder público nos anos 1930, no Crato. Como obra seminal, o longa encapsula o pensamento daquela geração.

Veja também

“A gente tinha um pé na cultura expressa pelo povo e ao mesmo tempo bebia em fontes que iam do cinema de vanguarda soviético da década de 1920 ao Cinema Novo e o neorrealismo. Era uma mistura grande e uma busca de linguagem funcionando em coletivo”, reflete.

Como marco incontornável da produção cearense, o longa de estreia de Rosemberg representa uma conquista central na história do Estado. “Foi um momento muito importante e decisivo porque marcou uma ruptura: o filme foi para festivais, circulou em outros países. Uma geração inteira se sentiu empoderada”, considera.

Lutas de ontem e lutas de hoje

Aliado à expressão criativa e à reverência à cultura do território, outro ponto crucial da trajetória de Rosemberg já se firmava também nesse contexto: o da mobilização constante em prol do desenvolvimento descentralizado do audiovisual.

“Uma coisa importante foi a compreensão da necessidade de luta para mudar as condições. A gente começou a se organizar”, ressalta o diretor. 

A fala no plural evidencia a coletividade desses movimentos. “Foi com a participação de muitas pessoas ao longo de anos, com o Vladimir Carvalho, Hermanno Penna, Wolney Oliveira, o pessoal de Pernambuco, da Bahia e do Pará”, lista.

Entre o final dos anos 1970 e a década de 1980, ele e outros nomes da mesma geração passaram a fundar associações e outras entidades de classe, buscando fortalecer demandas como descentralização de recursos para além da região Sudeste, por exemplo. “A luta era sempre a mesma, equalizar a produção”, resume.

Os frutos, Rosemberg celebra, já são visíveis: “As gerações que estão fazendo cinema ou surgindo já vão caminhar em avenidas mais largas. A gente teve esse papel de abrir pequenas veredas na caatinga, pouco a pouco alargando. Fico muito contente em ver o Brasil inteiro produzido”.

Ainda que celebre o panorama atual para o audiovisual brasileiro, o realizador lembra que lutas seguem e outras surgem. Como mobilizadora contemporânea, ele ressalta no contexto estadual o papel da Ceará Audiovisual Independente (Ceavi).

Veja também

A associação de produtoras locais tem realizado “campanha intensa” por políticas públicas no Estado e pela implementação da Ceará Filmes — empresa pública de desenvolvimento do setor que é “semente” das primeiras mobilizações ocorridas localmente.

Já a nível nacional, destaca a Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste (Conne), que atua detidamente em prol da descentralização geográfica e regionalização de políticas públicas.

“Esse momento ainda é difícil. O acesso a verbas para produções ainda é difícil, a Ancine ainda não desabrochou uma política de desenvolvimento mais larga e mais eficiente, os editais estaduais são pequenos, difíceis também. Tem que se pensar um novo modelo com sustentabilidade”
Rosemberg Cariry
cineasta

Uma nova luta ressaltada pelo diretor é a regulamentação de streamings no Brasil. Pelo relatório do projeto de lei referente ao tema, as grandes plataformas terão benefícios como menor contribuição a ser paga e maior possibilidade de dedução do imposto. 

“A questão do streaming como está proposta é tirar dinheiro do povo e financiar as plataformas. É desinteressantíssimo para o cinema brasileiro, um desestímulo”, avalia.

“É momento de repensar muita coisa. É preciso que se pense numa política de sustentabilidade para o audiovisual. Quando nós propusemos a Ceará Filmes, era para que ela fosse esse instrumento de criação de políticas sustentáveis”, defende.

Filmografia preservada

Ao longo dos últimos anos, uma série de longas da carreira de Rosemberg começaram a ser restaurados pelo Museu da Imagem e do Som do Ceará, numa ação com apoio do MIS, do Instituto Mirante, do Museu de Arte Moderna do Rio e da Iluminura Filmes.

A lista inclui “O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto” (1986), “Corisco & Dadá” (1996) — que chegou a ser relançado nos cinemas — e, mais recentemente, adicionou “Lua Cambará” (2002).

Os dois últimos chegaram a ganhar exibições na Mostra de Cinema de São Paulo em 2024 e neste ano. 

Foto escura e dramática da atriz Dira Paes, de cabelos longos e escuros, no filme 'Lua Cambará'. Ela está vestindo uma roupa de época escura com um detalhe de gola dourada, olhando para a frente com uma expressão séria. Ao fundo, fora de foco e ligeiramente desfocado, está a cabeça de um cavalo branco ou de cor clara. A iluminação é baixa, criando uma atmosfera noturna ou sombria.
Legenda: "Lua Cambará", protagonizado por Dira Paes, teve a versão restaurada exibida na Mostra de Cinema de São Paulo e deve entrar no catálogo da plataforma Siará+.
Foto: Divulgação.

“Eles estão lá ao lado de grandes clássicos do Brasil e internacionais, começam a aparecer como ‘clássicos do cinema brasileiro’. Isso é importante não só pessoalmente, mas para uma geração inteira que ousou fazer cinema”
Rosemberg Cariry
cineasta

Além dos três longas citados, “A Saga do Guerreiro Alumioso” (1993) deve ser o próximo a ser restaurado. À coluna, o diretor adianta o plano de realizar em 2026 uma mostra de retrospectiva de carreira com todos os longas e curtas selecionados.

A preservação audiovisual é tema caro para Rosemberg. Alguns dos filmes dirigidos por ele, por exemplo, foram frutos da união de registros de épocas diversas, caso do documentário “Patativa do Assaré, Ave Poesia” (2007).

“Eu registrei Patativa em super-8, em 16mm, 35 mm, em betacam, de todas as formas, até a morte dele. Foi aí que eu juntei todo esse material e fiz o longa”, explica. “Do Patativa do Assaré, foram preservadas quase 100 horas de material, é significativo”, acrescenta.

Uma fotografia em preto e branco (ou sépia clara) mostra três pessoas em um ambiente externo, com folhagem e árvores desfocadas ao fundo. À esquerda, um homem idoso, Patativa do Assaré, usa óculos de sol escuros e uma camisa xadrez de manga curta. Ao centro, uma mulher idosa, Dona Belinha (esposa de Patativa), está entre os dois homens. Ela tem cabelos claros presos, usa uma blusa estampada e está olhando diretamente para frente. À direita, um homem mais jovem, Rosemberg Cariry, com bigode escuro e cabelo na altura da orelha, usa uma camisa clara abotoada.
Legenda: Registro de Rosemberg Cariry (à direita) com Patativa do Assaré (à esquerda) e Dona Belinha (no centro), que compõe o documentário dirigido pelo cineasta sobre o poeta.
Foto: Jackson Bantim / Divulgação.

Atento à questão, o cearense buscou distribuir cópias, negativos e internegativos das obras e registros em diferentes instituições do Brasil e do mundo, como a Cinemateca Brasileira, além de atualizar tecnologias e digitalizar os filmes.

Apesar dos esforços e exemplos positivos, outros vários materiais se perderam ao longo do tempo: “Tinha vários registros  de romarias, de festas da cultura popular, que terminaram se degradando”. “Para uma pequena produtora, manter um acervo é uma coisa muito cara”, afirma.

Até mesmo para os restauros realizados pelo MIS, Rosemberg lembra da dificuldade para localizar os negativos das produções. O cearense destaca a ajuda de Hernani Heffner, gerente da Cinemateca do MAM Rio, neste processo. Foi ele quem conseguiu resguardar negativos de “Corisco & Dadá” e “Lua Cambará” há cerca de 10 anos, possibilitando o trabalho de restauração.

“A gente já conseguiu restaurar (os longas) com alto nível e depois serão os super-8, os 16mm, esses registros todos, na medida em que for possível, porque o MIS está fazendo isso com filmes de muitos outros realizadores do Ceará”, avança.

“Obras de Pedro Jorge, Nirton Venâncio, Francis Vale, filmes da década de 20, aquele filme de Lampião do Benjamim Abrahão… Daqui a pouco nós vamos ter um significativo acervo audiovisual cearense restaurado”, celebra Rosemberg.

Isso, reforça o cineasta, não é regra — e por isso merece ser ressaltado e celebrado. “O MIS já serve de modelo no Brasil, e não só porque tem os equipamentos mais sofisticados”, avalia, ressaltando a “dedicação” e “paixão pelo cinema” da equipe da instituição. 

“Com digitalização, esses acervos vão ficar em várias instituições, a preservação fica mais fácil, segura. Pela primeira vez, nós vamos ter uma ideia do que se produziu no Ceará quando tivermos esse acervo todo”, antevê.

Assuntos Relacionados