Grande Bom Jardim se firma como importante polo do audiovisual cearense com produção do CCBJ

Com mais de 70 filmes produzidos, 38 seleções para festivais e 10 prêmios conquistados, produção audiovisual do Centro Cultural Bom Jardim reforça ligação com o território

Escrito por
João Gabriel Tréz joao.gabriel@svm.com.br
Legenda: Formações em audiovisual do Centro Cultural Bom Jardim já somam 200 pessoas atendidas; na imagem, bastidores do curta "Pegada"
Foto: JPROL e Beatriz Souza / Divulgação

A importância do Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ) para a produção audiovisual cearense é visível tanto a partir de frutos quantitativos — são mais de 200 pessoas atendidas em 13 turmas das formações oferecidas lá, com 79 obras produzidas, 38 seleções para festivais e 10 prêmios conquistados — quanto qualitativos — que incluem oportunização de formação profissional, relação de autoestima com o próprio território e descentralização de políticas públicas.

O rápido panorama oferece uma noção do lugar que o CCBJ — que é gerido em parceria entre a Secretaria da Cultura do Ceará e o Instituto Dragão do Mar e foi o primeiro equipamento cultural público a se firmar em uma periferia em Fortaleza — conquistou no cenário estadual da linguagem e reforça as demandas por mais recursos.

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Fruto de mobilizações comunitárias

A vocação artística da região do Grande Bom Jardim — composta pelos bairros Canindezinho, Granja Lisboa, Bom Jardim, Granja Portugal e Siqueira — é anterior à criação do centro cultural, inclusive no audiovisual.

Quem contextualiza é Joaquim Araújo, que atuou como coordenador da Escola de Cultura e Artes (ECA) do CCBJ até 2024. “Antes do CCBJ, o Grande Bom Jardim teve alguns coletivos nas décadas de 1980, 1990, que começaram a fazer produções do território”, rememora.

Esses grupos eram ligados a Comunidades Eclesiais de Base da localidade, onde jovens receberam formações básicas e produziram registros das lutas em prol dos bairros. “Se você colocar no YouTube, vai encontrar vários filmes de quando a comunidade lutou pela ponte, por asfaltamento, transporte”, contextualiza.

O próprio CCBJ foi, também, fruto de lutas e mobilizações comunitárias, sendo aberto ao público em 2006. “Quando o centro cultural foi inaugurado, havia um movimento muito grande de levar à periferia tecnologias que não estavam acessíveis. O Bom Jardim tinha histórico de dança, teatro e artesanato, mas havia linguagens que não chegavam à massa popular”, segue Joaquim.

No contexto dos anos iniciais, o CCBJ passou a ofertar oficinas em audiovisual e informática. “Tinha uma ilha de edição — olha, falar que 18 anos atrás, na periferia do Bom Jardim, você tinha uma ilha de edição, com computadores na época bastante avançados, para fazer edições, gravar… Vinham pessoas do audiovisual do Ceará para dar oficinas e construir a partir disso”, lembra. 

Formação estruturada

Como acrescenta a atual coordenadora do Programa de Audiovisual do CCBJ Elena Meirelles, “a partir da demanda e adesão a esses cursos e percebendo a motivação cultural e artística do território”, o contexto formativo se firmou na ECA em 2017.

Era o período em que Joaquim assumiu a gerência da escola e, também, cenário de “efervescência” no contexto audiovisual, o que motivou o coordenador a apresentar à UFC a proposta de criação de um curso extensivo no CCBJ em parceria com a graduação em Cinema da instituição.

“Havia o surgimento de coletivos da Cidade, de produção do audiovisual no Brasil, da escola Porto Iracema das Artes, e nas comunidades do Bom Jardim outros coletivos foram surgindo. Quando eu assumo, levei isso como desafio”
Joaquim Araújo
ex-coordenador da Escola de Cultura e Artes do CCBJ

Com três turmas já concluídas e a quarta com previsão de início em setembro deste ano, o Curso Extensivo em Audiovisual do CCBJ compõe um dos eixos que estruturam o programa da linguagem no equipamento.

O formato, como explica Elena, é comum a todos os Programas da ECA (que incluem teatro, dança, música e cultura digital), onde cada eixo é pensado para que “estudantes possam fazer um percurso continuado na linguagem”.

  • Cursos básicos: o eixo proporciona experiências iniciais, atendendo crianças, adolescentes e adultos; além de formações curtas, há um curso básico de longa duração;

  • Curso Extensivo: eixo que propõe aprofundamento de experiências, com atividades teóricas, técnicas e práticas; forma profissionais com compreensão técnica e pensamento crítico;

  • Laboratório de Pesquisa: voltado à investigação e desenvolvimento de projetos específicos, como, no caso do audiovisual, sobre gêneros audiovisuais, cineclubismo, temas sociais, preservação e desenvolvimento de roteiros;

  • Ateliês de Produção: experiência de capacitação profissionalizante, no Programa de Audiovisual ocorreu focado em Produção de Conteúdo Audiovisual para Redes Sociais.

A coordenadora, que colaborou anteriormente como professora do Curso Extensivo e assumiu a atual função por meio de seleção pública em novembro de 2024, ressalta a consolidação do Programa de Audiovisual na atuação de Joaquim e nomes como Henrique Gonzaga, Nayana Santos, Diego Barros, Rúbia Mércia, Lívia de Paiva e Samuel Brasileiro.

Samuel e Lívia, respectivamente, foram figuras que deram início aos trabalhos nas formações da linguagem. “Ele desenha o curso de extensão e ela avança, dá o tom da comunidade”, reforça Joaquim.

Para montar o corpo docente no início, como lembra ele, “a gente foi atrás”. Com o tempo, “professores de renome queriam, querem, dar aula lá e a gente foi trazendo”.

A lista inclui profissionais do audiovisual, pesquisadores e outros nomes, com prioridade para pessoas do Ceará que possam “trazer experiência, técnica e pensamento atualizado para a sala de aula”, como afirma Elena.

“Para além disso, valorizamos quem traz na sua trajetória e pesquisa, repertório e abordagem que trata de questões sociais e de direitos humanos de forma transversal ao cinema e que valorize estéticas, cosmovisões e narrativas periféricas, negras, indígenas e LGBTs”, acrescenta a coordenadora.

Comunidade e território como referências de criação

O dito “tom da comunidade” mencionado por Joaquim é assim definido por ele: “É falar sobre as vidas ali existentes em todo processo, todo módulo. Começava a estudar estética do território do Grande Bom Jardim, da periferia, como isso perfilava com a estética do clássico, do cinema, do que se redesenhava no Brasil. Como se dialogava a partir das vidas”, compreende.

“Produziram desde filme de terror do Bom Jardim ao do romance, o das lutas da periferia e da juventude, e sempre traziam a relação com a comunidade, a vida da comunidade. Então, os figurantes eram pessoas comuns, o set eram locais da comunidade — a bodega da Maria Irene, do Cristiano”
Joaquim Araújo
ex-coordenador da Escola de Cultura e Artes do CCBJ

Formados respectivamente pela 2ª e 3ª turmas do Curso Extensivo de Audiovisual, Ricco Sales e Paulo Carter corroboram o entendimento de Joaquim.

O primeiro, morador do GBJ desde bebê, credita a aproximação dele às atividades do centro cultural ao “destino”. Sem contato com o local, um dia se interessou em saber o que acontecia lá e, rápida e despretensiosamente, se inscreveu em um curso de roteiro.

A formação durou seis meses e marcou a trajetória de Ricco, que passou a buscar mais cursos depois. “Sempre digo que nasci do cinema coletivo, periférico, principalmente por essa primeira experiência em 2019 e pela experiência do extensivo”, considera.

“O principal diferencial na formação do CCBJ é ter uma escola que nos cria um sentimento de pertencimento. Mais do que aprender a teoria e a prática, a gente aprende a construir as experiências como comunidade”
Ricco Sales
ex-aluno e atual monitor do Programa de Audiovisual do CCBJ

Ricco Sales (no meio) durante gravações do curta 'Tuas Cores', dirigido por Elvis Alves
Legenda: Ricco Sales (no meio) durante gravações do curta "Tuas Cores", dirigido por Elvis Alves
Foto: Acervo pessoal

Já Paulo, morador do Mondubim, partilha que, no período pós-pandemia, passou a buscar formações gratuitas em arte. “Passei a frequentar equipamentos culturais públicos que ofertavam cursos mais pontuais sobre cinema e literatura, mesmo centralizados, distantes”, rememora.

Nessa procura, encontrou o CCBJ. “Conheci o espaço cultural do Bom Jardim, que ofertava um longo curso presencial de cinema, e como morador do Mondubim foi ótimo ver uma ótima oportunidade perto de casa”, ressalta. 

Para ele, a formação do equipamento é “humana” antes de teórica ou prática. “O diferencial está neste aprendizado, no entendimento que o cinema também é uma ferramenta educacional, comunicadora e forte política na periferia. É assim que também resistimos”, atesta.

“A escola formou e ainda forma profissionais tão capazes quanto a grande cena. Depois de muitos desafios – e foram muitos –, eu terminei o curso sabendo do poder e valor do impacto sobre a criação de imagens como um amplificador da minha voz, da minha bandeira e comunidade”
Paulo Carter
ex-aluno do Curso Extensivo em Audiovisual do CCBJ

Questões sociais, territoriais e culturais

Ainda que diversa em temas e formas, a produção fruto dos percursos formativos de audiovisual no CCBJ partilha algumas vertentes características.

“É muito comum ver nos filmes produzidos a lida com questões sociais, territoriais e culturais que atravessam os/as estudantes e a experiência do território do Grande Bom Jardim, assim como estabelece conexões com a vivência de outras periferias urbanas e comunidades tradicionais”, observa Elena.

Obras realizadas pelas turmas contam com sessões de estreias em diferentes salas públicas e equipamentos do Estado; na foto, exibição dos curtas no Cineteatro São Luiz, em maio
Legenda: Obras realizadas pelas turmas contam com sessões de estreias em diferentes salas públicas e equipamentos do Estado; na foto, exibição dos curtas no Cineteatro São Luiz, em maio
Foto: Mar Pereira e Igor Barbosa / Divulgação

Na avaliação da coordenadora, as estéticas e narrativas elaboradas nesses contextos atuam de forma a afirmar “as potências, a diversidade e multiplicidade da vida” em territórios periféricos, inclusive “contestando estigmas comuns de representação da periferia”.

“As inquietações dos artistas estudantes se encontram com as reivindicações e lutas constantes de quem constrói o centro cultural. Assim, os filmes e profissionais que passam pelo CCBJ trazem questões e constroem narrativas e estéticas valiosas para o Bom Jardim e outros territórios periféricos de Fortaleza, e também para a comunidade negra e indígena, LGBT e de terreiro”
Elena Meirelles
coordenadora do Programa de Audiovisual do CCBJ

Na experiência de conclusão de curso da 3ª turma do Curso Extensivo, Paulo atuou como diretor de arte nos curtas “Pegada”, “drama comunitário” com direção de Késsia Nascimento, e “AYA”, “suspense surrealista” dirigido por Wallace Douglas.

No processo do primeiro, Paulo lembra de conversas da equipe “sobre como representar protagonistas mulheres de idade avançada e a relação que têm com o conjunto habitacional na periferia de Fortaleza”. 

Curta 'Pegada' foi uma das produções da 3ª turma do Curso Extensivo em Audiovisual do CCBJ
Legenda: Curta "Pegada" foi uma das produções da 3ª turma do Curso Extensivo em Audiovisual do CCBJ
Foto: JPROL e Beatriz Souza / Divulgação

Já no segundo, a busca foi por contrapor “narrativas do gênero de terror racial no mainstream”. “A lente desses filmes tem uma perspectiva sensível, imbuídos de enredos de representação e ética. São filmes com vozes que merecem ser vistas e ouvidas”, aponta.

Além de curtas de ficção, outros formatos também são produzidos no Programa de Audiovisual. O documentário “A magia do Audiovisual: Jornada CCBJ”, de JPROL e Emerson Praciano, por exemplo, foi também fruto da 3ª turma.

Outro trabalho de conclusão do extensivo foi a Exposição Curumins, proposta por Mayra Fernandes, que aliou fotografias, curadoria de filmes e ações voltadas ao público infantil. 

Elena cita, ainda, a busca por experimentos de acessibilidade como linguagem artística e houve, ainda, produção de videoclipe — caso de “Corre”, de Evan Teixeira, fruto do curso Produção de Vídeos Musicais.

“Quem frequenta formações na ECA em geral acaba sendo estimulado a ter contato com as múltiplas linguagens artísticas e culturais vivenciadas ali, como teatro, música, acessibilidade, cultura digital e dança”, explica Elena, citando a metodologia de “pedagogia da encruzilhada” introduzida na escola na gestão de Joaquim Araújo.

A coordenadora acrescenta a “grande produção” feita por crianças e adolescentes em formações do Programa. “São filmes que brincam e experimentam muito com a linguagem, envolvem o público infanto-juvenil, mas por vezes também abordam questões sociais densas que atravessam essa faixa etária, como aquelas que surgem na vivência escolar”, ilustra.

Profissionalização e oportunidades

A estruturação dos programas de linguagens no CCBJ, dos cursos básicos aos extensivos/técnicos e laboratórios, foi pensada para possibilitar um caminho de “continuidade da política pública”, como explica Joaquim.

“Tem uma sequência. Eles saem do curso e têm o laboratório. A gente pensa nesse processo, para depois terem acesso às políticas de incentivos do audiovisual, fazerem parte dos fóruns do audiovisual. Esse é o desejo pedagógico”, destrincha.

Em diálogo, Elena ressalta que a realização do percurso formativo pensado na ECA proporciona “bagagem significativa para atuar no campo audiovisual de diversas maneiras”. Egressos do Extensivo, por exemplo, recebem certificação da UFC.

Programa de Audiovisual do CCBJ proporciona profissionalização na área
Legenda: Programa de Audiovisual do CCBJ proporciona profissionalização na área
Foto: JPROL e Beatriz Souza / Divulgação

“Podem ser realizadores de narrativas próprias, mas podem também seguir o caminho da pesquisa, da crítica, da distribuição ou da educação. A formação estimula o contato e aprofundamento com essas diversas formas de atuação no audiovisual”, ilustra.

Para Ricco, a formação em audiovisual no CCBJ "contribui principalmente pra ajudar na descentralização da produção audiovisual de Fortaleza".

"Os egressos estão ganhando cada vez mais espaço no setor, ainda é dificultoso, mas é bem visível esse crescimento, e com isso, o setor ganha mais pluralidade e potência política", defende.

Há, ainda, a possibilidade de somar com a própria formação. Ricco, por exemplo, atua como monitor e é um dos nomes à frente da salvaguarda do acervo do Programa de Audiovisual do CCBJ. 

Curta 'Aya' foi um dos produzidos pela 3ª turma do Curso Extensivo em Audiovisual do CCBJ
Legenda: Curta "AYA" foi um dos produzidos pela 3ª turma do Curso Extensivo em Audiovisual do CCBJ
Foto: AMON e Andrezza Cristine / Divulgação

Recém-formado pelo Extensivo, Paulo que as “primeiras experiências” durante o curso “nos prepararam para captação de recursos para editais de incentivo público e demais projetos futuros”.

“Minha turma agora faz parte de filmes desenvolvidos na capital e somam no fluxo dos setores, como Jade Tavares e Mirna Karina, ambas alunas da 3ª Turma que estiveram como assistentes de direção e produção, respectivamente, no mais recente Directors' Factory Ceará-Brasil”, ilustra.

“Políticas públicas como o Extensivo na Escola de Cultura e Artes no Centro Cultural do Bom Jardim precisam ser vistas, mas principalmente apoiadas para que esse ensino de qualidade resista na quarta e na quinta (turma), e assim por diante”
Paulo Carter
ex-aluno do Curso Extensivo em Audiovisual do CCBJ

Desafios

A fala de Paulo na defesa por mais apoio ecoa uma demanda constante e central na trajetória do Programa de Audiovisual do CCBJ e, também, na do próprio centro cultural.

“A principal demanda é sempre a de recursos, audiovisual é algo caro, e sempre tem a luta de conseguir equipamentos adequados para permitir aos alunos o máximo de potencial para os seus trabalhos. Já fazemos muito com tão pouco, imagina se tivéssemos os recursos adequados”, aponta Ricco.

A situação descrita por ele em relação aos equipamentos, por exemplo, também é citada por Joaquim como tendo afetado os anos iniciais do Programa: “A gente não tinha câmera porque não tinha recurso, aí toma emprestada na UFC, na Porto Iracema das Artes. Não tinha aquele rebatedor de luz, (então) ‘vamos construir’, chamava a galera do improviso e da gambiarra”.

Além das demandas do próprio curso, outro ponto relevante foram as demandas dos alunos, do horário das aulas à necessidade de ajuda de custo aos estudantes das formações para custear transporte e alimentação. 

“Era tudo no turno da noite. Quem que vai na periferia fazer um curso à tarde? Trabalham, estudam, estão no corre deles, então pega a galera realmente que não está tendo oportunidade”, contextualiza Joaquim.

Mesmo em meio aos desafios, a busca por democratização e descentralização é o que marca as experiências formativas em audiovisual no CCBJ. 

“Me orgulho muito de ter ajudado a construir o conceito, os eixos formativos, e chegar numa periferia das que tem o menor IDH. É preciso que a gente alimente de sonhos, e o audiovisual é isso, um alimento de sonhos”, partilha o ex-coordenador.

Em uma reflexão que evidencia as ligações entre passado e presente, Ricco relaciona os filmes feitos anteriormente no Grande Bom Jardim e aqueles que vieram como frutos do CCBJ.

“Eles são unidos por processo de evolução, mas também de uma espiral de narrativas que retornam com outros personagens, outras circunstâncias, mas que na essência são as mesmas”, inicia.

“Antes, a produção audiovisual do território buscava força, buscava denunciar, mostrar a luta da população. Hoje, a nossa produção está mais fortalecida, consciente do poder do audiovisual, da imagem e da memória. Antes nossa comunidade buscava ter uma voz, hoje nossa comunidade fala, e o audiovisual é uma das maneiras mais potentes de manifestar algo”
Ricco Sales
ex-aluno e atual monitor do Programa de Audiovisual do CCBJ

Centro Cultural Bom Jardim

  • Quando: de segunda (funcionamento interno) a sábado, de 8 às 21 horas
  • Onde: rua 3 Corações, 400 – Grande Bom Jardim
  • Mais informações: @ccbj_centroculturalbomjardim
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