Lendas de comunidade rural cearense inspiram filmes feitos por crianças e adolescentes
Projeto em Bananeiras, comunidade de Guaraciaba do Norte, alia formação técnica em audiovisual à valorização do território e da cultura popular
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“Uma casa de taipa, feita com barro, madeira, teto de palha, debaixo de um pé de mangueira, é onde a gente dá as nossas formações. É a nossa escola”. Neste espaço de aprendizado e acolhimento, crianças e adolescentes de 8 a 15 anos da comunidade rural de Bananeiras, em Guaraciaba do Norte, transformaram as lendas da localidade, partilhadas pelos mais velhos, em cinema.
Após meses de formação em audiovisual, os pequenos cineastas roteirizaram, dirigiram e atuaram em “O Kaipora” e “O Crescedor”, dois curtas que evocam seres místicos do imaginário popular. As produções têm previsão para serem finalizadas nos próximos meses e circularem em Bananeiras, comunidades vizinhas e, também, festivais pelo Brasil.
O processo se desenvolveu na 3ª edição do Lab Janelas — Laboratório de Experimentação, Criação e Formação Audiovisual, uma iniciativa ligada ao Espaço Cultural Quintal de Afetos e apoiada pela Secult Ceará por meio da Lei Paulo Gustavo.
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Dos terreiros e quintais a Bananeiras
Gerido pelo casal Joyce Ramos e Dan Seixas — ela produtora e pesquisadora cultural e ele fotógrafo e realizador —, o Quintal de Afetos é um espaço firmado em Bananeiras e fruto do Coletivo Terreiros e Quintais de Afetos.
“A gente sempre teve a proposta de levar atividades artísticas que não são convencionais nesses espaços onde às vezes as políticas públicas culturais não chegam”, explica Joyce, coordenadora pedagógica do projeto, em entrevista ao Verso.
Com caráter itinerante, o coletivo passava por localidades rurais da região levando diferentes projetos. Um deles foi a edição inaugural do Lab Janelas, que em 2022 ocorreu na comunidade de Santa Luzia, no município de Guaraciaba do Norte, a cerca de 300km de Fortaleza.
A proposta, resume Joyce, foi a de “oferecer formação básica em audiovisual atrelada ao território onde os alunos residem”. A partir da pergunta “o que tem no território que tem potencialidade para ser transformado em filme?”, o projeto desenvolveu módulos básicos que culminaram em produções feitas por eles.
Após essa primeira edição, Joyce e Dan encontraram Bananeiras e resolveram enraizar na localidade, criando um espaço físico para a ação do coletivo.
Para aprender junto
Uma vez com o espaço do Quintal de Afetos instituído, o Lab Janelas e outros projetos artísticos realizados no escopo da iniciativa foram desenvolvidos junto às crianças e adolescentes da comunidade.
O formato da formação audiovisual tem se desenrolado, em média, com 15 alunos por edição. Inicialmente, a intenção era ter público delimitado a jovens acima de 15 anos, mas a prática mostrou a importância de atender faixas etárias menores.
Na terceira edição, destaca Joyce, os participantes receberam bolsa nos meses de curso. Além disso, também na mais recente edição, alunos que já fizeram o percurso formativo antes retornaram ganhando novas funções e, também, recursos.
Na turma atual, são atendidos alunos de escolas públicas, pertencentes à famílias de baixa renda e moradores da comunidade, com perfis distintos na faixa etária — de crianças de 8 anos a adolescentes de 15 anos —, e em termos de neurodiversidade, com participantes autistas ou com TDAH, por exemplo.
“Como é essa pedagogia pra todo mundo aprender juntos? É com cuidado, carinho, para que todo mundo possa acompanhar fazendo não só questões técnicas, mas desenhando, fotografando, a partir de outras linguagens, a partir também da brincadeira”, destrincha Joyce.
“O Kaipora” e “O Crescedor”
Além dela e de Dan, que ministram módulos como “cinema e território” e fotografia, a formação é composta por diferentes convidados. “Cada módulo é dado por um profissional diferente e a gente tenta mesclar uns da nossa cidade, priorizando a cadeia criativa local, e de fora”, explica a gestora.
Além de Guaraciaba do Norte, professores de Fortaleza, Meruoca e Sobral, por exemplo, participam do percurso formativo.
O módulo de produção, no qual os alunos gravaram os filmes, ocorreu no início de junho. Antes, eles criaram os roteiros a partir de histórias ouvidas no território. “Quem fala são os mais velhos. A gente faz essa imersão na oralidade popular, o que eles estão contando?”, atenta Joyce.
Os curtas “O Kaipora” e “O Crescedor”, então, tiveram os roteiros escritos pelas crianças a partir, respectivamente, do ser místico visto nas matas dos arredores e do ser que surge nas estradas e cresce para assustar quem passa.
Além do roteiro e da direção, os próprios alunos também atuaram como protagonistas, tendo passado por preparação de elenco também prévia. A formação continua agora, com o contato com etapas de edição e finalização.
Faltam materiais, mas sobram riquezas
Apesar da riqueza de experiências, o Lab Janelas — bem como o próprio espaço cultural — é uma iniciativa independente e depende da captação de recursos por meio de editais públicos. Há dificuldades, por exemplo, em termos de materiais.
“A gente não tem uma ilha de edição para cada, mas eles vão acompanhando o editor. Nós temos equipamentos ainda limitados, não são muitas câmeras, cerca de três, então eles vão revezando entre celulares e câmeras”, exemplifica.
As ausências na iniciativa cultural refletem o cenário de carências que afetam a comunidade rural, elenca Joyce, em termos como educação e saúde. Apesar dos percalços, a gestora aponta a importância do laboratório e de iniciativas de arte e cultura como fonte de autoestima.
“(Aqui) tem uma riqueza tão linda: as plantações, as frutas, os agricultores, o trabalho com a terra. Quando a gente se estabilizou aqui, pensou o audiovisual como registro do cotidano e da cultura dessa comunidade”
“A cultura do local onde moram, eles não reconheciam. A gente vai alimentando isso e eles já enxergam como patrimônio, como algo que pertence a eles e pode ser registrado, para fazer a salvaguarda do patrimônio local”, avança.
Seja pelo cinema ou por atividades como teatro e contação de histórias, também realizadas no Quintal de Afetos, o trabalho é em prol de “se apropriar”. “A gente escuta o território para transformar e sensibilizar eles sobre essas questões que fazem parte das nossas raízes”, define Joyce.
Sessões em quintais e terreiros
A conclusão do processo, incluindo a finalização dos filmes e a cerimônia de entrega de certificados para os alunos, deve ocorrer por volta de agosto, conforme prevê a coordenadora pedagógica.
Os passos seguintes incluem a circulação dos dois curtas inclusive por eventos de cinema espalhados pelo País, mas a prioridade é possibilitar o contato de Bananeiras e de territórios vizinhos com as obras.
“Pela qualidade que ficou, as histórias estão bem contadas, a gente quer que eles circulem por festivais, mas, antes de qualquer coisa, quer que eles sejam vistos aqui”, atesta.
A primeira exibição será justamente em Bananeiras, para alunos, pais, responsáveis e outros moradores. “Posteriormente vai circular por comunidades vizinhas. A gente tem um projeto, Cinema no Terreiro, que é nosso cineclube, onde levamos telão para espaços ao ar livre, e exibe filmes”, contextualiza.
“Esses filmes com certeza vão rodar nesse cineclube itinerante, para que outras comunidades possam ver e se identificar e a gente fomentar público, divulgar o trabalho e, quem sabe, chamar outros alunos”, torce Joyce.
Acompanhe o projeto
- Instagram: @labjanelas
- YouTube: www.youtube.com/@terreirosequintaisdeafeto