Para cursar uma faculdade presencial e continuar morando no próprio território, os indígenas cearenses Tremembés da comunidade de Varjota, em Itarema, no litoral Norte do Ceará, precisam, no mínimo, percorrer 80 km por dia. Isso porque não há oferta de ensino superior naquele espaço - na área rural -, nem na sede do município, localizada a 15km do aldeamento.

Para frequentar presencialmente a universidade, os jovens de Itarema têm de ir para cidades vizinhas, como Acaraú. Esse é apenas um dos gargalos no acesso ao ensino superior. 

Mas isso não é um limite incontornável, e a indígena Tremembé, Maria Karine dos Santos Costa, 18 anos, egressa da rede pública, tem alterado essa rota. Não sem desafios, a jovem tem redesenhando possibilidades e modificado o destino que, durante muitos anos, parecia já ter sido determinado pelas impossibilidades em um território da zona rural, marcado historicamente por disputas e no qual muito ainda ainda se reivindica a demarcação oficial para o seu povo.    

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Legenda: Karine foi aluna de escola pública durante toda a educação básica
Foto: Davi Rocha

O Diário do Nordeste publica em 2025 a quarta edição do projeto Terra de Sabidos, que neste ano tem como foco o “destino universidade”. O especial percorre Fortaleza e cidades do interior como Itarema, Ipueiras e Granjeiro, e conta experiências de egressos de escolas públicas do Ceará que acessaram a universidade, seja via Sistema de Seleção Unificada (Sisu) ou Programa Universidade para Todos (Prouni). As experiências apontam quão desafiantes, mas também recompensantes, têm sido as oportunidades que abrem portas e alteram a vida dos jovens e de quem os cerca.

É em uma mesa de jantar, munida de computador e acesso à internet, na sala da casa onde moram Karine, a mãe professora, o pai agricultor e um irmão, de 11 anos, que ela ingressa remotamente no “novo mundo”. As aulas da faculdade são acompanhadas desde o início deste ano na própria residência, localizada no aldeamento de Varjota. 

Na comunidade indígena, que é uma dos territórios dos povos Tremembé no Ceará, Karine e a família moram a cerca de 3km da rodovia CE-090, na margem direita do rio Aracati-Mirim. Essa é uma das áreas do Ceará povoadas pelos Tremembés que habitam três municípios:

  • Itarema (Almofala e Varjota);
  • Itapipoca (São José e Buriti); e
  • Acaraú (Queimadas)

Aluna de escola pública durante toda a educação básica (ensino fundamental e médio), Karine foi aprovada em 2025 para a formação semipresencial de Farmácia em um centro universitário particular, cuja sede fica na cidade de Itapipoca.

Ela é bolsista do Programa Universidade para Todos (Prouni), do Governo Federal, e tem 100% das mensalidades da graduação feita na instituição privada bancados pelo poder público. 

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É via computador da mãe, utilizado no cômodo de entrada da residência, que ela acompanha as aulas e demais atividades. Egressa da rede pública estadual de ensino, mais precisamente da Escola Indígena Tremembé José Cabral de Sousa, da rede pública estadual, situada dentro do aldeamento, Karine foi a única estudante da instituição aprovada para o ensino superior no processo de 2024 para cursar 2025. 

No ano passado, a turma do 3º ano tinha 14 alunos, recorda ela, somente 6 “tentaram o Enem”. Ela conquistou a sonhada vaga na universidade. Em 2025, na unidade que atende as séries do fundamental e do médio, tem 180 alunos, e deste 8 estão no 3º ano.  

Imagem do Terra de Sabidos

Acesso à universidade

Antes de Karine, outros estudantes indígenas daquele território também já tinham alçado este voo. Mais precisamente outros 4 alunos da mesma escola entre os anos de 2021 e 2023. Mas esse ingresso ainda é limitado, e a realidade relembra Karine disto.

No território no qual a falta de oportunidades historicamente foi um imperativo de fora para dentro, apenas nos últimos anos, estudantes têm visto, as evidências de outras possibilidades ganharem força. 

A caminhada rumo à democratização do acesso ao ensino superior começou a despontar no território. O que é direito, durante muitos anos, pareceu apenas desejos quase solitários dos jovens da área rural que “sonhavam em chegar lá (na universidade)”.

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Legenda: O acesso de indígenas ao ensino superior ainda é restrito no Ceará
Foto: Davi Rocha

Não deveria ser assim, mas diante de tantas lacunas e privações, os impedimentos foram sendo naturalizados. Quando eles iriam acessar essas oportunidades

Em 2024, a rede pública estadual aprovou 24.403 estudantes para cursar universidades públicas e privadas em 2025, segundo dados da Secretaria Estadual de Educação (Seduc).   Destes, 13 foram alunos de escolas indígenas - Karine está entre eles. 

Nos últimos oito anos - período o qual a Seduc tem os dados sobre acesso à educação superior sistematizados -, 61 estudantes de escolas indígenas da rede pública estadual foram aprovados em graduações em instituições públicas e privadas, indicam os registros da Secretaria. Um quantitativo ainda baixo, mas relevante e que tem se mantido.   

No caso de Karine, o modelo semipresencial foi o “atalho” possível para começar a alcançar essa meta de forma prática. A sede para a aula presencial fica em Itapipoca, cidade localizada a 85 km da casa de sua casa. É dessa maneira que ela tem realizado o desejo que cultiva, segundo ela, desde pequena, quando começou a frequentar a escola na qual concluiu os estudos, já que a instituição oferta  tanto o ensino fundamental quanto o médio. 

“Na escola que eu estudei tem bastante estímulo, inclusive tiveram muitos aulões, as matérias do projeto de vida também sempre procuravam nos fazer saber o que queríamos depois de sair da escola”, relata ela, apontando que, na realidade da antiga instituição, muitos dos seus colegas se dividiam entre estudos e trabalho - prestando serviços na sede de Itarema ou em atividades como pesca e agricultura na área rural.

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Legenda: A mãe de Karine, Ivonete Santos, que é professora na Escola na qual a filha concluiu o ensino médio
Foto: Davi Rocha

Alguns, recorda, por falta de conhecimento, sequer eram incentivados pelas famílias ou se sentiam estimulados a optarem pela universidade.  

Na trajetória de Karine, as aulas na Escola Indígena Tremembé José Cabral de Sousa se concentravam em um turno. E como “reforço” para o Enem, algumas vezes foram ofertados, no contraturno, aulões para estudantes de diferentes escolas da região. “Os aulões ajudaram porque às vezes não é só conteúdo, é motivacional também”, completa. 

Imagem do Terra de Sabidos

Por que escolher Farmácia?

No começo do ensino médio eu fiz um curso de socorrista e já gostava da área da saúde. Surgiu a ideia de fazer Farmácia. “Escolhi também porque podemos trabalhar em várias atividades. Aqui (na comunidade) tem uma UBS (posto de saúde) que posso até trabalhar lá ou até nos hospitais da região. Posso explorar bastante”, projeta. 

Outro ponto de grande influência para a definição do curso foram as práticas na escola, como a disciplina de medicina e espiritualidade Tremembé, que, destaca Karine, “ensina os mais novos a nunca esquecerem de onde vieram”. 

A medicina é voltada para remédios, plantas medicinais. E aborda as rezas utilizadas nas curas. E é geralmente na escola que temos essa experiência de resgate. Nessas atividades temos pesquisas de campo para ouvirmos os mais velhos. Nesse contato, aprendemos muitas coisas. Na experiência com eles. 
Maria Karine dos Santos Costa
Aluna egressa da rede pública e universitária

No processo de acesso à universidade, ela conta que primeiro tentou uma universidade pública, e como não conseguiu a vaga, vislumbrou a oportunidade do Prouni. No atual momento, Karine tem aulas síncronas e assíncronas e atividades. 

Em 2026, devem ter início as aulas práticas em laboratórios. Para esse momento futuro, os planos são usar a linha convencional de ônibus que liga as cidades de Itarema e Itapipoca para garantir o deslocamento nos cerca de 90 km que separam as cidades.  

Imagem do Terra de Sabidos

Obstáculos no acesso

A escola, cujas instalações são bem simples, explica a diretora da unidade Lucélia Jacinto, atende basicamente a comunidade dos Tremembés. “Se vier aluno de fora, atendemos. Mas, no momento, só temos alunos indígenas”.

Na escola, relata a diretora, há o seguimento de disciplinas previstas no currículo convencional, mas também há aquelas específicas da realidade indígena. “Trabalhamos a nossa realidade e a realidade da sociedade envolvente, como chamamos aqui”, completa. 

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Legenda: Karine foi a única aluna da Escola Indígena Tremembé José Cabral de Sousa aprovada na universidade
Foto: Davi Rocha

Quase todos os anos estamos colocando 2 ou 3 na universidade. Mas é difícil. A maioria gostaria de fazer faculdade e tem muitas oportunidades, só que são fora daqui. Eles não querem porque precisam sair. Tem que ir pra Fortaleza, para outras cidades. No Acaraú também tem, mas muitas vezes não são os cursos que eles querem. Estamos buscando outras oportunidades, mas a realidade é essa.
Lucélia Jacinto
Diretora da Escola Indígena Tremembé José Cabral de Sousa

A mãe de Karine, Ivonete Santos, que é também professora na Escola na qual a filha concluiu o ensino médio, destaca a dupla satisfação.

Como mãe, aponta, “é muito importante essa entrada na faculdade, é um sonho que todos os pais  temos para os nossos filhos, apesar de nem todos quererem enfrentar esse desafio” e como professora opina que é uma “oportunidade que a escola abraçou, a luta a cada dia  para que os nossos estudantes se interessam e possam ingressar em uma faculdade”. 

Na avaliação de Ivonete, a formação superior dos jovens indígenas pode ser um caminho para garantir assistência à própria comunidade “podemos ter  médicos, advogados, biólogos,  entre outras profissões. Hoje, já temos alguns alunos que ingressaram na faculdade através dessa porta de entrada que é o Enem e isso é uma conquista e um prazer”.

Para ela, um dos maiores obstáculos é justamente as lacunas de oportunidade de acesso ao ensino na própria região, o que, em certa medida, obriga os alunos que desejam a formação superior e terem que mudar de lugar ou necessariamente cursarem à distância. 

“Muitos dos nossos jovens até conseguem um bom resultado, porém, não chegam a ingressar no ensino superior  porque não tem aqui (em Itarema) os cursos que eles desejam e os mesmos não querem sair da aldeia para ir morar em outro município, também por conta do financeiro. Por causa disso, a maioria acabam ficando sem estudar ou muitas vezes fazem um outro curso diferente daquele que eles pretendem”, reflete. 

Imagem do Terra de Sabidos