Há 67 anos, na cidade de Los Angeles, nos Estados Unidos, 13 pessoas se juntaram para se ajudar ao compartilhar um problema em comum: vício em jogos. Usando conceitos semelhantes aos dos Alcoólicos Anônimos (AA), a irmandade denominada Jogadores Anônimos (JA) hoje possui sedes no mundo todo, inclusive no Brasil. A primeira reunião no País foi em 23 de março de 1993, no Rio de Janeiro. 

Os Jogadores Anônimos utilizam a prática dos Doze Passos de Recuperação. Em Fortaleza, são dois grupos: JA Fortaleza e JA Iracema. Ambos são células da Irmandade do Rio de Janeiro. Há reuniões às segundas e quintas-feiras, às 19h, e aos sábados, às 10h. 

A série de reportagens "O vício no jogo" visa entender quem são as pessoas com compulsividade em relação a jogos de azar, apostas esportivas e cassinos onlines, além de indicar os sintomas do transtorno e como buscar ajuda. Este é o segundo de quatro conteúdos.

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⚠️ Atenção! O texto a seguir pode conter gatilhos emocionais. Pessoas com problemas de dependência ou vício em jogos podem recorrer a atendimento psicológico e psiquiátrico. Se, aliado a isso, você tem pensamentos suicidas, busque ajuda. O Centro de Valorização da Vida (CVV), por exemplo, oferece apoio por chat na internet ou pelo telefone 188.

"Os grupos anônimos são feitos para quem realmente quer recuperação. Se fosse para quem precisa, teria que ser bem mais gente. Para fazer uma recuperação através dos grupos anônimos é preciso muita boa vontade. A gente não chama 'força de vontade'. Porque força a gente sabe que nem todo dia a gente tem. Mas a boa vontade é algo que a gente trabalha nos nossos princípios. Busco através do meu autoconhecimento e com a espiritualidade que trabalho nas reuniões essa minha recuperação, um dia de cada vez. São grupos de mútua ajuda em que todos trocam experiências em prol da recuperação individual", explica um servidor dos JA Fortaleza que aqui chamaremos de Luiz.

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O servidor existe para ser apoio dos integrantes do grupo anônimo. Qualquer pessoa que tenha 90 dias de abstinência do jogo e seja um membro ingressante do JA pode atuar na função. Além disso, como explica outra servidora do JA em Fortaleza, aqui chamada de Laura, a pessoa deve praticar o 12º passo de recuperação previsto no método: "Tendo feito um esforço para praticar estes princípios em todas as nossas questões, procuramos levar esta mensagem a outros jogadores compulsivos". (Leia os 12 passos abaixo)

"E eu faço esse meu 12º passo como servidora como forma de gratidão ao programa e crença. Acredito que esse programa salva e muda vidas. Por ser um grupo de ajuda mútua, a gente se ajuda também quando está no serviço. A gente está ali para estender a mão e ajudar aqueles que precisam da mesma maneira", compartilha Laura.

A servidora também explica que eles auxiliam novos ingressantes, com encaminhamento para reuniões presenciais em Fortaleza ou via zoom. Há nos grupos um servidor tesoureiro, um secretário que realiza as atas e o representante, que é vinculado ao Rio de Janeiro. 

Laura destaca a importância dos grupos de apoio como um lugar de identificação. "O que é dito numa sala, que fica lá na sala, pelos princípios do anonimato, é totalmente compreensivo para quem está na mesma situação, para quem se reconhece como um compulsivo. A gente consegue se colocar no lugar do outro e também conseguimos saber que dentro dessa linha de apoio é uma linha de apoio mútua", diz.

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A ideia da iniciativa é de que a dependência em jogos pode ser tratada com apoio. "Levamos a mensagem de que a compulsão é uma doença que não tem cura, mas que ela tem tratamento. E esse tratamento é feito um dia de cada vez. É isso que a gente prega na nossa Irmandade", afirma Luiz.

Como funcionam as reuniões dos Jogadores Anônimos

A Irmandade é composta por mulheres e homens que compartilham experiências e esperanças para se recuperarem do vício em jogos. Conforme Luiz, todas as pessoas são bem-vindas. "Tem todo um processo e princípios a serem seguidos, como a questão do anonimato, que a gente destaca muito. [É importante] deixar oculta a identificação das pessoas para focar na mensagem que a gente passa, no propósito de ajudar o próximo", explica. 

A reportagem acompanhou uma reunião com cerca de 10 pessoas no bairro Centro, em uma noite de segunda-feira. No encontro, havia pessoas de diversas classes sociais, etnias e tipos de adicção em jogos — de jogo do "bicho" a apostas eletrônicas. 

Todos os encontros começam com uma oração em grupo, a oração da serenidade. "Ela mostra que devemos ter coragem para modificar as coisas que a gente pode e aceitação para aceitar as coisas que a gente não pode modificar. E a sabedoria para saber diferenciar umas das outras. A gente faz essa oração para iniciar e para finalizar as reuniões", diz Luiz.

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Em seguida, os membros compartilham seus nomes e há quanto tempo estão sóbrios da dependência. Na reunião que acompanhamos, havia pessoas "sem o primeiro jogo", como chamam, há dias, meses e até anos. 

Foto de cartazes em reunião dos Jogadores Anônimos
Legenda: As reuniões iniciam e terminam com a Oração da Serenidade
Foto: Davi Rocha

Há, ainda, momentos de acolhimento para novos membros. "A gente considera o recém-chegado a pessoa mais importante da nossa reunião. Para mostrar para aquela pessoa que realmente funciona. Geralmente as pessoas chegam literalmente derrotadas e precisam desse apoio, precisam dessa acolhida porque, no fundo, são somos humanos, né? E essas pessoas devem ter uma segunda chance", compartilha o servidor.

Chaveiro de sobriedade do JA
Legenda: Chaveiro de sobriedade é concedido para membros que completam um ano sem realizarem uma nova aposta
Foto: Davi Rocha

Ocorre na sequência a partilha de histórias sobre as experiências com a adicção, além de um relato de esperança. Nesta reunião específica, eram 7 minutos para relatar o que quisessem. No encontro também há premiação para aqueles que atingem marcos de sobriedade — 30, 60, 90 dias, 6 meses e um ano. Diferentemente do AA, que os marcos são destacados com "moedas de sobriedade", os participantes do JA recebem chaveiros. "Esse chaveiro faz realmente a diferença. É uma das coisas que você luta para se manter sóbrio", relatou um participante da reunião.

"Infelizmente, a gente sabe que muita gente se apega ao financeiro e chega [às reuniões] cheio de dívidas. Logicamente é um jogo [e] traz isso como consequência. Mas isso é apenas a consequência dos atos. O problema é realmente emocional, e o problema financeiro é muito disso. A gente não vai estudar, a gente vai sugerir para a pessoa olhar para dentro de si para buscar esse problema emocional que levou ao jogo e que logicamente levou ao problema financeiro", diz Luiz.

Laura completa que nos encontros são partilhados momentos de dor vividos durante o período ativo da compulsão, mas também os momentos de alegria durante a recuperação. "A gente fala de experiências negativas de quando se vivia no jogo, mas que hoje precisam ser ressignificadas, e de experiências boas, de como a gente conseguiu ressignificar coisas em nossas vidas através do programa de 12 Passos", revela.

Chaveiro de acolhida JA
Legenda: Um chaveiro de acolhida é dado para os novos membros
Foto: Davi Rocha

Os 12 Passos de Recuperação

Criado em 1935, por Bill W. e Dr. Bob S., fundadores do programa Alcoólicos Anônimos, o método dos 12 passos era, inicialmente, um tratamento para o alcoolismo que anos depois foi estendido para quase todos os tipos de dependência química e compulsões

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Os 12 passos de recuperação do JA são:

  1. Admitimos que éramos impotentes perante o jogo – que nossas vidas haviam se tornado ingovernáveis.
  2. Passamos a acreditar que um poder superior a nós mesmos poderia trazer-nos de volta a um modo normal de pensar e de viver.
  3. Tomamos a decisão de entregar nossa vontade e nossas vidas aos cuidados deste poder de nosso entendimento.
  4. Fizemos um minucioso e um destemido inventário moral e financeiro de nós mesmos.
  5. Admitimos a nós mesmos e a outro ser humano a natureza exata de nossas falhas.
  6. Ficamos inteiramente dispostos a ter estes defeitos de caráter removidos.
  7. Humildemente pedimos a Deus (de nosso entendimento) que removesse as nossas imperfeições.
  8. Fizemos uma lista de todas as pessoas a quem prejudicamos e nos tornamos dispostos a fazer a reparação a todos pelo mal causado.
  9. Reparamos os danos causados diretamente a essas pessoas sempre que possível, exceto quando a reparação implicasse em prejudicá-las ou a outras.
  10. Continuamos a fazer um inventário pessoal e quando estávamos errados, prontamente admitimos.
  11. Procuramos, através da oração e meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus como O entendíamos, pedindo somente pelo conhecimento de Sua vontade perante a nós e a capacidade de realizá-la.
  12. Tendo feito um esforço para praticar estes princípios em todas as nossas questões, procuramos levar esta mensagem a outros jogadores compulsivos.

Onde buscar ajuda

O grupo Jogadores Anônimos (JA) reúne e acolhe quem precisa de ajuda para deixar o vício. A iniciativa segue os mesmos princípios dos Alcoólicos Anônimos (AA). No Ceará, são realizadas três reuniões semanais: às segundas, quintas e sábados. 

O JA disponibiliza uma linha de ajuda online, aberta, por meio da qual interessados podem se informar sobre os encontros presenciais e virtuais, no WhatsApp: (85) 98929-5529.