61 socos e um único diagnóstico: covardia

Agressor tenta psicopatologizar sua violência, como estratégia jurídica, se mostrando capacistista

Escrito por
Maria Camila Moura verso@svm.com.br
(Atualizado às 16:48)
Legenda: Vítima foi espancada com 61 socos no elevador do prédio onde mora, em Natal
Foto: Reprodução Redes Sociais

1º soco, 2º soco, 3º soco, 4º soco, 5º soco, 6º soco, 7º soco, 8º soco, 9º soco, 10º soco, 11º soco, 12º soco, 13º soco, 14º soco, 15º soco, 16º soco, 17º soco, 18º soco, 19º soco, 20º soco, 21º soco, 22º soco, 23º soco, 24º soco, 25º soco, 26º soco, 27º soco, 28º soco, 29º soco, 30º soco, 31º soco, 32º soco, 33º soco, 34º soco, 35º soco, 36º soco, 37º soco, 38º soco, 39º soco, 40º soco, 41º soco, 42º soco, 43º soco, 44º soco, 45º soco, 46º soco, 47º soco, 48º soco, 49º soco, 50º soco, 51º soco, 52º soco, 53º soco, 54º soco, 55º soco, 56º soco, 57º soco, 58º soco, 59º soco, 60º soco, 61º soco.

Você, provavelmente, não leu cada um dos 61 socos que escrevi acima. Juliana dos Santos, no entanto, sentiu cada um deles. No seu rosto. Dentro de um elevador, com seu agressor. Tudo registrado pelas câmeras de segurança.

Igor Cabral a golpeou com precisão 61 vezes, sem nenhuma hesitação, sem pausas para choro, rompantes emocionais, confusão mental. Sua ação teve mira, alvo definido, ritmo, repetição, foco, controle motor. Nada ali nos remete a um surto – não há oscilação motora, indícios de sofrimento psíquico, desorganização.

Ele não tenta sair do elevador, sua agressividade não é difusa, em nenhum momento direciona a si mesmo ou às paredes do elevador. O que vimos foi uma coreografia da violência, não um surto.

Na delegacia, Igor alegou ter sofrido um ‘surto claustrofóbico’ e estar no espectro autista. A alegação destes diagnósticos aponta para a tentativa de Igor de psicopatologizar sua própria covardia.

Como psicóloga clínica afirmo categoricamente que a utilização destes diagnósticos como justificativa para sua violência, além de ofensiva, é tecnicamente insustentável.

A alegação de ‘surto claustrofóbico’ chega a ser risível. O que chamamos de claustrofobia é uma manifestação específica do transtorno de ansiedade, cientificamente chamada de ‘Fobia específica, tipo situacional’ (CID F40.240; DSM-5 F40.298). Existem critérios diagnósticos bem definidos para este tipo de transtorno.

Uma pessoa com claustrofobia experimenta um medo profundo ou ansiedade intensa diante da situação temida (no caso em questão seria o espaço fechado do elevador), apresentando comportamento de esquiva ativa (fuga do ambiente que lhe provoca medo) ou com um intenso sofrimento que reverbera em seu corpo por meio de uma série de sintomas como: taquicardia, tremores, sensação de sufocamento, pânico, desorganização interna e motora - o que impossibilitaria que punhos fossem arremessados, com precisão, mais de 60 vezes, em uma mira focada (o rosto), sem qualquer esboço de confusão mental ou sofrimento psíquico.

Não há absolutamente nada naquela cena que remeta a um colapso emocional. O que testemunhamos naquelas imagens é a execução de uma vontade consciente de espancar e, talvez, até mesmo matar.

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Claustrofobia é aflição, não sadismo. O claustrofóbico quer urgentemente sair, fugir. Igor, por sua vez, não manifestou nenhuma tentativa de fuga daquele espaço. Também não vimos Igor tremer, em confusão mental tampouco com um choro desesperador. Ao contrário, seu ato demonstra total coordenação motora, execução muscular precisa, padronizada, centrada em seu alvo.

Havia foco e ação contínua sem hesitação. Igor não desferiu socos no ar nem contra si, nem no elevador. Ele tinha um alvo preciso, o rosto da mulher com a qual havia discutido por ciúmes um minuto antes e ele sabia exatamente como ferir este alvo.

Assim, a alegação de ‘surto claustrofóbico’ é tecnicamente insustentável. Não há documentado, em toda a literatura psiquiátrica mundial, um único caso sequer de um espancamento direcionado, repetitivo, padronizado como manifestação de uma fobia específica situacional. Absolutamente nenhum caso. A violência de Igor só poderá ser considerada ‘surto claustrofóbico’ quando os manuais de psicopatologias forem reescritos em nome da impunidade.

Igor menciona ainda o transtorno do espectro autista (TEA). A tentativa de utilizar o autismo como escudo jurídico parece uma estratégia ainda mais vil, é capacitista e instrumentaliza a saúde mental para justificar o injustificável.

Vale dizer que o TEA, segundo os manuais diagnósticos reconhecidos pela comunidade científica, não inclui a agressividade como principal traço. As explosões de agressividade em pessoas diagnosticadas com TEA, se caracterizam por episódios desorganizados, de agressão difusa, com frequente autolesão ou voltada a objetos próximos, de modo algum são atos coordenados, com escolha intencional de alvo, como o que vimos.

Igor é um agressor que tenta reconfigurar sua violência como sintoma. Ainda que considerássemos a hipótese de Igor realmente ter o diagnóstico de TEA, ainda seria necessário ter um nexo causal entre o TEA e sua conduta violenta (e a conduta violenta teria uma outra forma de expressão), ou seja, a justificativa de TEA para sua violência também é tecnicamente insustentável.

Afirmo, sem nenhuma hesitação, que seu ato não é decorrente de um diagnóstico de TEA (mesmo se considerássemos a hipótese dele ter o diagnóstico).

Igor tenta psicopatologizar sua violência, como estratégia jurídica, se mostrando capacistista e expondo mais uma face de sua crueldade, insultando, indiretamente, milhões de pessoas autistas e familiares que lutam diariamente contra o estigma do diagnóstico.

A tentativa de Igor de justificar seu ato por meio de diagnósticos psiquiátricos é mais uma agressão de Igor, desta vez, contra a comunidade científica, jurídica, contra pessoas com diagnósticos de fobias e TEA. Sua tentativa de converter um espancamento em sintoma merece ser denunciada – a Psicologia não será cúmplice dessa distorção.

Igor Cabral não surtou. Igor Cabral decidiu e agiu. Os 61 socos não foram dados por um transtorno, mas por um homem covarde – que merece não tratamento clínico, mas uma sentença. Que a justiça seja tão certeira quanto seus 61 socos.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora