Crianças famintas em Gaza: a dor que não deveria ter lado

Crianças morrem, e veem os seus morrerem, sem sequer entender o que está acontecendo

Escrito por
Maria Camila Moura verso@svm.com.br
Legenda: A fome de crianças palestina em Gaza escancaram a barbárie
Foto: AFP

No século XIX, Villesmessant, fundador do jornal francês Le Figaro, afirmou que um incêndio no Quartier Latin, em Paris, seria mais importante, para seus leitores, que uma revolução em Madri. Ao dizer isso, Villesmessant expressa que a proximidade (seja geográfica, emocional ou simbólica) determina a importância de um acontecimento. Ou seja, a relevância de um acontecimento não depende de sua gravidade, mas de sua proximidade.

Mais de cem anos se passaram e esta lógica permanece intacta ainda que sob novos disfarces. Não é difícil perceber que hoje, escândalos de subcelebridades, dancinhas banais e até mesmo um doce de morango capturam mais atenção que eventos graves como guerras reais e crises humanitárias que estão em curso.

No entanto, o mundo mudou, não é mais como nos tempos de Villesmessant – a esfera digital transpôs barreiras geográficas. Imagens e vídeos nos chegam dos confins do mundo. Nunca estivemos tão próximos de realidades tão distintas das nossas. Não fossem as redes sociais, talvez, eu jamais conhecesse o cotidiano de um bilionário; a rotina de treino de um fisiculturista; a intimidade do lar de certas mães.

O mundo digital nos aproxima de realidades distantes, mas desde que desejemos vê-las. A arquitetura dos algoritmos molda o mundo que vemos e, em grande medida, o mundo que vemos é exatamente o que desejamos ver. Basta não curtir, silenciar, não compartilhar que, rapidamente, o que me desagrada, desaparece de minha tela, muitas vezes, sequer me chega, como se não existisse.

Homem em protesto segura foto de criança palestina desnutrida
Legenda: Pessoas erguem fotos de crianças palestinas desnutridas para denunciar a escassez de alimentos na Faixa de Gaza
Foto: AHMAD GHARABLI / AFP

É assim que o horror que acontece em diversas partes do mundo é facilmente ocultável e, caso nos apareça, basta deslizar rápido para o próximo post.

Há algo de perverso no modo como rolamos o feed: deslizamos da imagem de uma criança faminta em Gaza, para um meme; das ruínas de um hospital em Gaza para um reels com filtros e legendas motivacionais; rapidamente passamos o dedo de um bombardeio para a ostentação de um influencer qualquer. Nesta lógica, até uma guerra se torna apenas mais um conteúdo – consumível e esquecível.

Ainda assim, algumas vozes têm abordado o conflito entre Israel e Gaza. Sabemos que até os nomes utilizados para se referir à carnificina denunciam posicionamentos – alguns chamam de genocídio, outros de retaliação; alguns de massacre, outros de guerra.

Este texto, no entanto, não pretende entrar em uma disputa semântica, não intenta discutir geopolítica, não pretende dissertar sobre Estados. Este texto se curva a uma outra urgência: as crianças de Gaza.

Crianças não tem lado, não possuem ideologia, não invocam doutrinas, não advogam por territórios. Não têm exército, não têm voz.

Crianças morrem, e veem os seus morrerem, sem sequer entender o que está acontecendo. Morrem de fome, de sede, de medo. Agonizam sem serem vistas, ou, de modo mais cruel, morrem sendo vistas e ignoradas.

Ao evocar o sofrimento infantil, recordo de Dostoiévski, que nos confronta com a seguinte pergunta “será que encontraremos absolvição para o mundo, para a nossa felicidade e até para a harmonia eterna se, em nome disso, para solidificar essa base, for derramada uma lagrimazinha de uma criança inocente?”. Ele mesmo responde com um não categórico: “essa lagrimazinha não legitima nenhum progresso, nenhuma revolução. Nenhuma guerra. Ela sempre pesa mais. Uma só lagrimazinha…”. Uma só lagrimazinha deveria pesar mais que qualquer projeto de civilização.

Veja também

A dor de uma única criança deveria bastar para paralisar as engrenagens da barbárie. Nenhuma doutrina, nenhum nacionalismo, nenhuma promessa de futura nação vale uma só lagrimazinha de um pequenino, não justifica a morte nos escombros, a desnutrição, os ossos evidentes e olhos opacos de crianças famélicas.

No entanto, fingimos não ver o que está acontecendo. Domesticamos nosso olhar, treinamos nossos algoritmos para nos oferecer amenidades e preservar a leveza. E assim, de modo quase imperceptível, contribuímos para a invisibilidade de milhares de crianças.

A dor delas continua, mas não mais nos alcança.

Diante do sofrimento infantil, não é possível haver neutralidade moral. Tomar partido das crianças famintas de Gaza não é tomar partido do Hamas, não é desconsiderar possíveis atrocidades anteriores ou ignorar as complexidades do conflito – é apenas declarar que existe uma humanidade que precede a política, que antecede qualquer geopolítica, nacionalismos e doutrinas.

Tomar partido das crianças de Gaza é dizer que nenhuma estratégia militar justifica o horror que está acontecendo, é recusar a imoralidade de uma suposta neutralidade; é dizer, sem hesitação: não importam as circunstâncias, isso é intolerável. A indiferença não é neutra, é um posicionamento extremamente perverso.

Sim, nossas vidas precisam ser tocadas – continuamos a trabalhar, a pedir comida por aplicativos, a trocar memes. Mas é preciso saber: enquanto nos distraímos, neste instante, milhares de crianças choram sem abrigo, sem comida e sem futuro. Sabemos de nossa impotência diante do conflito, mas não podemos nos acomodar ao horror. Tocar neste assunto cansa, provoca atritos, abre espaço para discussões cruéis, não gera likes,

Veja também

no entanto, o silêncio é ainda mais corrosivo. A indiferença voluntária é imoral, a omissão é cúmplice do mal.

Nossas redes sociais, nossos grupos de Whatsapp, nossas conversas de bar poderiam ser espaços de resistência ética. Não se trata de ativismo ou militância, trata-se de humanidade.

Vivemos cercados de discursos que proclamam amor às crianças – mas um amor abstrato, sem atos concretos. Facilmente encontramos pessoas que dizem que a inocência das crianças deve ser protegida, que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) deve ser respeitado, mas essas mesmas pessoas se calam diante de pais que abandonam filhos, não censuram amigos que não pagam pensão corretamente, não intervém ao verem crianças serem maltratadas em espaços públicos e ignoram crianças mortas por mísseis.

Conhecemos uma pessoa mais por aquilo a que ela se opõe, pelo que combate, do que pelo que declara amar.

Talvez estas linhas sejam apenas um gesto inútil, um pequeno convite ao combate à barbárie que está acontecendo em Gaza. Talvez este texto seja apenas uma tentativa de não desviarmos os olhos daqueles que sofrem; um registro ético pelos pequeninos carcomidos pelo horror. Há algo de obsceno em seguir indiferente diante do choro de crianças famélicas.

Nossa voz, certamente, é impotente diante da máquina da guerra. Nosso desconforto é estéril – não cessa fogo, não resgata ninguém de escombros, não sacia a fome, não muda o curso da História, mas sinaliza que não somos cúmplices.

Creio, ainda, que mais do que nossas denúncias infrutíferas e discursos inflamados, as crianças de Gaza necessitam de algo mais íntimo: nosso luto e nossa vergonha – resíduos morais, resquícios de humanidade, últimos sinais de que ainda não estamos plenamente adaptados ao inumano, à barbárie.

Luto e vergonha - não apenas pelas crianças dilaceradas, mas por um mundo moribundo, em colapso afetivo, que insiste em desviar o olhar do peso esmagador de uma só “lagrimazinha”.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora