Risos que silenciam: mulheres sob os holofotes do ridículo
Hoje mulheres são diminuídas e desautorizadas não por meio de uma política institucionalizada, mas por meio do riso zombeteiro

Em nossa sociedade, a circulação de informações se dá em velocidade vertiginosa. Já não existem fronteiras geográficas - podemos ter acesso ao que acontece em qualquer parte do mundo. Neste contexto, em meio a um mar de conteúdos, aquilo que se escolhe colocar em evidência nos noticiários e em nossas redes sociais pode ser bastante revelador.
Recentemente, alguns episódios protagonizados por mulheres viralizaram: a quebra de um protocolo diplomático por parte da primeira-dama; a influenciadora, trajada de modo infantil, que, em plena CPI, suga um microfone achando tratar-se de seu canudo; mulheres que buscaram o SUS para atendimento de seus bonecos reborn; a moda de mulheres passarem horas a fio pintando ursinhos fofinhos Bobbie Goods; as ‘trad wives’, mulheres que celebram a submissão doméstica à la anos 1950; e, ainda, as “esposas-troféu”, com suas rotinas fúteis.
Curiosamente, o denominador comum destes episódios é a preocupante maneira como a figura feminina é retratada. Nestas notícias, a mulher é apresentada como uma figura risível, infantilizada, fútil, desprovida de densidade intelectual. Estas notícias reforçam, de modo sutil, mas eficaz, estereótipos femininos empobrecedores, ajudando a tornar a figura feminina um objeto de escárnio.
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É evidente que, se tais episódios existem, eles podem e devem ser noticiados, afinal, refletem a pluralidade do comportamento humano. Não se trata de negar ou silenciar tais fatos, mas de problematizar a ênfase que lhes é dada e compreender suas possíveis implicações. Friso, também, que não se trata aqui de moralizar comportamentos individuais. Toda mulher deve ser livre para vestir o que quiser, se chamar de troféu se assim desejar, ser submissa se assim escolher.
A liberdade, inclusive a liberdade de ser fútil, é um valor inegociável. A questão central aqui é outra – por que são essas as manifestações do feminino que ganham espaço na esfera pública? Por que internautas, editores e algoritmos escolhem estes recortes de mulheres? O que isso diz sobre nós?
É preciso compreender que em meio a uma torrente de informações, o que ganha visibilidade em noticiários e redes sociais não é mero fruto do acaso. Aquilo que compartilhamos, que algoritmos multiplicam e jornais veiculam, está intimamente ligado ao nosso olhar coletivo.
Quando reiteramos, por meio de compartilhamentos e curtidas, notícias que vinculam mulheres ao risível, ao fútil, ao frívolo, estamos, sem nos darmos conta, contribuindo para uma visão medíocre e distorcida do feminino. Sem nos darmos conta, estamos fomentando uma opinião coletiva sobre as mulheres que não é nada lisonjeira.
O compartilhamento desse tipo de conteúdo parece inocente. Essas notícias, por vezes, se travestem de certa leveza – afinal, em um cenário global de crises e guerras, falar de bebês reborn ou sobre pintar ursinhos fofinhos parece um alívio. No entanto, esta estética da distração, aparentemente inofensiva, pode ocultar uma lógica antiga: a deslegitimação da mulher.
Quanto mais compartilhamos ou nos engajamos com notícias que associam mulheres a frivolidades, a seres infantis, fúteis, com sérias fragilidades cognitivas, estamos reforçando estruturas simbólicas que desmerecem as mulheres, que as colocam em um lugar subalterno.
Historicamente, as mulheres foram marginalizadas, preteridas por meio de dispositivos legais e institucionais. Mas, graças à luta de muitas que nos antecederam, superamos discriminações outrora legalizadas. Entretanto, é preciso estar atento: hoje não são códigos e leis excludentes que nos marginalizam, mas cliques, compartilhamentos e curtidas de notícias que retratam mulheres como seres risíveis. Hoje, as mulheres são diminuídas e desautorizadas não por meio de uma política institucionalizada, mas por meio do riso zombeteiro.
Há, obviamente, incontáveis mulheres extraordinárias, relevantes para a humanidade: mulheres que lideram pesquisas científicas, que são agentes de transformação em suas comunidades, artistas etc. No entanto, os holofotes se voltam para figuras toscas, como influenciadoras performáticas.
A grande mídia e os algoritmos nos oferecem o que mais consumimos e isto nos leva a uma pergunta incômoda: por que consumimos e compartilhamos, com entusiasmo, notícias como estas? O que em nós, enquanto sociedade, encontra prazer em retratar mulheres de modo frívolo? Por que silenciamos mulheres relevantes e damos palco para subcelebridades lambendo microfones?
A presença de figuras pitorescas e a ausência de mulheres relevantes nos noticiários e feeds não parece mero acaso, mas um problema estrutural: a continuidade de uma estrutura social que apequena e exclui mulheres. Para romper com esta nova forma de opressão, é preciso compreender que, em tempos digitais, a visibilidade é um poderoso capital simbólico. Devemos ser mais criteriosos com o que escolhemos compartilhar. Nosso olhar precisa ser reeducado.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora