Pessoas-patrimônio: os fortalezenses que transformam a realidade dos locais onde vivem
A mulher que conecta pessoas ao mar e luta pela permanência do Titanzinho. O capoeirista capaz de transcender os limites da arte e incorporar pensamento crítico e político à prática. A dona de casa cuja atuação envolve guardar santinhos de missas de sétimo dia de moradores da comunidade para não deixar a memória escapar.
São algumas das pessoas-patrimônio de Fortaleza, mapeadas pelo projeto "Patrimônio para Todos", da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho. Gente que, não contente em nascer e morar na cidade, quer transformá-la, fazê-la um lugar melhor a partir de atitudes tão simples quanto revolucionárias. Na raça e na coragem, imprimem muito de si nos lugares e inspiram toda uma população a agir diferente: a favor da dignidade e do amor.
Nos 298 anos da capital cearense, celebrados neste sábado (13), embarcamos na trajetória desses personagens enquanto atravessamos a metrópole por meio do especial “Fortaleza: Que História é Essa?”.
A proposta da série de reportagens é apresentar lugares, pessoas e eventos históricos marcantes na existência de Fortaleza, mas que nem sempre são lembrados no cotidiano da cidade.
Das estruturas memoráveis em concreto aos verdadeiros museus em carne e osso, há muita vida pulsando nas artérias abertas do município. Vida que se amplia e encontra ginga certa em Robério Batista. “Capoeira é resistência, é local de força. É esse tipo que a gente leva para a Serrinha”, atesta o fundador do Centro Cultural Capoeira Água de Beber e morador do bairro há mais de 40 dos 51 anos de idade.
A definição do Mestre Ratto, como é conhecido, não por acaso ecoa a polissemia de “Fortaleza”, que em inicial maiúscula diz da Cidade e, em minúscula, da qualidade de ser forte. Manifestação cultural ancestral, a capoeira é fortaleza das raízes à prática contemporânea, em especial entre jovens como aqueles atendidos pelo projeto na Serrinha.
Na trajetória de Robério, ela acompanha o hoje professor desde os nove anos, a partir da influência de um irmão mais velho, Ricardinho. Os anos de aprendizado com ele e outro mestre, Paulão, culminaram, há 22 anos, na fundação da Associação Capoeira Água de Beber.
“Quando a gente criou, foi por necessidade de algo mais voltado para o lado da educação. A vocação pedagógica surge como forma de ir ‘além das pernadas’, o que quer dizer uma capoeira ligada à história dela, das pessoas na comunidade, da juventude”, explica o mestre.
“Capoeira é divisor de águas de desenvolvimento intelectual e de identidade de um povo. Quando ele se apropria da própria raiz, fica mais inteligente, saudável, sabe o que quer”, atesta. Fortalecimento de autoestima na gênese – quando começou a ser praticada por negros escravizados como forma de manter tradições –, ela segue cumprindo tal papel junto às mais de 50 famílias atendidas pelo trabalho na Serrinha, atingindo de crianças a idosos.
A “própria raiz” citada pelo mestre é frequentemente tema de debate e reflexão nas atividades do grupo, que insere no dia-a-dia ensinamentos sobre culturas afro-brasileiras e indígenas.
Veja também
“A gente não tem que chegar no jovem querendo impor. Tem que ser pelo lado artístico, motivacional, da cultura. Através da vontade que ele tem de praticar capoeira, introduzimos essas diretrizes”, segue Robério. Fala-se, então, sobre assuntos do cotidiano dessa juventude – da violência à questão racial, por vezes pouco debatidos e pensados.
A mudança não é da forma que a gente gostaria, mas já percebemos bons resultados nesses 22 anos. A gente vê hoje cada vez mais as pessoas vivendo muito separadas, e a capoeira tem esse poder de unir.
Para Mestre Ratto, é preciso evidenciar a prática “na perspectiva de construção” – quiçá de outra Fortaleza. “Ela pode ser mais aproveitada em instituições na área da segurança pública, da educação”, sugere. “O poder público ainda não reconhece isso. Nós, profissionais da capoeira, temos que ter esse olhar e trabalhar mais para que ele possa ver a capoeira com essa potência”, convida. Uma capoeira-Fortaleza.
As pessoas importam
Ivoneide Gois, 59, faz outro tipo de construção quando acumula fotos e mais fotos na própria casa, no Poço da Draga. É acervo sagrado. Por meio dele, consegue radiografar a cidade em diferentes épocas tendo como matéria-prima o que de mais relevante compõe a paisagem: os habitantes. “Guardo esses registros com muito carinho, gosto bastante”, diz.
Recorda de, quando adolescente, cantar no coral da Catedral Metropolitana de Fortaleza e receber santinhos de sétimo dia ao participar de cerimônias dessa natureza. Achava tudo muito especial. Começou, então, a guardar os papeizinhos, ainda que sem nenhuma pretensão. No correr do tempo, passou a reunir os dos moradores da comunidade onde vive.
“Todos os santinhos são importantes porque também tem muita gente da minha família – meu pai, minha avó, minha tia”. O do pai, por exemplo, o estivador José Maria da Silva, é seguido da frase: “Este é meu paizinho querido, está fazendo muita falta”. O da avó, por sua vez, dona Maria do Carmo Alcântara Gois, exibe: “Esta é minha vozinha, nos dávamos muito bem. Que esteja pertinho de Deus”.
É que Ivoneide sempre coloca uma graça escrita a próprio punho nesses recortes, ao mesmo tempo que tenta documentar algo de quem ali está. Os que têm acesso ao panorama, assim, conhecem não apenas os dados de vida e morte daquelas pessoas, mas sobretudo um pouco da história de cada uma na trajetória dela e do bairro em que moravam. Não é exagero dizer que a mulher é a contramestra da memória do Poço da Draga.
“Quando tô muito triste, pra baixo, vou lá e vejo esses retratos de quem já faleceu. Alguns se foram muito novos, podiam ter contribuído mais. Outros deixaram uma trajetória muito bonita. E assim eu me animo. Eles me dão força pra continuar a caminhada”, poetiza.
Nada mais importante do que patrimônio de pessoas, e eu sinto que isso impacta na vida de quem mora aqui. Às vezes, alguns não têm mais o santinho dos próprios parentes, mas encontram aqui comigo. Por um lado, fico feliz de fazer esse resgate; por outro, é triste saber que ninguém da família tem guardado o santinho. Mas eu guardo.
Estão selados também em livro. “Territórios da memória” foi lançado em 2019 na Bienal do Livro com iniciativa da Universidade Federal do Ceará. Nele, o acervo afetivo e encorpado de Ivoneide. Haverá outra edição da obra tão logo haja mais santinhos. “Não que eu deseje que as pessoas morram, pelo contrário: quero que elas vivam muito. Mas a morte vem e, com ela, a memória”.
Lembrança encravada no semblante de quem é e se faz fortaleza. Ivoneide se sente maior quando observa a praia, a um quarteirão de onde mora. Fica contente. Tem orgulho da terra, da reunião de santinhos, do sarau que promove semanalmente no bairro, de tentar criar a felicidade. Mas também protesta: “O que está faltando é a boa vontade dos políticos de melhorar mais nossa cidade. A mensagem que deixo pra Fortaleza é: que você sempre nasça todo dia com esse sol maravilhoso e o pôr do sol da praia, que é muito lindo”.
Guiada pelo oceano
Kátia Lima, 48, também saúda o lugar feito de areia e onda. Foi pela conexão com o mar que a guarda-vidas se tornou conhecida no Titanzinho. Virou mulher-peixe. Encontra na água salgada tudo o que precisa para viver: alimento, lazer, trabalho, amor.
“Aqui é muito mágico. É o bem-estar, a forma diferenciada de viver, o ar puro. Quem vem para cá se conecta e não quer sair mais”, destaca a fortalezense, uma das guardiãs do território e da história do Titanzinho.
É ali que ensina pessoas de todas as idades a nadar e a perder o medo do oceano. Não sente isso como missão, contudo. “É como se eu fosse guiada. Parece uma profissão de alma”.
Também é do mar que Kátia tira boa parte dos alimentos que consome, a partir do pescado natural comercializado na região. E, nas ondas, se diverte com familiares e amigos – costume da infância, quando brincava de pirata e rei no Farol do Mucuripe, hoje desativado.
As memórias não são apenas dela. São compartilhadas, parte de um mesmo tecido social. Só no entorno do farol, há moradias de 88 famílias que lutam contra a especulação imobiliária, o abandono do poder público e a poluição que chega ao oceano.
Pensando nisso, junto a cinco amigos da localidade – Dudé, Bebeto, André e Pedro –, a mulher-peixe fundou a Comissão Titan, criada em 2019 para defender o Titanzinho/Serviluz. Entre as principais bandeiras do grupo – em atuação conjunta com a Associação de Moradores do Titanzinho – está a luta pela permanência dos moradores na região, alvo de tentativas constantes de remoção.
O embate, segundo ela, é tanto com a prefeitura quanto com o Governo do Estado, mantenedor do decreto 34.451/2021, que permite a desapropriação de imóveis com fins de utilidade pública em Fortaleza.
A gente quer restauro, permanência, regularização. Nossas casas no mesmo lugar, sem remoção. Se não falamos disso, não temos como falar em Fortaleza, em luta, em aniversário.
Vislumbrando um futuro que só é possível vivendo no Titanzinho e para o Titanzinho, Kátia afirma que seu maior objetivo é ajudar a conscientizar as próximas gerações de moradores sobre a relevância da salvaguarda do território – já que é pouco provável acabarem as desigualdades que ameaçam o direito à moradia. “Enquanto vivermos, vamos passar esse legado de luta, porque a especulação imobiliária é uma luta sem fim”, pontua.
Para os próximos anos, a guarda-vidas espera que Fortaleza olhe com mais carinho para uma parte fundamental de sua história. Aguarda, esperançosa, por exemplo, o restauro do Farol do Mucuripe, para que outras crianças também possam brincar ali, como ela fez um dia.
A comunidade também espera a efetivação de um plano popular já existente, feito pela Comissão, com atividades de lazer e trabalho pensadas pelas pessoas que ali vivem. “Se nós moramos aqui, a gente é que sabe como o transporte leva a gente, como está a nossa segurança pública, quando falta a nossa energia. Eles têm muita dificuldade de receber o que a gente tem, mas a gente não fica de braços cruzados”.
Não à toa, encara o 298º aniversário de Fortaleza como data muito além da celebração. É momento para refletir e, a partir de um pensamento coletivo, forjar um futuro possível.
“Seria interessante que a prefeitura, o poder público, visse a nossa orla com bons olhos, mas não só no turismo, no momento festivo. Que a gente ande em Fortaleza durante todo o ano e não veja o mar poluído. Que a orla seja para todos, e que não haja desigualdade cultural e humana que existe em todas as áreas”, torce.
“É preciso que não só nossos lares sejam protegidos, mas nossa cidade seja abraçada, e toda a população seja abraçada de igual pra igual. Que trabalhem também para ajudar na nossa vida ambiental, porque isso faz parte da nossa saúde, do nosso lazer, do nosso alimento. E que a gente permaneça em harmonia”.