Os fios furtados e os descaminhos da cidade

No plano da vida cotidiana, os telejornais exibem imagens de homens arriscando suas vidas, pendurados em postes, para arrancar fios de cobre para a venda criminosa

Legenda: Furto de cabos elétricos acontece como uma prática comum em Fortaleza
Foto: Helene Santos

“Certa vez, cruzei por Fortaleza, cidade litorânea, bela e muito visitada, mas onde estranhamente, alguns de seus moradores furtam fios, portas de aço e tampas de bueiro”.

O trecho anterior até poderia compor um dos capítulos do livro As Cidades Invisíveis do magistral Ítalo Calvino. Não, lógico, pela qualidade das orações escritas por este colunista, mas sim pelo caráter exótico da situação narrada.

Uma pena que Calvino não teve a oportunidade de escrever sobre nossa capital. Com toda a certeza, ele construiria um livro apaixonante. Cheia de contradições, Fortaleza, decerto, é um bom exemplo da urbanização precária característica de países como o Brasil.

Legenda: Autoridades de planejamento e de segurança buscam formas de reduzir furtos
Foto: Helene Santos

Em primeiro plano: uma cidade rica, capaz de alcançar o top 1 entre as nordestinas no acúmulo de riqueza, como demonstra os dados do seu Produto Interno Bruto; tão rica que seus habitantes compram apartamentos com elevador privativo para automóveis.

No plano da vida cotidiana: dia a dia, os telejornais exibem imagens de homens arriscando suas vidas, pendurados em postes, para arrancar fios de cobre para a venda criminosa. Como explicar essa insanidade? Afinal, numa sociedade onde se chega ao ponto de tal prática tornar-se comum acende-se um sinal para reflexão. 

Os acelerados e, cujo pensamento é linear, não teriam dúvidas em concluir: “isso é caso de polícia”; “cidade cheia de delinquentes, cadeia neles”; “Põe a polícia na rua e prende todos os malfeitores”.

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Para o pensamento dialético, mais complexo, o caso frequente dos furtos de fios, das tampas e dos portões permite refletir sobre a sociedade em construção, a cidade em construção, a cidade da desigualdade persistente.

Os homens que furtam fios e que se arriscam por tostões – morrem eletrocutados - enriquecem líderes de quadrilhas e receptadores; esses sim, alcançam riqueza com a prática criminosa. Porém, os “trepadores-de-poste” são “desgraçados” para os quais o senso de patrimônio ou coletividade pouco importa frente a uma cidade/sociedade que potencializa a desigualdade.

De fato, o que vale mais: quilos de cobre ou a vida (desperdiçada pelo crime ou pela morte)? Quando chegamos ao ponto onde o cobre vale mais que a vida é sinal que essa cidade perdeu a noção de urbanidade.

As forças policiais, como em qualquer situação, devem fazer seu trabalho, coibir e investigar o esquema e encontrar os arquitetos da prática criminosa, muito provavelmente os magnatas do fios.

E as forças civis? Socialmente, é necessário conhecer o perfil dos que estão na ponta – os “trepadores-de-poste”. Qual a idade média? Eles tem uma residência? Se sim, em que bairros residem? Quando e por que se envolveram nesse tipo de furto? São pais? “Nasceram” criminosos? São reincidentes?

Legenda: Os acelerados e, cujo pensamento é linear, não teriam dúvidas em concluir: “isso é caso de polícia”
Foto: Helene Santos

Acredito que a partir dessas informações chegaremos a elementos concretos e também será possível pensar políticas públicas e práticas sociais eficientes no cuidado com o patrimônio público e no cuidado com os habitantes da nossa rica e desigual cidade.

Na análise aqui empreendida, não se trata de classificar ninguém como bonzinho ou coitadinho, porém avaliar como os casos cotidianos (e o caos) são capazes de demonstrar o quanto precisamos avançar para uma cidade – verdadeiramente – próspera. 

Enquanto noticiarmos o caso dos “trepadores-de-poste” (ou outros semelhantes), estaremos bem distantes da cidade justa que almejamos. 

 

Este texto reflete a opinião do autor.