O abuso sexual e as dores além do corpo

O abusador se beneficia de uma relação assimétrica de poder sustentada pela desigualdade de gêneros e alimentada pelo patriarcado

Escrito por
Alessandra Silva Xavier producaodiario@svm.com.br
Legenda: O Anuário de Segurança Pública do Brasil de 2023 indica que, em 2022, foram registrados 74.930 casos de estupro e estupro de vulnerável no País. Cerca de 75,8% das vítimas eram menores de 14 anos

Quando alguém sofre abuso, o desejo fica submetido ao domínio do outro e o prazer pode se associar a dor, submissão, culpa e sofrimento, desencadeando repercussões que vão além dos aspectos físicos. Muitas pessoas, em sua grande maioria mulheres e adolescentes, têm que experimentar revitimização ao fazerem a denúncia ou contarem para pessoas próximas, tornando-se alvo de julgamento, como se a vítima fosse a responsável pela perda do controle ou bestialidade do outro, engajando um jogo perverso de culpa, vergonha e humilhação.

Uma pessoa pode, fisicamente, sentir uma excitação mesmo diante de uma situação violenta. Isso pode conectar-se com aspectos sádicos e fantasias de controle, poder, dominação e punição. Possuir essas fantasias não significa que alguém deseja o estupro.

Entretanto, a existência de ambivalências decorrentes de experiências de submissão e violência pode alimentar as fantasias que relacionem culpa, vergonha e excitação, passando a permitir somente relacionamentos destrutivos ou que acarretem dor, submissão e sofrimento em relações posteriores.

Caso seja alguém que possua uma história já marcada pela vergonha, pelos ataques, pela culpa, pelas cobranças e pelas imposições, ou que vivencie alguma invisibilidade social, pode ser mais difícil reconhecer a violência sofrida e a legitimidade de cuidados e punição para os agressores.

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Geralmente, o abuso ocorre diante de uma relação de poder, onde o agressor utiliza-se de diversos mecanismos de manipulação: desde o poder simbólico, institucional ao financeiro, confundindo e distorcendo as experiências e sentimentos do outro para se beneficiar da impunidade.

Os agressores beneficiam-se de uma cultura patriarcal, das desigualdades de gênero e de classe e do racismo estrutural. Pois o perfil das pessoas que sofrem abuso, segundo o Anuário de Segurança Pública do Brasil de 2023, indica que, no ano de 2022, foram registrados:

  • 74.930 casos de estupro e estupro de vulnerável no Brasil;
  • 61,4% das vítimas tinham até 13 anos (10,4% de até 4 anos, 17,7% de 5 a 9 anos e 33,2% de 10 a 13 anos);
  • Cerca de 75,8% eram menores de 14 anos, enquadradas como “estupro de vulnerável”.

Além disso, 88,7% das vítimas eram mulheres e 56,8% eram pretas ou pardas, enquanto 42,3% eram brancas, com os agressores sendo em sua maioria conhecidos ou familiares (82,7%) e os abusos frequentemente ocorrendo na residência da vítima (68,3%).

Segundo o Boletim Epidemiológica do Ministério da Saúde de 2023, entre 2015 e 2021 foram registradas 202.948 notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes, sendo 35.196 apenas no ano de 2021.

A residência foi o local da agressão em 70,9% dos casos contra crianças (0 a 9 anos) e em 63,4% dos casos contra adolescentes (10 a 19 anos). Familiar ou pessoa conhecida foi responsável por 68% dos ataques contra crianças e 58,4% contra adolescentes.

A maior parte dos agressores é do sexo masculino — mais de 81% no caso de crianças e de 86% no de adolescentes —, enquanto as vítimas majoritariamente são meninas — 76,9% entre crianças e 92,7% entre adolescentes.

Diante desses dados observa-se a prevalência das violências sobre mulheres e meninas e a proximidade com o agressor, além da violência ocorrer no ambiente doméstico.

Quando alguém sofre algum tipo de violência sexual (estupro, estupro de vulnerável, assédio sexual, abuso sexual, exploração sexual, violência sexual em conflitos armados, compartilhamento de imagens íntimas sem consentimento), ocorre uma mudança na relação consigo e com os outros.

Pode acontecer a quebra de confiança, afetar a esperança, mobilizar fantasias de dominação, desejos de submissão e controle, desencadear atos de agressividade contra si, interferindo nas experiências sexuais e amorosas posteriores.

As marcas inseridas ao corpo podem permanecer por anos, como se um invasor tivesse adentrado a sua casa sem consentimento e você, por mais que trancasse as portas, encontrasse constantemente com ele transitando pela habitação, lhe assustando e apavorando.

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A sensação de não poder descansar na segurança e proteção do próprio corpo pode ser exaustiva e muito dolorosa. Se o corpo é a primeira fronteira que abrigará a experiência de um sujeito, tais invasões podem interferir na própria sensação de tomar posse de si e na construção da identidade.

O abusador se beneficia de uma relação assimétrica de poder sustentada pela desigualdade de gêneros e alimentada pelo patriarcado e seu contínuo discurso de manipulação dos corpos e da sexualidade feminina.

Menina negra sentada, com semblante triste
Legenda: Segundo o Boletim Epidemiológica do Ministério da Saúde de 2023, foram registradas 202.948 notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes entre 2015 e 2021
Foto: Maya Lab/Shutterstock

A linguagem afetiva das crianças é diferente da linguagem erótica dos adultos. Quando não encontram compreensão e acolhimento e acontecem distorções e invasões a respeito do que a criança sente, operam-se clivagens e desconexões com a imagem de si.

Sempre acredite nas denúncias de crianças e adolescentes. Não culpabilize a vítima. Ofereça um espaço para escuta protegida e qualificada.

Além disso, é importante a implementação de políticas públicas que abordem direitos humanos, sexualidade, criação de protocolos intersetoriais, capacitação de profissionais, estratégias em escolas e comunidades sobre prevenção da violência, expressão e vivência da sexualidade, responsabilização dos agressores.

Os canais para a denúncia são sigilosos e a mesma pode ser feita de forma anônima 24 horas por dia. Pode acessar o Disque 100, delegacias online, delegacias da mulher, Ministério Público e Conselho Tutelar para situações que envolvam crianças e adolescentes.

Caso esteja em perigo imediato, deve-se ligar 190 para a polícia. O atendimento médico pode incluir profilaxia para HIV/Aids e Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e está disponível 24h no Sistema Único de Saúde (SUS), além da importância em receber acolhimento psicológico.

Quando silenciamos sobre esse tema, nos fragilizamos enquanto sociedade, legitimamos a violência em detrimento do amor e do cuidado e fortalecemos preconceitos e desigualdades.

*Esse texto representa, exclusivamente, a opinião da autora.

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