A capacidade de reparação do que nos envergonha

Reconhecer erros, aprender com eles e envergonhar-se da destrutividade, da beligerância e dos abusos nos orienta a crescer individualmente e em sociedade

Escrito por
Alessandra Silva Xavier producaodiario@svm.com.br
Legenda: A vergonha e a culpa possuem um papel necessário e estruturante na subjetividade e na vida social
Foto: Rapha Wilde/Unsplash

O sentimento de culpa e vergonha passa a nos atravessar ao mesmo tempo em que nos constituímos humanos. Inseridos no universo da cultura e da sociabilidade, a civilização nos cobra que sejamos capazes de colocar limites aos nossos desejos, para regular a relação com o outro e, assim, permitir e garantir a sobrevivência, a proteção e os processos necessários ao laço social.

Não poder fazer tudo que desejo, entender que existem limites por mais dolorosos que sejam, ser capaz de dar vazão aos desejos horríveis de formas socialmente aceitas, capacita a entrada na civilização. Entretanto, tais desejos não desaparecem.

A prova de que desejamos coisas que podem nos destruir e causar danos encontra, na existência de inumeráveis códigos e leis que irão reger a vida social, sua comprovação. Pois para cada lei que existe, se é necessária a sua existência, é porque existe o desejo correspondente que precisa ser cerceado.

Ou seja, se existe a lei com a punição para matar, é porque essa possibilidade e esse desejo existem. Então, para além dos livros de psicanálise e das artes, os códigos civis, penais, as leis constitucionais, dizem dos desejos que nos habitam.

Quando internalizamos esse conjunto de códigos que se entrelaçam em nossa identidade, passamos a ter regulações não somente externas, mas internas das nossas condutas. Assim, começamos a experimentar a vergonha e a culpa.

Quando exacerbadas, podem mobilizar o deslocamento de pulsão de morte sobre si e levar o sujeito a sofrer, ao se avaliar enquanto falho diante das exigências e expectativas que erigiu sobre si, e ocasionar quadros de muito sofrimento que podem desembocar em inúmeros transtornos mentais.

Veja também

Quando crianças são alvo de adultos embrutecidos e raivosos ao longo de seu desenvolvimento; quando receberam comunicações e comportamentos hostis, violência e ameaças daqueles que não sabiam cuidar, podem desenvolver uma espécie de anestesia emocional e sentirem-se sempre culpadas pelos atos dos adultos, comportando-se de forma subjugada e submissa, negando seus próprios sentimentos e destinando a raiva contra si.

Desta forma, a culpa atuaria enquanto elemento destrutivo e desorganizador da existência, dirigindo contra si uma fúria imperdoável que se torna justiceira e algoz de si, reverberando internamente, as vozes externas que tanto lhe julgaram. Quando o rigor consigo é exacerbado há sempre medo e tensão.

Aqueles que são mais exigentes, perfeccionistas, são os que olham sobre si em constante vigília e julgamento e, consequentemente, possuem mais chances de se atacarem diante dos erros.

Entretanto, a vergonha e a culpa possuem um papel necessário e estruturante na subjetividade e na vida social. Sem a vergonha, os limites e as falhas, não seriam sentidas. Sem a culpa, os limites do outro e o outro não seriam vistos, assim como os impactos destrutivos dos nossos atos.

Sem esses elementos,  que apresentam nossos limites, nossas falhas e nossas dores pelas perdas idealizadas de nós mesmos, não seríamos capazes de desenvolver a reparação e avançar no processo civilizatório. Reconhecer erros, aprender com eles, envergonhar-se da destrutividade, da beligerância e dos abusos nos orienta a crescer individualmente e em sociedade.

Veja também

Quando a vergonha nos ajuda a redefinir a imagem que temos de nós, a perceber que podemos falhar e, mesmo assim, nos perdoar, seguir, aprender, fazer reparos sobre os erros, restaurar os danos, ela nos organiza e estrutura enquanto uma imagem que se permite crescer, aprender e que exige de si na justa medida do quanto se ama e se valoriza.

Entretanto, se a culpa e a vergonha não podem ser assimiladas porque são impossíveis de serem reconhecidas ou aceitas, porque desmontam a minha exigência de perfeição e capacidade de atender às expectativas dos outros, podem ser fonte de desorganização e desestruturação ao não permitir integrar o vivido, não poder pensar nem conviver com o ocorrido, levando a uma postura de submissão e raiva de si.

Quando falho diante de quem amo ou diante de quem tenho expectativas em agradar — professores, chefes, familiares, amigos —, a sensação de vergonha pode impulsionar o desejo de fugir e se atacar. A vergonha pode criar casulos que incubarão medos, ansiedades e culpas robustas que enrijecem a vida e tornam a pessoa refém da desculpa e da aceitação do outro.

Quando falhamos e podemos avaliar os erros, falar a respeito, nos desculpar, praticar justiça restaurativa, aprender, perdoar e readequar a nossa imagem a uma visão mais realista, onde cabe o erro, a falha, os absurdos; pode ser possível voltar a confiar no nosso amor por nós e na capacidade de sermos amados em nossas impotências.

Poder reconhecer o que nos envergonha somente se torna possível ao aceitar os absurdos dos desejos que existem em nós e que nem sempre será possível ter controle sobre o que nos acontece, mas que é possível se responsabilizar.

Veja também

Geralmente, quando estamos cansados, tristes, doentes, solitários, com dificuldade em pensar com clareza, a possibilidade de fazermos algo destrutivo aumenta consideravelmente. Nessas horas, se fizermos algo que nos envergonha, será necessário acolher a criança envergonhada dentro do adulto e lembrar que, se você a maltratar ainda mais, só estará alimentando sua solidão e tristeza, que são combustíveis para mais danos e culpa.

Escute-se, perceba-se, procure ajuda profissional caso você se maltrate e observe que seus erros não são perdoáveis e que em vez de lhe permitirem avançar no mundo e nas relações, lhe congelam, atrelando o medo de errar ao medo de existir.

*Esse texto representa, exclusivamente, a opinião da autora.