Raça, classe social, gênero e sofrimento psíquico
Atitudes contra discriminação social, racismo e em busca de igualdade de gênero e justiça social, também são lutas a favor da saúde mental
Devido à forma como o adoecimento foi apropriado ao longo da história pelo saber médico, o qual se destinava inicialmente, a um olhar sobre o corpo buscando os mecanismos biológicos e as compreensões anatômicas relativas ao processo saúde-doença, o entendimento de que o sofrimento é permeado por outros aspectos que não somente os agentes etiológicos, hereditários e alterações anatomofisiológicas, só foi possível à medida que outros olhares e saberes puderem se desenvolver a respeito da compreensão do humano.
O entendimento acerca do adoecimento e do sofrimento, contemporaneamente, não pode prescindir de um olhar sobre a subjetividade, ou seja, compreender a história do sujeito, seus medos, seus recursos, seus afetos, sua rede de apoio, suas vivências, seus desejos, suas fantasias, como a sua história de vida dialoga com seu adoecer e sua saúde. É fundamental conceber que na história de um corpo físico há um entrelaçamento com um sujeito psíquico e social.
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Tal olhar, nos permite interpretar como determinados adoecimentos afetam populações específicas e como possuem relação com a forma de viver, as condições sanitárias, habitacionais, econômicas, políticas, com o acesso a políticas públicas de educação, saúde, seguridade social e dialogam com a cultura e as práticas desenvolvidas no território.
Assim, podemos pensar como certos problemas de saúde podem ter relação com o tipo de trabalho que realizamos, com condições insalubres de moradia e trabalho, com ausência de equipamentos de proteção individual, de projetos ergonômicos, situações de pressão e falta de apoio e de suporte da gestão, falta de reconhecimento e remuneração dignas e condições históricas de desigualdade e falta de acesso a condições dignas de vida, que não dependem da pessoa.
Infelizmente, existe uma ideia no imaginário popular, de que o sofrimento seria algo apenas individual, por ser sentido por um sujeito e vivenciado em um corpo. Tal compreensão, reduz a responsabilização sobre as políticas públicas, o papel do Estado e de setores privados na manutenção da vida e dos cuidados.
Alguém pode contrair uma infecção causada pelas más condições de higiene do ambiente de trabalho, pelo contato com outras pessoas que vivem em condições insalubres, pela falta de acesso à vacina, por precarização da vida, pela falta de recursos para se cuidar. De acordo com a classe social, essa pessoa pode não ter acesso a exames, medicamentos, pode não ter direitos trabalhistas que lhe protejam de ficar dedicada aos seus cuidados.
Por conta da sua raça pode não ter acesso a postos de trabalho com melhores condições, pode ser destinada a trabalhos aviltantes, pode sofrer preconceito e estigma ao procurar ajuda. Dependendo do gênero, pode ser cobrado que tem que ser forte e que deve trabalhar mesmo doente, pode ser alvo de preconceitos ao ser chamada de fraca e que está com “mimimi”, fazendo com que negue a doença, esconda que precisa de ajuda ou até mesmo considere que nem merece ajuda ou cuidado porque foi educada a sempre estar no lugar da que cuida.
A forma como vivemos, o lugar social que ocupamos, os privilégios a que temos acesso ou as situações de rejeição, exclusão e opressão a que somos expostos possuem relação direta com o nosso sofrimento.
Situações que envergonham, humilham, desprezam, desqualificam, violentam, excluem; falas que dizem sobre o que pode e não pode ser sentido, que legitimam lugares de submissão e aceitação do sofrimento, criando castas sociais que esvaziam a dignidade humana; intolerância, ignorância, medo de não poder ser quem se é e expressar o amor que se sente, produzem sofrimentos e adoecimentos que dizem das relações de classe, dos racismos e de como o gênero e as cobranças e expectativas construídas sobre as pessoas a partir do seu sexo biológico, serão sentidos diante do olhar do outro em sociedade, principalmente na produção de desigualdades entre homens, mulheres e pessoas não-binárias.
Preste atenção ao seu redor: quantas vezes o seu trabalho lhe adoeceu, quantas vezes, por conta da cor da sua pele, você experimentou ansiedade, medo? Quantas vezes por conta do seu gênero sofreu violência, discriminação, assédio, dificuldade de acesso a trabalho e cuidados que lhe causaram sofrimento?
Atitudes contra discriminação social, racismo e em busca de igualdade de gênero e justiça social, também são lutas a favor da saúde mental.
*Esse texto representa, exclusivamente, a opinião da autora.