Solidariedade nos e-sports: Locadora no Ceará arrecada doações para crianças carentes jogarem
Já famosa na cidade de Frecheirinha, a locadora resiste ao tempo
Ter o controle nas mãos pode levar a um mundo cheio de possibilidades. Cercada de nostalgia e alimentada por modernidade, uma locadora de videogame transforma a rotina dos moradores da cidade de Frecheirinha, a 283 km de Fortaleza, no norte do Ceará. Além de levar diversão, a Railander Games abriu as portas para a solidariedade. Vicente Façanha, dono do empreendimento, lançou uma campanha nas redes sociais a fim de receber doações e possibilitar que crianças carentes joguem gratuitamente. Assim Pedrinho chegou ao local com R$ 2 e viralizou ao perguntar se conseguiria brincar com os jogos e viralizou.
RAILANDER GAMES
A inspiração para o nome veio do filme Highlander, de 1986. O roteiro traz a história de Connor MacLeod, um guerreiro imortal escocês. O nome do empreendimento, fundado há oito meses, também é o apelido de Vicente. Conhecido como “Railander da locadora”, ele é tecladista de forró, entregador de pães, mas tem no negócio a principal fonte de renda da família.
"Tive a ideia de colocar a locadora. É até raro achar uma. Aí coloquei nas redes sociais para saber se algum seguidor queria doar hora (em jogo). Eles fazem o pix e eu transformo em horas para crianças carentes. A única ressalva que faço para elas terem direito a hora grátis é estarem matriculadas em algum colégio", disse Vicente.
Eu via a dificuldade das crianças em jogar, tinha mais adultos. Como a cidade é pequena, elas perguntavam quanto era e iam embora. Como meus seguidores começaram a aumentar, tive a ideia de pedir ajuda para eles patrocinarem as horas para as crianças jogarem. Faço vídeo agradecendo e digo o nome das pessoas que estão doando. Vou juntando, colocando e prestando conta.
Assim, o local se transformou numa ponte de solidariedade. Toda criança carente, abaixo de 15 anos, tem direito a uma hora gratuita paga por um doador. São cerca de 30 a 40 horas diárias pagas por gente de São Paulo, Minas Gerais, Japão, Austrália, Portugal. Pessoas de vários estados e países são responsáveis pelo divertimento dos pequenos da cidade de 12 mil habitantes.
“Recebo muita mensagem de apoio, o pessoal elogia. A professora vem na Railander Games e dá os parabéns. Depois do início do projeto as crianças até estão mais esforçadas para não perder o direito de jogar videogame. Graças a Deus está dando certo”, ressaltou Vicente.
O local tem sete televisores e custa entre R$ 5 a 7 reais a hora, a depender do videogame escolhido, entre Playstation 2 ou 4, XBOX 360 ou Serie S. Os jogos preferidos dos frequentadores, que vão de crianças de cinco anos até pessoas com mais de 50, são futebol, Dragon Ball, Naruto, GTA (ação e aventura) e Mortal Kombat (artes marciais).
Vicente registra cada doação recebida e presta contas nas redes sociais. Tanto para o público saber a destinação do dinheiro como para agradecer. Não há um valor mínimo para contribuir. Além do músico, a esposa e o filho ajudam a tocar o negócio.
E-SPORTS E SOLIDARIEDADE
Os seguidores de Railander nas redes sociais vieram após o flagra de Ana Carla. A gamer e designer gráfico de 30 anos fala sobre o tema nas redes sociais. Ela passava de moto pelas ruas do município quando notou o estabelecimento, fez uma fotografia e publicou no X.
“Quando passei me deparei com a cena… Várias tvs, crianças jogando.. Me despertou um ar de familiaridade. Resolvi tirar foto, e tomou proporções gigantescas. Dias depois o Railander ligou, fiquei em pânico achando que ele poderia estar chateado por eu ter divulgado o telefone dele, por ter viralizado. Mas ele disse que tinha gente de todo lugar mandando pix pra ajudar a criançada a jogar, ou mesmo apenas por ter se lembrado da infância”, relembra a gamer.
"Ela postou a foto e, graças a Deus, as coisas têm melhorado... Os fregueses, os doadores, do pessoal que gosta de video game. Graças a Deus sempre tem doação e vou colocando para as crianças jogarem. Assim vou mantendo meu negócio e ajudando as crianças que não podem pagar", ressaltou Railander.
Foi assim, em busca de diversão, que o pequeno Pedro Viana chegou de bicicleta, sem o conhecimento dos pais e com dois reais na mão para jogar. Tímido, não sabia se a quantia seria suficiente para custear a hora na locadora. O momento foi registrado em vídeo por Railander e publicado nas redes sociais. As imagens ganharam a internet.
Fui lá para jogar, ele deixou com dois reais. Eu gosto muito de jogar GTA, de bola e de andar de bicicleta. Eu tô bem na escola. Tirei 7, 8, 9. Esqueci de dizer, já estou quase aprendendo a ler.
"Ele ia escondido, de bicicleta. Pediu R$ 2 reais ao pai, que não tinha levado a carteira. Aí um rapaz deu a ele. O pai nem sabia o que era. Aí ele foi para a locadora. O rapaz já tinha dito que ele tinha chegado lá algumas vezes pedindo para jogar. Como arrumou esses dinheiro, ele chegou desconfiadinho, com vergonha, e perguntou se dava para jogar com 2 reais”, relembrou a mãe Gláucia Viana.
Aos nove anos, ele está no terceiro ano da escola e gosta de brincar. Os pais trabalham como ambulantes, com venda de lanches na praça da cidade. Apesar de muito novo, o menino enfrentou pneumonia, ficou internado e teve outros problemas de saúde.
“A história do Pedro é comovente. Ele tem estatura baixa. Na escola viviam fazendo bullying, que ele era muito pequeno para a idade dele. Levei ele no posto de saúde, a médica o encaminhou para Sobral. A endocrinologista passou por exames de raio x, de sangue e uma ressonância na cabeça. Isso já tá com um ano. Mas ainda não fez. Aí aconteceu a providência de Deus na nossa vida. Ele saiu nesse vídeo”, relembrou a mãe.
Depois de conhecer melhor a história da criança, Railander decidiu fazer uma campanha para arrecadar a quantia do exame. Logo os seguidores colaboraram com os custos. A ressonância foi feita na última sexta-feira (12), em Sobral. Após doação anônima, ele também ganhou um PS4 de presente. Além de gostar de videogame, Pedrinho corre pela rua como toda criança gosta. Mas também é apaixonado por futebol.
"Eu fiz muitos amigos, colegas (na locadora). Também quero falar para você que eu gosto do time Flamengo e do jogador Pedro", diz animado.
“É um menino extrovertido, alegre. Se eu deixar, ele acorda já com a bola na mão. É o tempo todo jogando bola. Na minha mente (o videogame) ia atrapalhar a escola. Mas depois aceitei porque é uma coisa boa para ele entreter a mente”, disse Gláucia.
CRESCIMENTO E FUTURO DOS GAMES
O Comitê Olímpico Internacional (COI) propôs a criação dos Jogos Olímpicos de Esports. O tema está em discussão e é visto com entusiasmo pela entidade. A Pesquisa Game Brasil 2024 aponta que 73,9% dos entrevistados têm o hábito de jogar videogame. Foram ouvidas 13.360 pessoas no levantamento. A pesquisa também mostra que 85,4% têm nos jogos eletrônicos uma das principais formas de entretenimento.
Alan Ferreira, Bianca Schiavon, Malena, Rodrigo Coelho e Thomas Morelli são algumas das referências de gamers no Brasil. Ainda de acordo com a PGB 2024, as mulheres representam 50,9% do total de gamers. Além disso, 66,9% de quem joga em computador são homens. Eles também são 61,6% dos que jogam em console. Já as mulheres são maioria (61%) nos smartphones.
Para Ana Carla, outra a ter o primeiro contato com jogos eletrônicos através de uma locadora na cidade, a antiga do Seu Penanduba, a presença feminina precisa ser sempre comemorada.
"Na infância era complicado convencer meus pais a me deixarem frequentar um ambiente com maioria de público masculina (crianças/meninos), e isso fez eles preferirem que eu jogasse em casa. Hoje vemos mais mulheres inseridas nesse mundo, mas infelizmente é comum rolar um assédio online com mulheres streamers. Por sorte tenho uma comunidade que sempre me respeitou muito bem", ressaltou.
A Railander Games abre às 16 e fecha às 23 horas. Entre as paredes marrom e rósea, a imaginação de adultos e crianças ganha fôlego e liberdade. Quem sabe algum novo talento na modalidade possa surgir em Frecheirinha? Enquanto se divertem, a corrente de solidariedade impulsionada nas redes sociais ganha o mundo pelo bem. Afinal, não tem game over para o amor ao próximo.