‘Esgoto na porta’: por que falta de saneamento no Ceará impacta mais as mulheres
Atravessar a rua correndo e voar da calçada até o rio ao lado de casa. Dividir com os amigos a única preocupação da infância: quem vai ganhar a corrida até a outra margem. A leveza mora, hoje, só na memória. Onde Maria Valdivania da Rocha, 38, nadava, agora fluem dejetos e lixo. O rio, no meio da cidade, virou esgoto. O dia cheira mal.
No Grande Bom Jardim e em diversos bairros periféricos da quarta capital do País, os danos sociais, econômicos e sanitários do esgoto a céu aberto ainda pesam – e principalmente sobre as costas femininas, maioria entre chefes de família.
O odor ruim pela falta de esgotamento sanitário é um morador antigo do bairro Granja Lisboa, na periferia de Fortaleza. Valdivania, por exemplo, “nem sente mais”. Ruim mesmo é quando o filho adoece. Quando a rua enche e entram “porcarias” em casa. Quando ela precisa “enfiar” a mão para desentupir a fossa improvisada.
A líder comunitária, conhecida como “Bilinha”, é só uma entre tantas.
Nesta reportagem especial, o Diário do Nordeste mostra os impactos dessa ausência na vida de mulheres – e por que investir na universalização do saneamento também é questão de gênero.
"Perderam a esperança"
Ao caminhar pelo bairro, é comum ver o esgoto exposto à frente das casas. Na travessa onde vivem Bilinha, o marido e os filhos, de 15 e 11 anos de idade, o problema amenizou graças à instalação de caixas coletoras, “tipo fossas”, pelos moradores. A limpeza insalubre é por conta deles.
dos domicílios de Fortaleza, aproximadamente, não estão ligados à rede de coleta de esgoto, de acordo com a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) – apesar de 72% da cidade já possuir estrutura instalada.
“O meu esgoto vai pra da minha irmã. Aqui tem as caixas da Cagece, mas as casas não são ligadas. Não funcionam. Todos os canos vêm pra cá e daqui vai tudo pro canal”, explica, lamentando que, por isso, as árvores frutíferas que resistem à margem do ex-rio são inutilizadas. “Ninguém tem coragem de comer, só as crianças.”
São os pequenos, aliás, os mais vulneráveis a doenças diarreicas e de pele. Entre as mães da comunidade, os relatos se multiplicam. “Eles se coçam, nascem umas ‘papocas’ horríveis no corpo. A gente pede que tenham cuidado, porque se ficarem doentes, quem tem que ficar com eles no hospital somos nós”, desabafa Bilinha.
Como líder comunitária, é incumbido a ela, muitas vezes, o dever de “olhar os meninos”. “Tenho o WhatsApp das mães e falo com elas. Muitas aqui são mães solo”, pontua, compartilhando ainda um descontentamento que sempre escuta e que cruza gerações.
“Quando vou atrás de melhorias, elas dizem ‘Bilinha, eu não era nem mãe, já sou é bisavó e não vi melhora’. Já perderam a esperança.”
A dona de casa Sandra Rodrigues, 58, por exemplo, já vive no bairro há mais de três décadas, e hoje faz com a neta pequena o que já fazia com a filha: equilibra as sacolas de frutas e carnes trazidas da feira e coloca a menina nos braços para pular a poça fétida que corta o caminho.
“Aqui fica muita muriçoca e o mau cheiro. Minha casa tem uma fossa com uma manilha pra descer o esgoto pra dentro do canal. A maioria das casas é assim”, reconhece, frisando que garantir política pública de esgotamento sanitário vai além da necessidade.
“As crianças pegam ferimento nos pés, micose, diarreia. Sobe tudo nessas águas. É uma preocupação a mais pra gente. Não tem condição. Quando chove, são muitos transtornos. O saneamento não é só necessário pra população: é algo digno.”
Fortaleza, Caucaia e Juazeiro do Norte se posicionam entre as 40 menores notas no Ranking do Saneamento 2025, divulgado pelo Instituto Trata Brasil em julho. Os indicadores de esgoto descem a nota das cidades.
É justamente a chegada da pré-estação chuvosa, em dezembro, que preocupa Elizângela Ramos, 33, moradora do Grande Bom Jardim há 17 anos. “Os moradores se reúnem pra pagar e desentupir as caixas, senão a água do canal volta pelos quintais e alaga as casas com esgoto”, compartilha.
“Todo inverno as crianças adoecem, de diarreia principalmente. Mas também feridas na pele, que geram gastos com pomadas, medicação… E quem cuida tem que ser nós mães. As que têm carteira assinada infelizmente têm que faltar o serviço, e muitos a avó cuida.”
Saúde em xeque
A médica Tatiana Fiuza, doutora em saúde coletiva e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), aponta que, com o envelhecimento da população, as doenças de veiculação hídrica e outras por falta de esgotamento sanitário “já deveriam estar sendo substituídas pelas crônicas”, mas continuam entre os maiores problemas na atenção primária.
“As pessoas vão para unidades de saúde tratar parasitoses e vão se reinfectar. Vão tratar e vão se reinfectar, é como estar enxugando gelo”, lamenta a profissional de saúde, listando as principais enfermidades causadas por esse contexto.
internações por doenças de veiculação hídrica foram registradas no Ceará em 2024, conforme o Sistema de Informações Hospitalares do SUS. Em 2025, só até setembro, foram mais de 7,5 mil.
Diante disso, frisa, “a responsabilidade de manter o ambiente limpo e cuidar das pessoas, das crianças e dos idosos doentes, geralmente recai sobre as mulheres”. “É uma sobrecarga enorme, tanto física como emocional”, alerta a médica.
“Do ponto de vista da saúde integral da mulher, a situação da falta de saneamento básico pode causar vários impactos, como o aumento de estresse, exaustão, ansiedade, transtornos de humor e até depressão”, complementa Tatiana.
Essas mulheres acumulam múltiplas jornadas, muitas vezes são mães, trabalham fora, cuidam da casa, e são provedoras. Muitas famílias são só de mulheres, e a falta de esgotamento e acesso à água as vulnerabiliza mais ainda.”
A médica adiciona que a falta dessa infraestrutura, atrelada aos impactos sociais que gera, “podem deixar essas mulheres fora da escola e do mercado de trabalho, e o círculo vicioso da pobreza vai sendo perpetuado”.
Luana Pretto, presidente-executiva do Instituto Trata Brasil (ITB), ilustra que essa perpetuação da pobreza inicia, por exemplo, quando “a mãe pede pra menina mais velha cuidar dos irmãos quando ficam doentes, e aí ela não vai pra escola”, alimentando uma estrutura social cuja conta é paga por um só gênero – inclusive com a própria saúde.
“No Nordeste, a taxa de internações por doenças relacionadas ao saneamento básico inadequado entre mulheres é de 17 a cada 10 mil habitantes. Em homens, é de 15,8”, ilustra a presidente do ITB, acrescentando que “a universalização do saneamento tiraria 18,7 milhões de mulheres da extrema pobreza”.
Mulheres em foco
Águeda Muniz, diretora de relações institucionais da Ambiental Ceará – empresa que integra a Parceria Público-Privada (PPP) com a Cagece para serviços de esgotamento sanitário –, acrescenta que a mulher é, hoje, não apenas público-alvo, mas uma peça-chave para a efetivação das políticas de universalização do saneamento básico.
São lideranças como professoras, padres, pastores, comerciantes, a senhora que fica na calçada conversando… Pessoas que são influentes nos bairros. A gente capta, chama pra uma roda de conversa e explica qual é o nosso intuito: levar o saneamento pra comunidade.
“No Ceará, ela é a maior pagadora da conta de água e esgoto. Nós mapeamos quem era o principal cliente do esgotamento sanitário em 24 municípios: é a mulher com mais de 50 anos das classes C, D e E. É um recorte que precisa ser muito cuidado”, reforça a gestora.
Um dos programas com foco no protagonismo feminino é o Afluentes, por meio do qual a empresa se conecta com lideranças comunitárias dos bairros de Fortaleza e dos municípios do interior onde atua para fortalecer a educação ambiental e a importância da ligação domiciliar à rede de esgotamento.
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É também por meio do Afluentes que a Ambiental informa à população sobre um direito ainda desconhecido: a tarifa social para ligação da casa à rede de esgoto. “Não adianta a gente colocar a rede, fazer investimento em saneamento básico, se as pessoas não se conectarem. Fazemos esse processo de conscientização”, explica Águeda.
A gestora pontua que um dos principais motivos de rejeição da população é o custo mensal da tarifa de esgoto. “Mas você gasta quanto pagando limpa-fossa? E com médico? Uma diarista que falta o dia de trabalho porque o filho adoeceu, devido à lama em frente à casa dela, deixa de ganhar a diária”, reflete a diretora.
“Aí vai pro hospital, às vezes tem que comprar um remédio que não tem no posto. O gasto é mais do que R$ 200 e ela deixou de trabalhar pra ganhar. O esgoto pode ser um custo inicial, mas em longo prazo só facilita a vida das pessoas.”
Ligação gratuita
No Ceará, o objetivo da PPP entre Ambiental e Cagece é que a cobertura de esgoto seja de 90% até 2033, e alcance 95% até 2040. O investimento até 2053, quando finda a parceria, será superior a R$ 6 bilhões. Em Fortaleza, deve aumentar para 75% até o final de 2025 e chegar a 90% nos próximos anos.
Mas para que os números reflitam na coleta e tratamento, é necessária a conexão dos domicílios à rede de coleta de esgoto. Carlos Rossas, superintendente de Gestão de Parcerias da Cagece, destaca que o processo é gratuito para os imóveis “padrão básico”, de moradores que integram programas sociais como Bolsa Família, por exemplo.
“Quando a gente conclui uma obra, deixa um ponto na calçada. O cliente tem que quebrar a sua casa pra ligá-la à calçada, tendo um custo. Mas pessoas com poder aquisitivo menor terão dificuldade financeira pra fazer isso, então o contrato da PPP garante gratuidade”, frisa, informando que esses “clientes” são identificados previamente pela companhia.
De acordo com Rossas, cerca de 30% dos domicílios atendidos pela Cagece se enquadram nesse perfil. “Só passar a rede na frente do imóvel não resolve o problema de contaminação do solo, doenças de veiculação hídrica, questão de saúde pública. Só resolve quando ele se liga. Isso garante a eficácia da política pública de funcionamento.”
Incorporar a perspectiva de gênero no planejamento significa olhar para essas desigualdades e criar estratégias para buscar a equidade concreta. Isso envolve, por exemplo, a participação das mulheres nas decisões, na construção de políticas, e a avaliação contínua ser efetuada por mulheres de diferentes classes sociais.
Para os clientes que não são “de baixa renda”, o custo da obra para interligar a casa à rede de esgoto é estimado em até R$ 1.500, em serviço executado por empresa especializada, a depender do tamanho do imóvel.
A adequação da estrutura interna dos imóveis para a interligação ao sistema de esgotamento sanitário é uma obrigação legal. O descumprimento pode acarretar multa por parte do órgão fiscalizador municipal.
Luana Pretto, do Instituto Trata Brasil, avalia que o custo da ligação é justamente o que torna a falta de saneamento nas periferias um problema histórico. “O financeiro pesa muito. E temos ainda um problema que é a conscientização da população sobre a importância da coleta e tratamento do esgoto. Precisamos evoluir muito”, sugere.
A médica Tatiana Fiuza endossa que “as políticas públicas de saúde precisam reconhecer que o impacto da falta de infraestrutura básica não é igual para todos”, e que “especialmente as mulheres vivem em contextos de maior vulnerabilidade social”.
“O saneamento não pode ser visto isolado. O acesso à saúde, à educação, ao lazer e ao trabalho digno também são importantes na perspectiva da saúde integral das mulheres.”