40 anos de vacinação: órgãos de saúde mudam estratégias e discursos para conter medo dos imunizantes
Não adianta ter a melhor vacina do mundo se a população não comparecer aos postos de saúde para buscar proteção. Como o convencimento pode ser complexo, especialistas defendem uma comunicação clara, direta e transparente para garantir o sucesso das iniciativas e ampliar a cobertura dos imunizantes, que estava em queda nos últimos anos.
Se as campanhas na década de 1980 tinham recorde de público nas unidades básicas – como mostram reportagens resgatadas pelo Centro de Documentação do Sistema Verdes Mares (Cedoc) –, hoje as redes de saúde precisam, em muitos casos, levar as vacinas de porta em porta. Diante da propagação de desinformação sobre os imunizantes e de um número importante de pessoas que duvidam de sua eficácia, o desafio mudou: como comunicar com responsabilidade?
Esta é a 2ª reportagem da série especial “Imune ao medo”, que traz um retrato da imunização no Ceará, da evolução das coberturas vacinais, dos motivos que interferem no alcance das taxas – e das estratégias possíveis para retomar a proteção da saúde pública.
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Nos últimos 40 anos, as vacinas teriam sido “vítimas” da própria eficiência: como as doenças que ajudam a proteger atingiram níveis baixíssimos, a população esqueceu dos riscos atrelados a elas. Essa é a análise de Ricardo Machado, coordenador de comunicação da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e jornalista com mais de 30 anos de experiência na área da saúde.
Ele lembra que as primeiras campanhas contra a poliomielite traziam imagens de crianças com ferragens das pernas ou “pulmões de aço”, destinados às que sofriam de insuficiência respiratória. “A comunicação focava no adoecimento e nas consequências dele, que iam desde a internação até o óbito”, ilustra.
À época, o país também lidava com outras doenças no cotidiano, como coqueluche, sarampo, caxumba e rubéola – todas combatidas com vacina. Depois do grande susto, com as enfermidades controladas nas décadas seguintes, as imagens passaram a mostrar encontros e reuniões de famílias, sempre com a presença de crianças saudáveis.
“Chega uma hora em que ninguém vê mais doença. A percepção de risco desaparece, inclusive das campanhas”, alerta Ricardo. “Aquelas crianças cresceram e hoje estão com 45, 50 e poucos anos. Quem veio depois também já nasceu num país com um controle muito bom dessas doenças”.
Desde 2015, as coberturas vacinais começaram a baixar no cenário nacional. Fortaleza, por exemplo, conseguiu manter boa cobertura até 2020, mas o isolamento social causado pela pandemia da Covid-19 impactou os índices, como lembra Vanessa Soldatelli, coordenadora de Imunização da Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
Você não faz conscientização com uma campanha por ano. O que mais impacta a cobertura vacinal é a vacinação de rotina, que ocorre de janeiro a dezembro com todo mundo.
A situação só voltou a se estabilizar em 2023, mas num contexto cercado de boatos sobre a segurança dos imunizantes, espalhados inclusive em grupos de escola. “Acontece diariamente”, lamenta ela. “Mas trabalhamos muito a questão da vacinação nas escolas, até para que os adolescentes saibam, consigam tomar sua decisão e levem isso aos pais”.
Por mais que os profissionais lidem com a desinformação no cotidiano, o diálogo de resposta não pode ser agressivo. O ideal, segundo Vanessa, é explicar cientificamente o processo de aprovação das vacinas e ressaltar que elas só chegam aos postos após permissão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Sobre os “eventos adversos” temidos por muitos pais e responsáveis, como dores e febre, ela cita que o Ministério da Saúde já substituiu tecnicamente o termo por “evento supostamente atribuível à vacinação”. Todo evento notificado é investigado a fundo, incluindo viagens a lugares com doenças específicas ou problemas genéticos, mas “normalmente a causalidade com a vacina é descartada”, ressalta.
Confiança e qualificação dos profissionais
Se os pais ou responsáveis receberam notícias duvidosas ou têm incertezas quanto à eficácia das vacinas, Vanessa Soldatelli recomenda a busca por fontes seguras, como os sites do próprio Ministério, da SBIm ou da Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Nesse locais, a informação é igual, ela não muda. Não há discordância de opinião em quem trabalha com isso”, completa Daniella Moore, imunologista e pesquisadora do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF-Fiocruz).
Sobre uma coisa técnica, a informação tem que vir de um lugar especializado, não tem como a gente ficar dando palpite. Eu não posso pedir no posto, na mesa do bar ou no grupo de Whatsapp.
Para a especialista, a comunicação de confiança deve partir dos profissionais de saúde, de médicos a agentes comunitários. Não à toa, um estudo do Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos mostra que o médico tem papel central nesse processo e é considerado confiável mesmo entre os hesitantes.
“Fortalecer a confiança na vacina através da figura do médico é muito importante”, destaca Daniella.
Contudo, Ricardo Machado, da SBIm, entende que ainda há um engajamento aquém do necessário da classe médica. Um dos motivos, aponta ele, é que o tema das imunizações ainda é pouco valorizado na formação do médico e geralmente fica restrito à Pediatria. Contudo, novas vacinas surgem esporadicamente para diferentes públicos, e outras passam por constante atualização.
“Hoje, existem calendários de vacinação específicos para a gestante, para o idoso, para o adolescente. Tudo vai mudando, e vão mudando as recomendações. A gente precisa que a comunicação chegue de forma efetiva ao profissional da saúde”, afirma ele.
Por isso, o especialista ressalta a importância de toda a rede de saúde ser informada com antecedência sobre campanhas de vacinação e sensibilizada a orientar seus pacientes. “O profissional não pode ser informado junto com a população”, afirma. “Ele também precisa ser atualizado continuamente de tudo quanto é documento, nota técnica e orientações oficiais”.
Regionalizar as campanhas
Após a qualificação da rede, outro ponto importante é entender as características de cada território, aliada à individualidade dos pacientes. “Nada substitui o olho no olho”, pensa Thereza Magalhães, enfermeira, epidemiologista e professora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Para ela, mudanças ideológicas e políticas, desinformação e baixo letramento dos brasileiros sobre aspectos imunológicos complicam o cenário, mas não podem ser desencorajadores. “Devemos apostar na abordagem de educação em saúde com aprofundamento teórico denso, mas em linguagem simplificada e considerando nuances do território e de grupos específicos”, pondera ela.
Daniella Moore, do IFF, complementa: o Brasil é muito grande e nem sempre o problema de um estado ou cidade é o mesmo. Um diagnóstico local a partir da escuta ativa da população para entender as peculiaridades é essencial.
Em Belém do Pará, por exemplo, carros de som promoveram campanhas de vacinação ao ritmo do carimbó, como ilustra Ricardo Machado, da SBIm. Em Acopiara, no Ceará, foi criado o “Carro da Vacina”, com equipes volantes que priorizam áreas com populações maiores e descobertas.
Por isso, a comunicação deve ser segmentada levando uma série de fatores, como:
- idade do público-alvo
- nível de instrução da comunidade
- acesso físico aos territórios
- qualidade da conexão de internet
- simplificação de dados e termos
- processos educativos
- apoio de lideranças comunitárias
Sem essas análises, as campanhas correm o risco de perder o apelo porque “as pessoas não se enxergam naquela comunicação”. “Elas têm dificuldade e são pouco sensibilizadas a se perceberem naquele contexto. Precisamos desenvolver uma linguagem de afeto que comunique o risco de forma assertiva, ética e impacte na percepção de responsabilidade”, define Machado.
A gente sabe a importância das vacinas e como elas mudaram a condição de pessoas que morriam em epidemias. Agora temos proteção, o que muda o cenário. Durante a Covid-19, ficamos trancados até termos a possibilidade de segurança para sair de casa. Isso é um divisor de águas muito importante.
Uma das opções é envolver as crianças, público que ele considera grande agente de transformação dentro de casa, dado o exemplo exitoso de campanhas educativas contra o tabagismo e de preservação ao desperdício de água.
“Precisamos de um esforço contínuo, com verba contínua e coordenação contínua o ano inteiro. E que essa comunicação não seja vertical, mas horizontal, com vários agentes participando dos processos. Muitas ideias boas de como acessar determinadas populações podem vir da própria comunidade”, entende Ricardo.
Thereza Magalhães resume: nessa força-tarefa para normalizar a cobertura vacinal, é preciso identificar os não vacinados de cada território, contar com apoio de associações científicas e comunitárias e a extensão do horário de Unidades Básicas de Saúde e outros pontos nos quais os imunizantes estão disponíveis.
Na próxima reportagem da série “Imune ao medo”, o Diário do Nordeste mostra os bastidores da distribuição de vacinas no Ceará e toda a logística envolvida na guarda e transporte delas até chegar ao braço da população.