O que é feminicídio não íntimo? Crime incluso no 'Tempo de Justiça' foi julgado em 10 meses no Ceará
O assassinato de uma mulher, motivado pelo menosprezo ao gênero, sem ter uma relação de parentesco entre o criminoso e a vítima. Esse crime raro é classificado como um feminicídio não íntimo, pelos juristas brasileiros. Um caso foi registrado em Fortaleza em novembro de 2023. O processo criminal foi incluído no Programa Tempo de Justiça e acabou julgado em menos de 10 meses.
Entre 28 e 31 de outubro do ano corrente, o Diário do Nordeste irá publicar uma série de reportagens sobre o Programa Tempo de Justiça. Na última quarta-feira (30), foi relembrado um caso de feminicídio julgado em apenas 8 meses no Ceará. Na terça (29), foi publicada uma matéria sobre a atuação da Defensoria Pública Geral do Ceará no Programa. E na segunda (28), foi publicado que 69 homicídios ocorridos em 2023 foram julgados em menos de 400 dias no Ceará.
O promotor de Justiça do Ministério Público do Ceará (MPCE), Marcus Renan Palácio, que atua na 1ª Vara do Júri de Fortaleza, explica que "o feminicídio não íntimo é aquele homicídio perpetrado por circunstância de menosprezo à condição de gênero, sem que o sujeito ativo tenha alguma convivência ou alguma relação familiar com o sujeito passivo, ou seja, com a vítima. Então, não é um crime de violência doméstica".
Kassandro de Góes foi condenado a 21 anos e 10 meses de prisão, no dia 6 de setembro de 2024, por matar Francisca Davila Siqueira da Silva a facadas. O julgamento ocorreu 10 meses depois do crime - ou exatos 305 dias (prazo menor que a meta do 'Tempo de Justiça', que é de 400 dias).
foi o tempo decorrido entre o assassinato de Francisca Davila Siqueira da Silva e a condenação de Kassandro de Goes, na Justiça Estadual, a 21 anos e 10 meses de prisão.
Esse foi um dos primeiros julgamentos de feminicídio não íntimo do Ceará e do Brasil, segundo o promotor de Justiça Marcus Renan. O Ministério Público, nos Memoriais Finais do processo, afirmou que "o réu somente ceifou a vida da vítima pelo fato dela ser mulher e, especialmente, em razão de sua condição de vulnerabilidade social (profissional do sexo)".
Conforme a denúncia do MPCE, Kassandro de Goes, aos 19 anos, pagou para ter relações sexuais com uma mulher, na manhã de 6 de novembro do ano passado, no Centro de Fortaleza. Ao sair do local, o acusado decidiu vender o seu aparelho celular por R$ 150, para ter dinheiro para comprar uma faca - que seria utilizada para matar a garota de programa que ele contratou mais cedo.
Kassandro voltou ao local em que encontrou a garota de programa, com o objetivo de reencontrá-la. Porém, a jovem que ele procurava não estava mais lá. Então, Francisca Dávila abordou o jovem e ofereceu o serviço. Após o sexo, quando a mulher tomava banho, o acusado a matou com 15 golpes de faca, socos, chutes e um "mata-leão". O suspeito foi preso em flagrante pela Polícia Militar do Ceará (PMCE).
O feminicídio não íntimo é aquele homicídio perpetrado por circunstância de menosprezo à condição de gênero, sem que o sujeito ativo tenha alguma convivência ou alguma relação familiar com o sujeito passivo, ou seja, com a vítima. Então, não é um crime de violência doméstica."
O promotor de Justiça Marcus Renan Palácio destacou que a celeridade dada ao caso pelos órgãos que compõem o Programa Tempo de Justiça foi fundamental para o julgamento ser realizado em 10 meses: "O réu foi preso em flagrante delito, a autoridade policial cumpriu rigorosamente o prazo para confecção do inquérito, o Ministério Público ofereceu a denúncia imediatamente e o juiz recebeu".
"O réu foi citado e apresentou Resposta à Acusação de logo. Foi designada a instrução, que foi una, ou seja, todas as testemunhas arroladas pelo Ministério público e pela defesa e o interrogatório do acusado ocorreram em um dia. O Ministério Público apresentou os seus Memoriais orais e isso permitiu que o juiz o pronunciasse (ou seja, decidisse levá-lo a julgamento). Ele (réu) não recorreu. Transitada em julgada a decisão de pronúncia, foi designada a sessão do Júri", completou o membro do MPCE.
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Dificuldades encontradas pelos órgãos
O Programa Tempo de Justiça tem o objetivo de julgar processos por crimes dolosos contra a vida em menos de 400 dias, a contar da data do fato. Para uma ação penal ser incluída no Programa, a autoria delitiva tem que estar identificada - independentemente de o suspeito estar preso ou solto.
Entretanto, alguns processos incluídos no Programa não são julgados no prazo de 400 dias, apesar dos esforços de todos os órgãos. "A prática forense evidencia algumas circunstâncias, as quais, ainda que alheias à nossa vontade, impedem que a instrução criminal se conclua em um prazo razoável. Registro, à guisa de exemplo, por vezes, a dificuldade na localização de testemunhas, a demora na conclusão de um laudo pericial essencial à comprovação da autoria ou da materialidade delituosas, e, infelizmente, não muito raro, alguns recursos meramente protelatórios, nomeadamente em se tratando de réus que se encontram soltos respondendo às respectivas ações penais", cita o promotor de Justiça Marcus Renan.
Se começar a se difundir as realizações dos Tribunais do Júri e suas respectivas condenações, isso poderá, no mínimo, servir de um efeito pedagógico para aquele que tem uma tendência ou para aquele que já é habituado ao exercício da delinquência. Ele há de pensar que, aqui no Estado do Ceará, o Poder Judiciário, o Ministério Público e os demais órgãos que compõem o Sistema de Justiça estão, modéstia à parte, atuando com muita eficiência e com muita celeridade."
O membro do Ministério Público pondera que a celeridade processual não pode ferir os direitos do acusado: "Evidentemente, hão de ser assegurados, em qualquer hipótese, os direitos fundamentais do acusado, específica e principalmente, o contraditório e a ampla defesa, previstos no ordenamento jurídico constitucional, respeitando-se, e, mais do que isso, garantindo-se o pleno exercício dessas e de outras prerrogativas legais".
Um dos últimos julgamentos de homicídios em Fortaleza, realizados em menos de 400 dias a contar da data do crime, resultou na condenação do pedreiro Raimundo Bernardo a 14 anos de prisão, no dia 21 de outubro último.
Raimundo foi acusado de matar a facadas o próprio primo, Valdiran Faustino do Nascimento, no bairro José Walter, em Fortaleza, no dia 8 de janeiro deste ano. O crime teria sido motivado por ciúmes que o réu tinha da esposa com a vítima - que eram colegas de trabalho. O julgamento ocorreu em pouco mais de 9 meses (exatos 287 dias) depois do crime.