Apenas 15% dos longas cearenses lançados comercialmente desde 1995 foram dirigidos por mulheres

Profissionais do audiovisual refletem sobre as conquistas e demandas ainda em aberto relativas à participação feminina no audiovisual

Legenda: Florinda Bolkan (à esquerda), Michelline Helena e Amanda Pontes (no meio) e Bárbara Cariry (à direita) estão entre as diretoras que tiveram filmes cearenses lançados comercialmente nos últimos quase 30 anos
Foto: Divulgação

Dos 53 filmes cearenses lançados comercialmente entre 1995 e 2023 — conforme consta em levantamento do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA), da Agência Nacional de Cinema (Ancine) —, oito foram dirigidos por mulheres. Deles, sete foram lançados nos últimos 11 anos.

Os dados abrem espaço para múltiplas e necessárias discussões sobre a participação de mulheres no cenário audiovisual, do perfil que consegue acessar recursos para longas comerciais ao imperativo de maior diversidade em variadas funções além da direção

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Disparidade estrutural refletida no cinema

Para profissionais do audiovisual cearense ouvidas pela coluna, tais números ressaltam uma realidade sentida e vivida na prática. Duas delas, as cineastas cearenses Michelline Helena e Amanda Pontes, assinam aquele que será o 9º filme do Estado lançado nos cinemas com direção de mulheres.

O drama “Quando Eu Me Encontrar”, também escrito por elas, chega aos cinemas na próxima quinta-feira (19) e se soma ao bom ano do cinema cearense em termos de lançamentos de longas. O filme da dupla é a sétima produção do Estado a chegar ao circuito — e a única a ter mulheres no comando.

Quando Eu Me Encontrar, que estreia na próxima quinta-feira (19), será 9º longa cearense dirigido por mulheres a ser lançado comercialmente desde 1995
Legenda: "Quando Eu Me Encontrar", que estreia na próxima quinta-feira (19), será 9º longa cearense dirigido por mulheres a ser lançado comercialmente desde 1995
Foto: Divulgação

“O dado, pra mim, é reflexo de uma questão estrutural histórica que envolve as desigualdades de gênero em termos de acesso, oportunidade, valorização e consolidação — a qual permeia todos os setores da sociedade, não sendo diferente no audiovisual”, afirma Amanda.

Já para Michelline, as informações revelam “que ainda temos um longo caminho a seguir até conseguirmos conquistar esse espaço necessário para dar voz e visibilidade às mulheres”.

Para Lis Paim — montadora, coordenadora do laboratório de roteiros do Porto Iracema das Artes entre 2017 e 2021 e diretora do premiado curta "Fenda" —, o patamar “revela uma disparidade imensa em relação a uma inserção das mulheres em posições de liderança no cinema ao longo das últimas três décadas”.

Longas cearenses dirigidos por mulheres lançados comercialmente de 1995 a 2023

  • Eu Não Conhecia Tururu, de Florinda Bolkan (2002)
  • Kátia, de Karla Holanda (2013)
  • Rânia, de Roberta Marques (2013)
  • Do Outro Lado do Atlântico, de Daniele Ellery e Márcio Câmara (2017)
  • A Misteriosa Morte de Pérola, de Guto Parente e Ticiana Augusto Lima (2018)
  • O Animal Sonhado, de Breno Baptista, Luciana Vieira, Rodrigo Fernandes, Samuel Brasileiro, Ticiana Augusto Lima e Victor Costa Lopes (2018)
  • Se Arrependimento Matasse, de Lília Moema Santana (2020)
  • Pequenos Guerreiros, de Bárbara Cariry (2022)

Fonte: Listagem dos Filmes Brasileiros Lançados Comercialmente em Salas de Exibição 1995 a 2023, disponível no Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA) da Ancine; levantamento leva em conta a Unidade Federativa da "Empresa Produtora Brasileira Majoritária", ou seja, uma produção é considerada cearense caso a UF seja "CE" junto à Ancine; em anos não citados, não constam produções do CE dirigidas por mulheres

“Comportamento de mercado”

Este patamar da participação feminina, como ressalta Camila Vieira — coordenadora de Cinema e Audiovisual da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) e também curadora —, reflete “certo comportamento de mercado” — afinal, os dados destacados do OCA são de longas que tiveram estreia comercial.

'Eu Não Conhecia Tururu', de Florinda Bolkan
Legenda: "Eu Não Conhecia Tururu", de Florinda Bolkan, lançado comercialmente em 2002 conforme dados da Ancine
Foto: Divulgação

A coordenadora cita políticas públicas para destacar que o aumento de participação de filmes dirigidos por mulheres a chegaram ao circuito comercial nos últimos 11 anos “tem a ver também com certo estímulo à produção e à circulação desses filmes nas salas de cinema”.

“Mas, ainda assim, é um índice muito baixo. Isso implica dizer que tem poucas mulheres na direção de longa-metragem? Não necessariamente, mas os filmes que chegam ao circuito comercial são esses. E os outros também realizados por mulheres que, às vezes, não tem alcance para estarem nas salas de cinema?”
Camila Vieira
curadora e coordenadora de Cinema e Audiovisual da Secult Ceará

“(Há) uma produção vasta, por exemplo, de documentários que às vezes não chega, mas estão sendo realizados e circulando em festivais”, contrapõe. São filmes, ela avalia, “que têm circuitos de exibição e visibilidade que não são contabilizados num instrumental de mercado”.

Políticas públicas como ferramenta central

Amanda, Lis e Michelline reconhecem, como observa Camila, que o aumento de longas dirigidos por mulheres lançados comercialmente é fruto de políticas públicas, mas ressaltam a necessidade de ações complementares e mais globais.

“O investimento em formação tem sido muito importante não só para o aumento do número de filmes dirigidos por mulheres, mas pelo aumento geral na quantidade de filmes produzidos no Ceará”, avalia Micheline.

Lis Paim dirigiu o curta-metragem 'Fenda', que venceu o prêmio de Melhor Curta pelo júri da crítica no Festival de Gramado
Legenda: Lis Paim dirigiu o curta-metragem "Fenda", que venceu o prêmio de Melhor Curta pelo júri da crítica no Festival de Gramado
Foto: Edison Vara / Agência Pressphoto / Divulgação

Lis ecoa a percepção: “Tanto a esfera da formação quanto a dos mecanismos de distribuição dos recursos de produção começaram a olhar mais para esta disparidade, principalmente a partir dos últimos governos de esquerda que investiram e valorizaram a cultura”, aponta.

Amanda também observa recentes “esforços no sentido da democratização de acesso aos incentivos públicos através de indutores como cotas e editais temáticos”, mas lembra: “Não adianta ampliar a oportunidade de acesso a recursos para realização de obras quando falta acesso a etapas anteriores, como formação”, exemplifica.

Ampliar ações afirmativas para diversificar a presença feminina

Em diálogo, Lis ressalta o que classifica como “distribuição precária” de recursos “a partir de políticas públicas voltadas para a produção e a formação que não parecem ter olhado de uma maneira eficiente e engajada para esta disparidade de gênero, que é também interseccional”.

“Pessoas negras e LGBTQIA+ também representam um número ínfimo dessas estatísticas. Se pouquíssimas mulheres estão dirigindo filmes, esse número é muito pior quando pensamos em mulheres negras, trans e indígenas”, sublinha.

No escopo da Secult, Camila reforça a efetivação de diferentes políticas afirmativas nos processos da pasta. “Já faz um tempo que a gente vem formulando nossos editais com critérios de bonificação de pontuação para propostas que tenham equipe com maior diversidade”, aponta a coordenadora.

O movimento, ela explica, é elaborado na secretaria a partir da atuação da Coordenadoria de Diversidade e Acessibilidade Cultural. “A gente cria processos de indutores e bonifica projetos que consigam comprovar que ali vai ser contratada uma equipe majoritariamente de mulheres, LGBTs, com diversidade racial e étnica”, exemplifica.

Longa cearense 'Quando Eu Me Encontrar' é escrito, dirigido, produzido, montado e protagonizado por mulheres
Legenda: Longa cearense 'Quando Eu Me Encontrar' é escrito, dirigido, produzido, montado e protagonizado por mulheres
Foto: Divulgação

“Editais específicos para esse público são fundamentais, assim como criar mais cotas nos editais já existentes”, avalia Michelline. “Cotas sociais em editais e programas de formação são fundamentais e precisam ser mantidas. As cotas promovem inclusão, reparação e acesso a espaços de liderança e possibilidades de futuro”, avança Lis.

Camila reconhece que é preciso refletir e agir a partir de uma pergunta: qual o perfil da mulher que tem conseguido aumentar a inserção no audiovisual?

“A gente precisa olhar para o gênero a partir das interseccionalidades. É um dado para a gente debater de forma mais aprofundada e começar a fazer um desenho mais complexo da diversidade no nosso cinema”, defende.

Mulheres em funções para além da direção

Para as entrevistadas, o aumento e a diversificação da participação feminina no audiovisual passa não somente por ações do poder público ou mesmo por ações voltadas especificamente ao lugar da direção. 

“Acho importante pensar que selecionadores e curadores estejam aptos e sensíveis para os novos temas que surgem a partir do momento que abrimos o leque para essas novas realizadoras”, lembra Michelline.

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Camila defende, ainda, que é importante aumentar e diversificar a presença de mulheres em outras instâncias de uma produção audiovisual. “Falta mais debate sobre a inserção das mulheres não só mais à frente dessas funções criativas, mas na direção de fotografia, envolvidas com funções de maquinário”, ilustra.

Recentemente, entre os destaques do cinema cearense de 2023, a fotografia de "Estranho Caminho", assinada pela cearense Linga Acácio, foi premiada no Festival de Tribeca. Ela é considerada a primeira travesti que foi diretora de fotografia de um filme lançado em circuito comercial no Brasil, o documentário "Transversais".

“Amplificar a participação de mulheres num set de filmagem de forma mais consistente e efetiva, (para) que, aí, a gente consiga ter um audiovisual muito mais plural, heterogêneo e diverso”, antevê Camila. A coordenadora cita, inclusive, funções que vão além da produção de uma obra. 

Linga Acácio é considerada a primeira travesti que foi diretora de fotografia de um filme lançado em circuito comercial
Legenda: Linga Acácio é considerada a primeira travesti que foi diretora de fotografia de um filme lançado em circuito comercial
Foto: Leandro Gomes / Reprodução Instagram

“Quando a gente fala de participação de mulheres, é importante que elas participem não só na direção de obras audiovisuais, mas também estejam à frente de outras funções relevantes para esse contexto da cadeia produtiva do audiovisual. Quais as mulheres que são distribuidoras, críticas de cinema, curadoras, diretoras de festivais?”
Camila Vieira
curadora e coordenadora de Cinema e Audiovisual da Secult Ceará

Posições como essas são, também, espaços de poder carregados de responsabilidades. “Programar os filmes de mulheres cis e trans nos cinemas, mostras, e formar público para este cinema também é um gesto importante e algumas estatísticas mostram o quanto esses filmes são muito consumidos quando conseguem chegar em lugares de visibilidade”, sustenta Lis.

“Outro ponto é a formação de comissões de seleção e avaliação diversas, em qualquer espaço, assim como de programas voltados a financiar filmes de mulheres cis e trans, como foi o último Edital Ruth de Souza de Audiovisual, do Governo Federal, uma iniciativa louvável mas que encontra poucas semelhantes no Brasil”, avança a professora e diretora.

Ela cita, ainda, a necessidade da presença de mulheres cis e trans em “cargos altos de gestão pública da cultura”, além da responsabilidade de compor júris de festivais.

“Não se pode mais, hoje em dia, premiar em sua maioria filmes dirigidos por homens brancos e achar que isto se justifica por uma questão de opinião e não por uma vontade de manutenção de uma estrutura patriarcal excludente”, defende.

Apesar dos desafios e demandas ainda em aberto, as diretoras confiam no fortalecimento das diversidades.

"Mudanças estruturais levam tempo pra acontecer e se solidificar, mas vejo que a passos lentos as coisas começam a se movimentar", resume Amanda. "O cinema é um lugar político e de disputa de narrativas e nós, mulheres, precisamos conseguir espaço e financiamento para contar as nossas próprias histórias", finaliza Lis.

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