Não basta ver as Benignas como santas, é preciso protegê-las
Menina morta aos 13 anos na região do Cariri foi beatificada pelo Vaticano sob o rótulo da castidade, mas atrai às romarias vítimas da violência machista e se converte em símbolo contra o feminicídio
Benigna Cardoso ainda era criança quando assumiu o papel de buscar água para a família no poço, tarefa comum a meninas como ela no sertão cearense dos anos 1940. Numa manhã de outubro, a menina de 13 anos pegou um pote de barro e caminhou em direção ao poço que abastecia o sítio Oiti, no Cariri, onde morava com a família de agricultores que a adotou.
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Andava mais calada naqueles dias, provavelmente com medo do adolescente que a cortejava e não se conformava com suas negativas. A insistência de Raul já havia sido relatada à avó e ao padre da igreja local, mas não ocorreu a ninguém buscar proteção contra um jovem de 17 anos que parecia “normal”. Ela foi orientada apenas a mudar de escola e evitar o colega de classe. Não adiantou.
Na manhã de 24 de outubro de 1941, bem antes do meio-dia, Raul tentou estuprá-la próximo ao poço e, diante de sua resistência, a matou. Oitenta e um anos depois, um palco foi montado na região do Cariri para beatificá-la, num primeiro passo muito importante do longo trajeto rumo à sua canonização pelo martírio que sofreu.
Todos os anos, romarias são realizadas para homenagear Benigna. Atraem - dentre toda a sorte de gente em busca de alcançar graças de todo tipo - outras vítimas de violência machista, que pedem milagres diante do gargalo que persiste nas políticas públicas de proteção do país.
Mas a própria memória do martírio que sofreu Benigna (e muitas outras meninas do sertão adoradas como santas em vários estados do Nordeste) ainda se vê presa na lógica machista que parte de seus romeiros tenta quebrar.
Durante uma superlotada cerimônia de beatificação, líderes religiosos destacaram a “castidade” de Benigna, principal narrativa cultivada dentro da igreja ao longo de oito décadas. O primeiro milagre de Benigna é atribuído justo ao arrependimento de seu assassino.
“Preferiu a morte que a paixão. Preferiu a morte a romper com a sua dignidade, santidade”, disse um dos religiosos, que a chamou também de "defensora da dignidade da mulher” e de “ícone contra o abuso sexual de crianças e adolescentes”.
É preciso refletir sobre de qual dignidade estamos falando. Naquele 24 de outubro, Benigna resistiu a Raul o quanto pôde: ao assédio e aos golpes de facão que o colega de classe desferiu com raiva em suas mãos, pescoço e face até deixá-la praticamente decepada.
Benigna tentava proteger seu corpo e tentava escapar de uma violência que persiste até hoje, tantas vezes banalizada. Uma menina de 13 anos, tão vulnerável a uma violência machista normalizada na sociedade, que acabou assassinada.
Sua morte ocorreu de forma tão brutal e chocante que a comunidade ressignificou aquele feminicídio e passou a vê-la como santa pelo martírio que sofreu. Benigna não é a única mártir. Pelos rincões do Nordeste, há várias outras meninas assassinadas em meio à violência machista e santificadas pela população. Não basta vê-las como santas, é preciso protegê-las.
Benigna precisa parar de ser associada como mero símbolo da castidade por resistir ao estupro. Que se fortaleça como ícone da luta contra um crime tipificado somente muitos anos depois de sua morte: o feminicídio.
Uma mulher é assassinada a cada sete horas no Brasil só pelo fato de ser mulher, segundo o estudo mais recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com dados de 2021. O Ceará, e especialmente a região do Cariri, também amargam o problema. O dia da morte de Benigna passou a ser considerado, por lei, o dia estadual da luta contra o feminicídio. Que repudiemos que seu martírio siga se repetindo.
Este texto contou com a colaboração de Fernanda Siebra, que acompanhou as romarias e a beatificação no Cariri.