Dedos ágeis entrelaçam mechas de cabelo. Rapidamente, elas se transformam em caminhos de tranças, meticulosamente desenhadas da raiz à ponta das madeixas. Ao fundo, a voz serena entoa cânticos africanos, que curiosamente podem soar nostálgicos mesmo à primeira escuta. O processo é finalizado com o Khunigira, mantra que, com leves apertos na cabeça trançada, busca afastar as dores características do vai e vem dos fios. 

É assim que Rita José Timba, mais conhecida como Negra Moz, exerce, aos 39 anos, o ofício que carrega desde os 14: ser trancista. A felicidade estampada no riso largo e a familiaridade com a atividade disfarçam a complexidade do trabalho que, nas mãos da moçambicana, parece brincadeira de criança. 

Mas não é. Ser trancista é profissão de adulto e, pela primeira vez no Brasil, teve a relevância econômica, social e cultural reconhecida com a criação de uma Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) específica para o ofício, tradicionalmente exercido por mulheres negras.

A medida do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) ocorreu em junho deste ano.  

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Trancista Negra Moz
Legenda: Rita José Timba, mais conhecida como Negra Moz, é natural de Moçambique e trabalha como trancista desde os 14 anos
Foto: Fabiane de Paula

Para Negra, o trabalho de trancista veio como uma oportunidade de liberdade financeira. Filha única, nascida e crescida em Moçambique, desde pequena aprendeu com a mãe o valor da autonomia feminina e o poder da autodefesa. 

Assim, além de trabalhar com agricultura, logo começou a trançar os cabelos de outras mulheres, inicialmente em troca de insumos como açúcar e sabão. 

“Eu assistia minhas manas mais velhas trançando, aí aprendi vendo. Dificilmente tu vais encontrar uma mulher na África que não sabe fazer absolutamente nenhuma trança. É muito cultural”, relembra. 

Depois de ter o primeiro salão na terra natal, em 2006, e dar aula para as primas manterem o negócio, este ano Negra partiu para o próximo desafio: viver da própria arte em Fortaleza

Negra Moz.
Negra Moz.
Negra Moz.
Legenda: Para Negra, o trabalho de trancista veio como uma oportunidade de liberdade financeira.
Foto: Fabiane de Paula

Atualmente, a também gestora cultural e multiartista concilia oficinas e apresentações performáticas com o trabalho de trancista nas praias e praças alencarinas. 

É um orgulho transmitir esse conhecimento e fazer valer a sustentabilidade para mais mulheres. Sendo mulher africana, de um país onde essa profissão ainda não é legalmente respeitada, para mim é um orgulho poder presenciar essa aprovação.”
Negra Moz
Trancista

“E é um desafio levar isso para empoderar todas as trancistas do meu país, para que essa atividade também seja respeitada como uma profissão legal. O sonho de toda trancista é ter um salão de beleza, onde ela mostra sua arte e cria empregabilidade”, completa Negra.  

separador

Negra é uma entre tantas trancistas cujas atividades até então não eram reconhecidas como profissão. Segundo a Secretaria da Igualdade Racial do Ceará (Seir-CE), apenas cerca de 10 trancistas estão oficialmente registradas no Estado.

A falta de reconhecimento da profissão pode ter contribuído para a subnotificação dessas profissionais. Já no Brasil, um nova estimativa aponta a existência de 500 mil trabalhadores nessa área.

Sob o código 5161-65 no sistema da CBO, a nova ocupação, também descrita como “trançadeira capilar” e “artesã capilar”, representa não só um ofício estético, mas um resgate e preservação de raízes culturais que refletem o papel da negritude na construção da sociedade brasileira

“Além de ser o reconhecimento profissional de uma atividade ancestral, é o reconhecimento histórico da importância das mulheres negras”
Anatalina Lourenço
Chefe da Assessoria de Participação Social e Diversidade do MTE
  

A medida surgiu após reivindicações de lideranças negras e discussões entre o Ministério do Trabalho e grupos de trancistas, segundo a chefe da Assessoria de Participação Social e Diversidade do MTE, Anatalina Lourenço.

“Além de ser o reconhecimento profissional de uma atividade ancestral, é o reconhecimento histórico da importância das mulheres negras. Reconhecimento do que elas aprenderam com as mães, com as avós, e passam para as filhas, netas… Reconhecer que esse afeto também pode gerar renda e é o sustento, muitas vezes, de muitas famílias, é maravilhoso. Ali elas vão curando as dores do cotidiano enquanto vão trançando os cabelos uma das outras e transmitindo afeto”, defende.  

O processo envolveu a criação de uma comissão para o estudo da prática, dos materiais e técnicas utilizados e da vivências desses profissionais, junto a trancistas representantes de cada região brasileira.

A partir dessas conversas, a estimativa é que existam mais de 500 mil trabalhadores nessa área em todo o território nacional. 

A movimentação também contou com um pedido oficial da deputada federal Rogéria Santos (Republicanos-BA), com apoio da vereadora Ireuda Silva, pela oficialização da atividade junto ao Ministério do Trabalho.  

Negra Moz trançando o cabelo de cliente em praça pública.
Legenda: Atualmente, Negra Moz concilia oficinas e apresentações performáticas com o trabalho de trancista nas praias e praças alencarinas.
Foto: Fabiane de Paula

“A gente está falando de pessoas majoritariamente negras sendo inseridas no mercado de trabalho. De fato precisava desse reconhecimento, mas considero tardio. Ainda não há uma lei específica que regule isso, mas é o pontapé inicial”
Lanna Peixoto
Advogada da Comissão de Igualdade Racial da OAB-CE

Na visão da advogada da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil do Ceará (OAB-CE), Lanna Peixoto, a medida é um marco histórico comparável à PEC das Domésticas (Emenda Constitucional nº 72 de 2013), Proposta de Emenda à Constituição que ampliou os direitos trabalhistas para os trabalhadores domésticos no Brasil. 

O que muda na prática para as trancistas

O primeiro direito destacado por Anatalina Lourenço a partir da nova medida é o direito associativo, ou seja, a possibilidade de criar associações ou sindicatos que negociem melhorias para a classe, como linhas de crédito específicas. 

Já a advogada Lanna Peixoto explica que “o CBO é como se fosse uma lista de todas as profissões existentes no mercado de trabalho”.

Assim, a inserção da profissão de trancista no código prevê a contratação com carteira de trabalho assinada, reconhecimento junto ao Simples Nacional e acesso à previdência social e ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Negra Moz.
Negra Moz.
Negra Moz.
Legenda: Com leves apertos na cabeça, o mantra Khunigira busca afastar as dores características do trançado.
Foto: Fabiane de Paula

Outro impacto dessa identificação é a possibilidade de criação de um mapeamento detalhado desses profissionais, medida fundamental para a criação de ações específicas em benefício do grupo.  

Para as trancistas que preferem seguir como autônomas, a analista do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Ceará (Sebrae/CE) Evelynne Tabosa aconselha se cadastrar como Microempreendedor Individual (MEI), obtendo um Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) e acesso a benefícios como aposentadoria, auxílio-doença e salário-maternidade.

"É o primeiro passo para ter sua empresa e poder crescer de forma organizada", sugere. 

Impacto econômico e novas oportunidades de negócios

A formalização da profissão de trancista traz não só impactos culturais e sociais, mas também econômicos. 

Segundo a economista e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) do curso de Pós-Graduação em Economia (Caen) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Natália Cecília de França, a redução da informalidade profissional do grupo também é uma consequência direta da medida.

“Isso vai reduzir os riscos de exploração a que essas pessoas estão expostas e vamos ter uma inclusão produtiva. Teremos maior chance de empreendedorismo e aumento de renda para essas pessoas, o que vai contribuir para uma autonomia econômica”, descreve. 

Mais pessoas vão querer entrar nessa atividade, vão começar a falar sobre isso e vão querer fazer trança. Aí aumenta a demanda por insumos e por produtos de cuidado para as tranças. É todo um ciclo que vai se retroalimentando
Natália Cecília de França
economista e pesquisadora do LEP

Natália também destaca a geração de cursos de capacitação e empregos indiretos, devido ao aumento da demanda por produtos estéticos e outros insumos necessários ao ramo. A especialista acredita, ainda, que o reconhecimento pode atrair, para a profissão, pessoas anteriormente afastadas pela via única da informalidade.

Loja triplicou o faturamento após comercializar produtos para trancistas  

Mesmo antes da formalização do ofício, o trancismo já mostrava o potencial no mercado cearense. Um exemplo disso é o caso de Walfredo Noronha, que enxergou essa oportunidade econômica em 2022. O aposentado de 69 anos gerencia, junto do filho Érico Noronha, a Loja Prime Charm, especializada em produtos de cabelo. 

Loja Prime Charm
Loja Prime Charm
Loja Prime Charm
Loja Prime Charm
Legenda: Walfredo Noronha triplicou o faturamento da loja após começar a vender produtos para trancistas
Foto: Kid Júnior

O empreendimento, localizado no Centro de Fortaleza, começou em 2017, voltado para bijuterias e maquiagem. A mudança no foco da empresa veio, no entanto, quando Walfredo conheceu uma fornecedora de fibras capilares durante visita de negócios a São Paulo. 

“Eu fiquei curioso, né? Fui olhar e gostei. Achei viável porque percebi que o mercado era novo, estava se expandindo, e a gente não tinha loja assim em Fortaleza. Daí eu fui pesquisar onde é que tinha para vender, quais os tipos de produtos. Conversei muito com as trancistas, elas foram minhas grandes aliadas”, conta Walfredo. 

Desde então, o empreendedor relata ter triplicado o faturamento da empresa. O carro-chefe da loja é a fibra sintética jumbo, disponível em cerca de 30 cores. 

Loja Prime Charm.
Loja Prime Charm.
Loja Prime Charm.
Loja Prime Charm.
Legenda: O carro-chefe da loja é a fibra sintética jumbo.
Foto: Kid Junior

“Eu tive que arranjar um espaço cinco vezes maior que a minha loja para poder guardar o material. Cada dia cresce mais, cada dia eu coloco um produto novo. A gente pensa em expandir para outros estados”
Walfredo Noronha
Gestor da Loja Prime Charm, especializada em produtos de cabelo

Além disso, o empreendimento oferece fibras capilares sintéticas e orgânicas, com opções lisas, onduladas e cacheadas, cosméticos para cabelos cacheados e crespos e materiais específicos para trancistas, como anel separador de mechas e pomadas capilares. 

Na visão de Walfredo, o mercado voltado para esse grupo em Fortaleza tem espaço para expandir ainda mais. 

Busca por reconhecimento e desgaste físico: a jornada de uma trancista

A popularização das tranças também é atestada pela artesã capilar Isabelle Davis. Aos 27 anos, ela narra o crescimento de lojas voltadas para produtos do ramo em Fortaleza. 

“A gente tinha poucas opções de lugares para comprar. Hoje, a gente consegue encontrar diversos tipos de fibra, diversas texturas de cachos, além de outros utensílios que facilitam o nosso trabalho. Sempre tem alguma coisa nova sendo inventada”, afirma. 

Isabelle Davis.
Legenda: Isabelle Davis, 27, começou a trançar em 2016.
Foto: Fabiane de Paula

A vida da jovem se entrelaçou com o ofício por volta de 2016. O trabalho começou somente nos próprios cabelos da profissional, mas rapidamente foi criando raízes em mais cabeças. Enquanto o trançado chamava a atenção de outras pessoas, Isabelle percebeu que o hobby poderia se transformar em fonte de renda.  

“Comecei de forma muito informal e nunca fiz nenhum curso. Tudo o que aprendi foi na tentativa e erro, ou então vendo vídeos na internet. Eu cobrava um valor muito barato porque estava aprendendo. Foi na prática que entendi o quanto aquilo me custava fisicamente e comecei a precificar a partir do que achava coerente com o esforço”, relembra. 

Atualmente, Isabelle vive exclusivamente do trabalho como trancista e atende no Salão Experimental, no bairro José Bonifácio, em Fortaleza, apresentando uma renda média mensal entre R$ 3.000 e R$ 4.000.

Segundo a profissional, a conquista da autonomia financeira a partir do ofício de trancista veio entre o segundo e terceiro ano de trabalho. O atendimento, que antes era de, no máximo, quatro pessoas por mês, hoje, atinge de 20 a 30 clientes

“Está muito mais popularizado. Quando é um procedimento mais rápido, dá para atender até quatro pessoas por dia”, revela. 

Isabelle Davis.
Isabelle Davis.
Isabelle Davis.
Legenda: Isabelle percebeu que o hobby de trançar cabelos poderia se transformar em fonte de renda.
Foto: Fabiane de Paula

O aprimoramento da atividade veio junto às dores nos pés e lesões por esforço repetitivo nas mãos e nos pulsos. Durante a rotina de terça à sábado, a artesã capilar concilia os atendimentos aos clientes com o manejo das redes sociais e a organização semanal. 

“Precisei sofrer muito para aprender algumas coisas. Tive que moldar meu trabalho a partir das consequências que isso me trouxe, porque passei a ter muito problema de lesão por movimento repetitivo”
Isabelle Davis
Trancista
 

A ideia é alternar os dias em que precisa passar de seis a oito horas em pé trançando fios com momentos de trabalho mais leve, algo que a jovem passou a aplicar após recomendações médicas. 

Inicialmente cadastrada como Microempreendedor Individual (MEI) sob a atividade de “Cabeleireiro”, Isabelle acredita que o reconhecimento da profissão de trancista atesta o papel fundamental do ofício na economia criativa brasileira, transformando a noção de negócio antes atribuída à atividade. 

“A medida propõe pra gente uma perspectiva mais séria do nosso trabalho, porque tem muita tendência de enxergarem esse trabalho como um bico. Então, a partir desse momento, acredito que temos um respaldo legal para trabalhar com valores justos, porque a informalidade abre margem para que a gente trabalhe com preços muito abaixo do ideal”, salienta.

Isabelle Davis.
Isabelle Davis.
Isabelle Davis.
Isabelle Davis.
Legenda: Atualmente, Isabelle vive exclusivamente do trabalho como trancista.
Foto: Fabiane de Paula

Agora com a possibilidade de ser contratada de carteira assinada como trancista, Isabelle expressa o desejo de experimentar a dinâmica. “Tenho muita curiosidade para saber como é ter certos direitos, como ter férias, porque quando quero ter férias, tenho que trabalhar muito para poder ficar uns dias parada”, lamenta. 

A luta só começou

O reconhecimento do ofício de trancista é apenas o primeiro passo de uma caminhada longa em busca de um cenário concreto de segurança profissional. Uma das etapas dessa jornada é o fortalecimento de articulações entre as artesãs, movimento ainda tímido no Ceará. 

Essa é a perspectiva do coordenador de políticas públicas da Secretaria da Igualdade Racial do Ceará (Seir-CE), Wellyson Aguiar. Segundo ele, a organização política e associativa dessas profissionais ainda deve avançar ao longo do tempo. 

“O que eu tenho notado é que essas mulheres estão buscando se juntar para alugar um espaço e transformar num estúdio. Eu conheço muitas meninas que começaram fazendo tranças em si e hoje têm salão. Você encontra, por exemplo, mulheres dando cursos", observa.

"Então, falando de organização enquanto sindicato, ainda não temos, mas acredito que, no decorrer dos próximos anos, com certeza vamos ouvir falar de um sindicato de trancistas”, projeta. 

Atualmente, a Seir conta com um Levantamento Estratégico de Dados para o Empreendedorismo Negro, Quilombola, dos povos de Terreiro e Cigano do Ceará, com o objetivo de mapear esses profissionais e promover políticas públicas específicas para o grupo. 

Wellyson explica que, apesar de profissionais trancistas terem sido registrados no formulário, o número de poucas unidades está muito aquém da realidade cearense. Assim, ele espera que o reconhecimento do ofício dê visibilidade à atividade. 

Isabelle Davis.
Legenda: Agora com a possibilidade de ser contratada de carteira assinada como trancista, Isabelle expressa o desejo de experimentar a dinâmica.
Foto: Fabiane de Paula

De acordo com a representante do MTE, Anatalina Lourenço, a articulação social entre organizações representativas de trabalhadores, governo e empregadores é essencial para a definição de aspectos ainda em aberto, como jornada de trabalho e piso salarial. 

“A expectativa é que essas trabalhadoras busquem se organizar para reivindicar condições de trabalho. O avanço da pauta depende, também, da organização desses profissionais. Meu desejo é que elas ganhem o mundo e que esse conhecimento possa ser divulgado”, diz. 

Segundo ela, os próximos passos do Ministério do Trabalho devem envolver reuniões com pastas como os Ministérios da Saúde, da Previdência Social, da Fazenda e do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte em busca de ações que beneficiem esse grupo. 

Enquanto esses fatores não são decididos, a advogada Lanna Peixoto esclarece que a profissão é aplicada à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de forma geral, com uma jornada de oito horas diárias. 

Já para o estabelecimento de um piso salarial a especialista destaca ser necessário um projeto de lei aprovado nas casas legislativas, processo que pode ocorrer de forma nacional ou estadual. 

 

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