Até os 10 anos, Márcia Bezerra, hoje com 52 anos, ainda não havia experimentado uma fruta sequer. Criada por mãe solo, sua dieta era limitada: arroz, feijão, ovo e, às vezes, tripa de galinha. O alimento mais acessível em sua casa era a farinha, usada para fazer uma mistura quando alguns desses itens chegavam ao seu prato. Mesmo assim, os grãos eram frequentemente obtidos catando o que caía dos caminhões da mercearia próxima. 

Por volta dos seus oito anos, encantada com a fartura de um terreno no bairro onde nasceu e se criou em Fortaleza, ela decidiu se esgueirar entre os arames dessa propriedade para pegar os frutos dos pés de manga e de seriguela. Não deu certo. Precisou sair correndo, açoitada com balas de chumbinho na canela, sem levar nada.

Por volta dos seus oito anos, encantada com a fartura de um terreno no bairro onde nasceu e se criou em Fortaleza, ela decidiu se esgueirar entre os arames dessa propriedade para pegar os frutos dos pés de manga e de seriguela. Não deu certo. Precisou sair correndo, açoitada com balas de chumbinho na canela, sem levar nada.

Márcia não sabe precisar o dia dessa tentativa frustrada de descobrir o sabor desses alimentos, mas lembra bem quando provou uma fruta pela primeira vez. Ela tinha 10 anos, e sua mãe havia recebido o pagamento do trabalho como quebradeira de castanha.

Parte do dinheiro garantiu o arroz e o feijão da família, mas também foi possível comprar abacates, que seriam divididos entre Márcia, sua mãe e seus quatro irmãos. Para fazer render, a matriarca amassava o fruto verde, acrescentando farinha e açúcar.

“Nosso pai foi muito ruim. Ele abandonou minha mãe quando eu tinha dois anos e nunca nos ajudou com nada. O dinheiro dela não dava conta. Crescemos vendo nossa mãe trabalhar 'nas castanhas’ para comprar o básico. Quando ela recebia, comprava uns cinco abacates para o mês. Era a única fruta à qual tínhamos acesso, porque naquela época as escolas não serviam como hoje", relata.

Márcia com camisa preta em frente ao muro amarelo
Legenda: Márcia precisou abandonar os estudos durante o ensino fundamental, na 7ª série
Foto: Kid Jr /SVM

Assim, Márcia consumiu abacate, ocasionalmente, até os 15 anos. Pouco antes de fazer 16 anos, ela iniciou um relacionamento com um homem nove anos mais velho, com quem teve sua primeira filha três anos depois. 

A renda do ex-companheiro permitia à família consumir frutas variadas, como banana, laranja e maçã. Após sete anos, ele a deixou com três filhos e sem renda. Com o apoio da irmã e de uma tia, que cuidaram de seus filhos, Márcia iniciou sua vida profissional como costureira e, posteriormente, trabalhou como merendeira em uma escola municipal por 12 anos. 

“Aí a situação voltou a melhorar. Com o meu dinheiro, podia comprar alimentos, frutas. Para você ter ideia, só vim a comer kiwi e aquela fruta parecida (pitaya) aos 44 anos", conta. 

Atualmente, Márcia vive da fabricação de produtos de limpeza para revenda, desde que saiu do trabalho fixo por motivo de saúde, há três anos. Também é líder comunitária no bairro Floresta, onde capta projetos sociais para melhorar a situação da comunidade e atua como conselheira do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea Fortaleza). 

"Hoje, as crianças têm acesso a todo tipo de alimento, tanto na escola quanto em casa. Quando vejo minha filha preparando três ovos para o meu neto, lembro da minha infância, quando era um ovo e para duas pessoas e um pão, para quatro", completa.  

Quando o jeito era dormir para enganar a fome 

Jéssica sorrindo para a foto. Ao fundo, um muro amarelo. Ela veste uma camisa vermelha
Legenda: Jéssica precisou abandonar os estudos no início do ensino fundamental, mas estava cursando o 8º e 9º ano pelo programa Educação de Jovens e Adultos (EJA). Ela pretende retornar para concluir o ensino médio quando receber a carteirinha que dará gratuidade ao transporte
Foto: Bruna Damasceno / SVM

A cearense Jéssica Rodrigues, de 34 anos, teve uma infância marcada por severas restrições alimentares, sobrevivendo principalmente de mingau de amido de milho com água e feijão com farinha. Criada em uma família monoparental, ela recorda: “Tinha dia que a gente dormia com fome, e minha mãe ficava desesperada".

“Tinha dia que a gente dormia com fome, e minha mãe ficava desesperada, conta a faxineira Jéssica Rodrigues, de 34 anos.”

Apenas aos 15 anos Jéssica provou sua primeira fruta, um marco inesquecível diante de tamanha privação. "Foi manga. E por isso hoje sou doida por manga”, brinca. Atualmente, a jovem trabalha como faxineira e sustenta sozinha suas três filhas. Oferecer uma alimentação variada à família ainda é “uma luta”.

Seu tempo se divide entre levar e buscar as filhas em três escolas diferentes e realizar faxinas. Essa rotina a impediu de ter um trabalho com carteira assinada até hoje. Com uma renda instável, o Bolsa Família e outros programas sociais a ajudam a garantir frutas e verduras na mesa, principalmente fora do período escolar.

“Faço de tudo para ter frutas na minha casa, mas também fico aliviada porque as meninas merendam, almoçam e comem frutas na escola. Me esforço para continuarem lá, porque o que posso dar a elas é o estudo, algo que não tive, já que no meu tempo era muito mais difícil”, observa.

“Apesar de tudo, minhas filhas dizem que querem ser como eu, porque não me veem chorando ou reclamando da vida. Sempre digo a elas: ‘Se hoje não tem, amanhã terá e poderá ser melhor’. E elas veem isso acontecer. Então, boto o joelho no chão e agradeço a Deus”, finaliza Jéssica.

“Apesar de tudo, minhas filhas dizem que querem ser como eu, porque não me veem chorando ou reclamando da vida. Sempre digo a elas: ‘Se hoje não tem, amanhã terá e poderá ser melhor’. E elas veem isso acontecer. Então, boto o joelho no chão e agradeço a Deus”, finaliza Jéssica.  

Quando a mendicância tornou-se a única alternativa

Dona Dulce de perfil
Legenda: Dulce concluiu apenas a 5ª série, mas depois retornou aos estudos por meio do programa Educação de Jovens e Adultos (EJA), onde ficou por 10 anos.
Foto: Ismael Soares / SVM

Em maio de 1958, uma jovem deu à luz Dulce de Araújo, hoje com 66 anos, em uma zona rural de Granja, no interior do Ceará. Por viver em extrema pobreza, entregou a bebê a uma família com melhores condições financeiras. Nesse lar, Dulce cresceu com afeto e nutriu o sonho de, um dia, ir para a capital e tornar-se artista de televisão.

"No interior, enfrentávamos muitas dificuldades porque, na roça, não havia uma alimentação muito boa. Às vezes, raspávamos mandioca para fazer farinha, tínhamos um caldo de feijão e uma gordura de gado", relembra.

No interior, enfrentávamos muitas dificuldades porque, na roça, não havia uma alimentação muito boa. Às vezes, raspávamos mandioca para fazer farinha, tínhamos um caldo de feijão e uma gordura de gado", relembra Dulce de Araújo, de 66 anos.

Aos 10 anos, Dulce conheceu a mãe biológica. Aos 14, decidiu mudar-se para Fortaleza, onde experimentou pela primeira vez uma fruta: banana. No entanto, a realidade na cidade era dura. Quando chegou, logo precisou trabalhar como empregada doméstica e quebrar castanhas, mas sempre na informalidade.

A sequência desses fatos se confundem nos relatos de dona Dulce, mas as lembranças dolorosas resistem na memória fustigada. Anos mais tarde, vieram os quatro filhos. “Passei por muitas necessidades, e meu companheiro, às vezes, ficava desempregado. Não tenho vergonha de dizer que eu pedi esmola para alimentar meus filhos”, rememora.

“Passei por muitas necessidades, e meu companheiro, às vezes, ficava desempregado. Não tenho vergonha de dizer que eu pedi esmola para alimentar meus filhos”, rememora.

Depois, seu então companheiro conseguiu emprego como vigilante, permitindo aos filhos crescerem consumindo suco de tomate e uma mistura de banana. O rendimento conjunto, somado aos benefícios sociais, foi suficiente para colorir os pratos. 

Atualmente, com o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Cartão Ceará Sem Fome, Dulce consegue manter uma alimentação adequada. “Antigamente, não podia comprar, então, quando recebo, não consigo guardar. Compro minhas coisinhas, sim: frutas, legumes e verduras para fazer salada cozida com cenoura e batata, e ainda gosto de comidas regionais, como creme de galinha”, lista. 

Senhora grisalha vestindo camisa estampada
Legenda: Hoje, Dona Dulce não abre mão de uma dieta com frutas e verduras
Foto: Ismael Soares / SVM

Não faltava alimento, faltava renda 

Bananas
Legenda: Estudo identificou uma estreita relação entre distribuição de renda, pobreza e insegurança alimentar no Brasil
Foto: Thiago Gadelha / SVM

O que a Dulce, Jéssica e Márcia viveram durante a infância tem nome: insegurança alimentar. Esse problema ainda atinge, em algum grau, 3,4 milhões de pessoas no Ceará, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no último trimestre de 2024.

Essas mulheres saíram dessa estatística, há alguns anos, graças ao acesso à renda, incluindo aquela oriunda de programas de transferência. Afinal, durante a infância delas, não adiantava a inflação das frutas e verduras cair: não havia recursos para comprá-las, independentemente do preço.

O pouco dinheiro era destinado a cessar a fome de maneira urgente, conforme relataram. Hoje, com seus filhos e netos, a situação é outra. A criação da Lei do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), há 16 anos, garante uma alimentação saudável e três refeições completas na escola, enquanto o Bolsa Família (existente há 22 anos) viabiliza a aquisição das necessidades básicas da família.

No estudo “Insegurança alimentar no Brasil e relação com a pobreza e outros condicionantes, 2004 a 2023”, de Josimar Gonçalves de Jesus e Rodolfo Hoffmann, os autores analisam a intricada relação entre a ausência de rendimento e a dificuldade de acesso à alimentação, como destaca um dos pesquisadores. 

 

“Pessoas estão sofrendo de fome e de desnutrição no Brasil e não pode haver dúvida de que isso não se deve à falta de alimentos ou à inexistência de oferta de alimentos a preços razoáveis, ou a problemas de logística na distribuição. Deve-se, sim, ao fato de essas pessoas não terem acesso a alimentos suficientes, e isso se relaciona, em geral, com o fato de elas não terem renda para comprá-los”, diz Josimar Gonçalves de Jesus, doutor em Economia Aplicada.

Desigualdade racial e a falta de emprego elevam o risco de insegurança alimentar

Feira de frutas
Foto: Fabiane de Paula / SVM

De acordo com o estudo, pessoas brancas (42,7%), casadas (36,9%), empregados formalmente (40,2%) e servidores públicos (35,2%), apresentam menor probabilidade de enfrentar insegurança alimentar moderada ou grave.

O fator de gênero apresenta um leve aumento na probabilidade de insegurança alimentar entre os homens, sendo menor nas casas onde a responsável é uma mulher (68,3%) em comparação com aqueles em que o responsável é um homem (76,8%). No entanto, sublinha Josimar, a simples comparação entre os dois tipos de domicílio gera interpretações equivocadas da realidade.

Conforme o pesquisador, ao controlar variáveis como renda, escolaridade e, principalmente, a presença de cônjuge no domicílio, observa-se que o aumento da probabilidade de insegurança alimentar não está associado diretamente ao fato de o domicílio ser chefiado por uma mulher, mas a fatores relacionados, como o abandono do lar por parte dos homens

Nessas situações, a mulher se torna a referência principal do domicílio. Esse cenário é ilustrado nas histórias das três personagens entrevistadas nesta reportagem, cujas trajetórias foram marcadas pela ausência dos pais. O pesquisador também enumera algumas hipóteses possíveis para explicar o resultado. 

"Uma delas seria que, ao tomar decisão sobre como serão alocados os recursos da família, se essa decisão é da mulher, em comparação com os homens, ela daria maior prioridade a alimentação em detrimento de outros tipos de gasto. Outra possibilidade seria que, controlados os efeitos dos demais fatores, os homens teriam mais vergonha de admitir que o domicílio chefiado por ele estaria passando por uma situação de insegurança alimentar”, lista Josimar.

“Uma delas seria que, ao tomar decisão sobre como serão alocados os recursos da família, se essa decisão é da mulher, em comparação com os homens, ela daria maior prioridade a alimentação em detrimento de outros tipos de gasto. Outra possibilidade seria que, controlados os efeitos dos demais fatores, os homens teriam mais vergonha de admitir que o domicílio chefiado por ele estaria passando por uma situação de insegurança alimentar”, lista Josimar. 

Outro achado relevante do estudo é a constatação sobre o aumento da insegurança alimentar leve ter sido mais acentuado ante o crescimento da pobreza entre 2013 e 2017-2018. 

Segundo Josimar, embora seja inquestionável o crescimento desse problema no Brasil desde o início da crise econômica de 2014, os resultados do estudo indicam que o seu aumento expressivo, especialmente da forma leve e, em menor grau, da moderada, entre 2013 e 2017-2018, reflete, em parte, uma percepção ajustada dos brasileiros às novas condições econômicas. 

A avaliação do nível da fome foi realizada com base na Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia). O método classifica os domicílios em uma das quatro categorias de acordo com o número de respostas afirmativas às 14 perguntas da métrica, considerando a presença ou ausência de moradores menores de 18 anos.

Para os pesquisadores, nesse contexto, muitas famílias se habituaram a investir mais na alimentação desde meados dos anos 2000, e a evidente insatisfação com o agravamento da crise a partir de 2014 pode contribuir para serem mais facilmente classificadas em situação de insegurança alimentar ao responder às perguntas da Ebia, dada a natureza subjetiva de algumas delas. Ele pondera, contudo, a necessidade de estudos adicionais sobre o tema.

Para o levantamento, foram considerados dados da  Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), divulgada pelo IBGE, em 2023.

A fome quase desaparece com renda de um salário mínimo por pessoa, mostra pesquisa 

Carrinho quase vazio com apenas dois pacotes de feijão
Foto: Thiago Gadelha / SVM

No Brasil, 91% dos domicílios com renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo enfrentam insegurança alimentar, conforme  o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), formada por pesquisadores, professores, estudantes e profissionais. 

Desses, 43% vivenciam a fome. Em contrapartida, 67% dos domicílios com renda superior a um salário mínimo possuem segurança alimentar.

Em contrapartida, 67% dos domicílios com renda superior a um salário mínimo possuem segurança alimentar.

Contudo, a segurança alimentar, antes garantida em 2020 para domicílios com renda superior a um salário mínimo por pessoa, foi comprometida em 2022 devido à crise econômica e à defasagem salarial. Naquele ano, 3% desses domicílios passaram a conviver com a fome, enquanto 6% enfrentaram redução no acesso aos alimentos.

Inflação tem peso significativo 

As histórias das mulheres ouvidas nesta reportagem evidenciaram a urgência do acesso à renda para evitar a insegurança alimentar da população. Todavia, embora não seja o fator primordial, a inflação também pode dificultar o acesso aos alimentos e agravar a situação.

Segundo relatório do Pacto Contra a Fome, a instabilidade nos preços provoca diferentes impactos para famílias em situação de pobreza e grupos vulnerabilizados socialmente. 

“Isso porque o peso da alimentação nos orçamentos familiares é muito desigual, representando até 61,2% dos gastos das famílias com renda até R$ 2 mil, em contrapartida com os 7,6% das famílias com renda superior a R$ 23 mil”, mostra o documento. 

O relatório indica que a isenção da cesta básica nacional na reforma tributária é medida eficaz para mitigar o problema da alta dos preços dos alimentos para a população de menor poder aquisitivo.

Atualmente, o governo federal busca alternativas para reduzir os custos desses produtos. Dentre elas, foi ventilada possibilidade de alteração dos prazos de validade em supermercados. Impopular, a pauta não avançou. 

Agricultura familiar também combate a insegurança alimentar

Agricultura
Foto: Honório Barbosa / SVM

A agricultura familiar, por sua diversidade produtiva, é um mecanismo importante para a segurança alimentar, sobretudo em regiões mais vulneráveis, conforme explica o técnico do Observatório da Agricultura Familiar do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Arianderso Melo.

“A agricultura familiar é muito importante para a redução dos índices de insegurança alimentar, pois os agricultores familiares tendem a cultivar uma variedade maior de alimentos. Dessa forma, contribui para uma dieta mais equilibrada e nutritiva”, avalia.

“Além disso, a produção local reduz a dependência de importações e longas cadeias de distribuição, fazendo com que os alimentos cheguem à mesa mais frescos e mais baratos. Também temos o fator da geração de emprego e renda, já que a agricultura familiar é uma importante fonte de trabalho, especialmente em áreas rurais, ajudando a reduzir a pobreza e melhorar a qualidade de vida da população”, enumera.  

Transferência de renda é fundamental, mas não é a única solução; veja 5 medidas  

Prato de comida
Foto: Thiago Gadelha / SVM

A economista e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Natália Cecília de França, aponta que programas de transferência de renda solucionam a fome de forma imediata, porém é necessário considerar esse problema a partir de políticas públicas combinadas e com uma perspectiva futura para a população.

"Essas medidas devem vir acompanhadas de ações que garantam a essas pessoas o acesso à renda e a alimentos no longo prazo, como aumento dos níveis de emprego, crescimento econômico, redução das desigualdades sociais, fortalecimento da agricultura familiar e de equipamentos de segurança alimentar e nutricional (como cozinhas comunitárias e restaurantes populares)", listou, acrescentando a importância do compromisso do Estado e da sociedade civil. 

“Deve existir uma preocupação em garantir o acesso a uma alimentação digna e saudável para toda a população, com atenção especial às crianças. Isso porque a privação de nutrientes nessa fase pode gerar consequências negativas no desenvolvimento por toda a vida futura", destaca Natália Cecília de França, economista e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará (UFC). 

Para ela, os 5 pilares para o combate à fome são:

  1. Programas de transferência de renda;
  2. Políticas para geração de empregos, valorização do salário mínimo e crescimento econômico;
  3. Ações para redução das desigualdades sociais;
  4. Fortalecimento da segurança alimentar e nutricional, incluindo cozinhas comunitárias, restaurantes populares, bancos de alimentos e incentivo à agricultura familiar;
  5. Garantia de qualidade e disponibilidade da alimentação escolar. 

Os desafios atuais para o prato cheio e colorido nas escolas 

Criança comendo
Foto: Fabiane de Paula

Os filhos de Dulce, Jéssica e Márcia, citadas no início desta reportagem, tiveram uma trajetória diferente de suas mães. Um dos motivos é o prato cheio oferecido nas escolas, uma conquista com a Lei do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), de 1999.

Apesar desse avanço, ainda há desafios postos no acesso ao alimento saudável nas escolas. O estudo “Para Monitorar o Direito à Alimentação Escolar”, realizado pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), mostra que o percentual de aquisição de agricultura familiar nos colégios estaduais do Ceará é de apenas 38,03%.

Outro dado alarmante é que, nos 184 municípios cearenses, havia somente 68 nutricionistas para todas as escolas estaduais, em 2022. Já 92,17% das entidades executoras dos alimentos nas instituições de ensino afirmaram adquirir o mínimo de 75% de alimentos in natura e minimamente processados para as merendas escolares. 

Para a assessora executiva e de pesquisa do ÓAÊ, Débora Olimpio, a questão preocupante desse dado positivo é ser considerado o que as entidades executoras dizem, sem confrontar as informações com a realidade. “Tivemos um estudo no País, feito em 2021, em que muitos alunos declararam ainda estar recebendo alimentos ultraprocessados com alta adição de açúcar”, exemplifica. 

A pesquisa em questão identificou que os alimentos mais presentes nas cestas distribuídas são o arroz (92%), o macarrão (86%) e o feijão (81%), seguidos de açúcar (66%) e óleo (54%). Poucos estudantes, contudo, receberam em suas cestas carnes (23%), legumes e verduras (29%) e frutas (19%).

"Olhando para os dados do Ceará, vemos não haver um fortalecimento da agricultura familiar para a entrada de alimentos, algo que precisa mudar, bem como fortalecer o acompanhamento da legislação de maneira correta. A Pnae foi um avanço, mas é preciso um olhar comprometido para, de fato, executá-la”, frisa.

Olhando para os dados do Ceará, vemos não haver um fortalecimento da agricultura familiar para a entrada de alimentos, algo que precisa mudar, bem como fortalecer o acompanhamento da legislação de maneira correta. A Pnae foi um avanço, mas é preciso um olhar comprometido para, de fato, executá-la”, frisa Débora Olimpio, assessora executiva e de pesquisa do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ). 

Sobre os resultados apresentados da pesquisa, a Secretaria de Educação do Ceará (Seduc) informou que, nas escolas da Rede Pública Estadual, são desenvolvidas ações que favorecem a mudança do cenário da insegurança alimentar, como a oferta de alimentação saudável e adequada à faixa etária e às necessidades nutricionais específicas dos alunos; a implantação de ações de Educação Alimentar e Nutricional (EAN); o monitoramento das escolas pela Equipe de Nutricionistas; além da formação de manipuladores de alimentos.

A pasta disse estar em curso a ampliação do número de escolas que funcionam em período integral. Atualmente, são 367 Escolas Estaduais em Tempo Integral (EEMTI) e 132 Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEP). Nas Unidades Escolares são ofertadas três refeições diárias, cujas opções de cardápio são elaboradas por profissionais nutricionistas da Seduc.

Quanto às escolas atendidas pelas Empresas do Serviço de Alimentação Escolar, informou que os cardápios são elaborados por nutricionista da contratada, de modo a suprir as necessidades nutricionais, conforme estabelecido na Resolução FNDE nº 06, de 08 de maio de 2020, adequando-os às faixas etárias e perfil epidemiológico da população atendida.

No que se refere ao número de nutricionistas, a partir da implantação do Serviço de Alimentação Escolar em novas escolas, a quantidade de profissionais das empresas é ampliada. Sobre a aquisição de produtos oriundos da Agricultura Familiar, a pasta afirmou que o Ceará vem cumprindo o que estabelece a legislação pertinente. 

A pasta disse, ainda, que o Governo do Estado complementa os recursos financeiros recebidos do Governo Federal, possibilitando um incremento nos cardápios ofertados nas Unidades Escolares da rede estadual. “Os cardápios são elaborados e assinados por nutricionistas, utilizando alimentos in natura ou minimamente processados, respeitando as necessidades nutricionais, os hábitos alimentares, a cultura alimentar da localidade”, garantiu. 

Ceará ampliará o número de quentinhas distribuídas por dia para 150 mil

Quentinhas
Foto: Thiago Gadelha / SVM

O Governo do Ceará, por meio da Secretaria de Proteção Social (SPS), informou executar iniciativas de transferência e renda e suporte alimentar a famílias em situação de vulnerabilidade social. Entre eles, os programas Cartão Mais Infância e Vale Gás Social direcionados para famílias com crianças, enquanto o Cartão Ceará sem Fome tem um público mais amplo, abrangendo famílias com crianças e adolescentes. 

O programa Mais Nutrição complementa as ações, com alimentos para instituições que atendem pessoas em situação de vulnerabilidade.

Já a Secretaria do Desenvolvimento Agrário afirmou que o combate à insegurança alimentar e o fortalecimento da agricultura familiar passam pela operacionalização das Cozinhas Ceará Sem Fome. Atualmente, existem 1.300 unidades nos 184 municípios, distribuindo cerca de 130 mil refeições diariamente. Com um novo edital em andamento, a expectativa é que em abril esse número aumente para 150 mil refeições diárias.

Já a Secretaria do Desenvolvimento Agrário afirmou que o combate à insegurança alimentar e o fortalecimento da agricultura familiar passam pela operacionalização das Cozinhas Ceará Sem Fome. Atualmente, existem 1.300 unidades nos 184 municípios, distribuindo cerca de 130 mil refeições diariamente. Com um novo edital em andamento, a expectativa é que em abril esse número aumente para 150 mil refeições diárias.

Uma dessas cozinhas, por exemplo, é do Instituto de Defesa da Cidadania Social (Aclor), onde a reportagem encontrou as personagens mencionadas no início do texto. 

Veja o impacto de algumas dessas medidas, segundo a pasta:

Cartão Mais Infância

  • Público-alvo: Famílias em extrema pobreza com crianças na primeira infância;
  • Benefício: Transferência mensal de R$ 100,00 para a compra de alimentos;
  • Número de beneficiários: 150 mil famílias.

Cartão Ceará sem Fome

  • Público-alvo: Famílias beneficiárias do Bolsa Família, com renda per capita de até R$ 218,00 e que tenham pelo menos uma criança ou adolescente;
  • Benefício: Transferência mensal de R$ 300,00 para a compra de alimentos;
  • Número de beneficiários: Mais de 53 mil famílias.

Vale Gás Social

  • Público-alvo: Famílias beneficiárias do Cartão Mais Infância e do Bolsa Família, com renda até R$ 87,00;
  • Benefício: Recarga anual do botijão de gás (três vezes por ano);
  • Número de beneficiários: Aproximadamente 205 mil famílias por distribuição.

Mais Nutrição

  • Público-alvo: Pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social;
  • Benefício: Doação de alimentos in natura, polpas de frutas e mixes de legumes;
  • Doação de 699.748,44 kg de alimentos em 2024;
  • Atendimento a 54.067 pessoas diariamente;
  • Parceria com 149 entidades;
  • Mais de 4 milhões de quilos de alimentos doados em 5 anos.

Nova gestão atualizará o Plano de Segurança Alimentar e Nutricional de Fortaleza 

Sobre o desafio de combater a segurança alimentar na Capital, a nova gestão municipal informou seguir as diretrizes da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. A prefeitura destacou que, por meio do Cadastro Único, são identificadas as famílias em situação de pobreza, de baixa renda e com renda de até meio salário mínimo por pessoa. 

“As políticas públicas municipais consideram, ainda, a população em situação de rua como público prioritário para as ações de segurança alimentar”, disse, em nota. 

Nos Centros de Referência da Assistência Social (Cras), por meio do Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif) e do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), também são acompanhadas as necessidades de famílias em vulnerabilidade.

“Na atual gestão, o Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de Fortaleza será atualizado com a participação da sociedade civil no Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de Fortaleza (Consea Fortaleza) e dos órgãos municipais na Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional de Fortaleza (Caisan)", afirmou. 

As ações listadas pela nova gestão foram:

  • São oferecidas cerca de 180 mil refeições mensais em equipamentos de assistência social;
  • São destinadas 95 mil refeições mensais, com distribuição em diversos pontos da cidade, incluindo busca ativa;
  • Hortas sociais produzem e distribuem cerca de 6 toneladas de hortaliças orgânicas por mês para famílias em vulnerabilidade e idosos, totalizando 3200 beneficiários;
  • Em parceria com o Governo Federal, por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a Prefeitura fornece até 18.900 litros de leite semanalmente para 71 organizações da sociedade civil,
  • Atualização do Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, com a participação da sociedade civil e órgãos municipais para a atualização do plano;
  • Nutricionistas da Prefeitura fiscalizam contratos, elaboram cardápios e capacitam profissionais.

Números da agricultura familiar no Ceará

Segundo a SDA, foram aplicados R$ 105,5 milhões em políticas públicas de comercialização da agricultura familiar em 2024. Desses, R$ 90,1 milhões foram via Lei do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e R$  7 milhões via Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)

A pasta destacou atuar com 72 cooperativas da agricultura familiar, 12 associações de produtores e 228 agricultores individuais. Ao todo, 162 cooperativas estão cadastradas no Sistema Estadual de Cadastro de Agricultores Familiares, Empreendedores Individuais e Empreendimentos Representativos (Secaf), contando com 8.691 cooperados.

O que diz o Governo Federal 

O Governo Federal informou, por meio do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), ter foco no Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável, garantido pela Constituição Federal. A pasta enviou este link para demonstrar as ações nesse sentindo.

O Brasil saiu do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014, mas retornou a essa condição entre 2019 e 2022. Há expectativa de que o país saia novamente desse índice crítico no triênio 2023-2025.

Dentre elas, estão os programas Cozinha Solidária, Cisternas e Fomento Rural. Além disso, constam as políticas Estratégia Alimenta Cidades e de Redução de Perdas e Desperdícios de Alimentos. 

Não foi mencionado pela pasta, mas é relevante lembrar que, em novembro de 2024, o Brasil lançou Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza. O objetivo é reunir recursos e conhecimento para implementar políticas públicas e ações que já se mostraram eficazes na redução da fome e da pobreza no planeta.

A iniciativa conta com a adesão de 148 integrantes fundadores, sendo 82 países, 24 organizações internacionais, nove instituições financeiras internacionais e 34 organizações filantrópicas e não governamentais, além da União Africana e da União Europeia.

 

Créditos

Bruna Damasceno Repórter
Produtores audiovisuais Fabiane de Paula, Honório Barbosa, Ismael Soares, Thiago Gadelha e Kid Junior
Artes Louise Dutra
Supervisores de Jornalismo Hugo R. Nascimento e Germano Ribeiro
Coordenadora de Jornalismo Karine Zaranza
Gerente de Jornalismo Ívila Bessa
Gerente de Audiovisual André Melo
Diretor de Jornalismo e Esporte Gustavo Bortoli