Guerra jurídica atrasa apuração das urnas da eleição americana
Donald Trump aciona Justiça para paralisar contagem das cédulas, alegando fraude, mas ofensiva jurídica sofre derrotas nos tribunais, enquanto Joe Biden adota discurso de vitória e já fala sobre a transição de poder na Casa Branca
A judicialização da contagem de votos da eleição presidencial complicou ainda mais a acirrada definição do próximo presidente dos Estados Unidos. A apuração entra hoje no quarto dia, com o democrata Joe Biden à frente do republicano Donald Trump. A diferença entre os dois, até a madrugada de hoje, tornava impossível prever o vitorioso.
Trump espera que a Suprema Corte, que tem maioria conservadora de 6 votos a 3, possa ter um papel determinante, como na eleição de 2000, mas analistas dizem que são pequenas as chances de que o Tribunal tenha a palavra final em algum dos casos.
A avaliação é de que a ofensiva judicial não deve afetar os resultados, por causa de provas frágeis e de um número pequeno de votos envolvidos.
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Em mais uma etapa dessa ofensiva, um dos filhos de Trump, Eric, anunciou um canal de denúncias, dizendo que "o volume de fraudes" nos cinco estados é "real". A postagem foi marcada como questionável pelo Twitter, e teve seu alcance reduzido.
Ontem, Biden tentou passar uma imagem de calma, nas entrelinhas já dando sinais de que acredita na vitória. Ao mesmo tempo, Trump subiu um degrau em seus ataques verbais e jurídicos à lisura do sistema, acusando, sem qualquer prova, as autoridades de aceitarem "votos ilegais", ampliando sua estratégia de, diante de derrotas cada vez mais prováveis, questionar o mesmo sistema que o elegeu há quatro anos.
Em discurso em Delaware, ao lado de sua companheira de chapa, a senadora Kamala Harris, o ex-vice-presidente de 77 anos voltou a afirmar que o necessário agora é contar todos os votos.
"Não tenho qualquer dúvida de quando vai acabar a contagem, eu e a senadora Harris seremos considerados os vencedores. Por isso, peço a todos que mantenham a calma, o processo está funcionando", afirmou. "A democracia por vezes é confusa, depende de um pouco de paciência".
Biden não se referiu a Trump em nenhum momento do discurso ou em suas postagens no Twitter. À tarde, participou de uma reunião com especialistas para traçar estratégias de combate ao novo coronavírus, justamente quando os EUA registram mais de 100 mil casos diários da doença. Dois sinais de que, na prática, Biden começa a deixar a campanha para trás e passa a focar em ações de governo. Na quarta-feira passada, foi lançado um site da transição.
O candidato democrata tem o caminho considerado mais simples para chegar à Casa Branca. Sucessos em pelo menos dois estados como, por exemplo, Arizona e Nevada, garantem a vitória apertada, assim como uma virada na Pensilvânia. Ele ainda está no páreo na Geórgia.
"Votos ilegais"
Duas horas depois, foi a vez de Trump fazer um dos mais chocantes discursos dos últimos quatro anos, elevando o tom de suas acusações ao sistema eleitoral americano. Na sala de imprensa da Casa Branca, o presidente afirmou que "votos ilegais" estavam sendo contabilizados em estados onde ele corre o risco de perder, como a Geórgia, historicamente republicana e onde a diferença para Biden é cada vez menor. O principal alvo foi o voto por correio, demonizado em sua campanha pela reeleição e apontado como decisivo em locais como a Pensilvânia.
"O voto por correio destruiu nosso sistema", afirmou. "Se você contar os votos legais, ganho facilmente. Se contar os votos ilegais, podem tentar nos roubar a eleição". Declarou ainda que houve "irregularidades perturbadoras", sem apresentar prova. A maior parte das redes de TV dos EUA interrompeu a transmissão antes do final.
Foi o que fez o canal MSNBC. "Bom, aqui estamos novamente, na posição incomum de não apenas interromper o presidente dos EUA, mas também corrigi-lo", comentou o apresentador Brian Williams. NBC News e ABC News também cortaram o sinal daquela que seria uma entrevista coletiva, mas que foi abandonada por Trump sem atender os jornalistas. Mais cedo, no Twitter, Trump havia defendido que todas as contagens fossem interrompidas, sugerindo que entraria com processos para questionar o resultado das urnas em todos os locais onde Biden venceu.
Tribunais
Mesmo antes do fechamento das urnas, a campanha do presidente já sinalizava que iria judicializar o processo eleitoral. Com os primeiros sinais de que sua permanência na Casa Branca estava ameaçada, as ações em tribunais estaduais se multiplicaram.
O principal foco é a Pensilvânia, onde os primeiros votos deram ampla vantagem ao republicano, mas, ao longo da apuração, a diferença passou a ser cada vez menor, o deixando em uma posição desfavorável diante de Biden.
Entre as medidas estavam questionamentos sobre os prazos para recebimento das cédulas por correio - um pedido derrubado pela Suprema Corte estadual, além de questões sobre o acesso de observadores republicanos nos locais de votação.
A Justiça também derrubou uma ação relacionada a votos que teriam sido postados fora do prazo na Geórgia, alegando não ver irregularidades.
Em outra frente, a campanha sinalizou que pode pedir recontagem em Wisconsin, onde Biden foi declarado vencedor mas com uma diferença inferior a um ponto percentual em relação ao republicano. O Estado possui uma certa tradição em recontagens, na última delas, em 2016, menos de 1,5 mil votos foram afetados de um total de 3 milhões.
Protestos
Diante da incerteza sobre quem será o presidente, e, no caso dos apoiadores de Trump, incitados pelos questionamentos sobre a lisura do sistema, milhares de pessoas foram às ruas em protestos por vezes violentos.
No Arizona, centenas de integrantes de uma milícia armada pró-Trump, os AZ Patriots, chegaram a invadir um prédio do governo, mas foram expulsos pouco depois. Eles ficaram diante do local, alguns portando armas pesadas, como fuzis. Uma jornalista de uma emissora local, Kim Powell, disse ter sido ameaçada por um dos manifestantes.
Em Detroit, apoiadores do presidente tentaram impedir a contagem de votos antecipados, replicando uma de suas frases publicadas ao longo do dia no Twitter: "parem a contagem".
Também houve protestos em Portland, cidade que é citada por Trump por conta de seus longevos e por vezes violentos atos contra o racismo.
A rede CBS afirma que pelo menos 11 pessoas foram presas, e com elas foram apreendidos garrafas e coquetéis molotov. Houve ainda confrontos em Denver e em Minneapolis. Por fim, na Filadélfia, centenas de pessoas se reuniram diante da Prefeitura para defender que todos os votos fossem contados - era uma reação à iniciativa da campanha de Trump para tentar interferir na apuração.
Em Nova York, atos contra a conduta presidencial se espalharam pela cidade. Segundo a Polícia local, ao menos 50 pessoas foram detidas. Em Denver, Colorado, outras quatro pessoas foram presas após entrarem em confronto com as forças de segurança. Manifestações contra Trump também foram registradas em Oakland, na Califórnia, Atlanta, na Geórgia, e Detroit, no Michigan. No dia anterior, 20 pessoas também tinham sido presas em atos anti-Trump.
Geórgia
No início da madrugada de hoje, Trump aparecia a apenas 1.902 votos à frente de Biden no estado da Geórgia. Os dois empatam em 49,4% dos votos na apuração local da eleição presidencial.
No Estado, 98% das cédulas foram apuradas, e a contagem seguiu pela madrugada. O Estado dá direito a 16 delegados no Colégio Eleitoral que elege o presidente dos EUA.