Em todo o mundo, 75% de doenças infecciosas emergentes são de origem animal, e outros 80% têm potencial para “bioterrorismo”, de acordo com a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA). Mas, elas podem ser evitadas com prevenção e foco no conceito de Saúde Única, que engloba a saúde animal, a humana e a ambiental, e tem sido peça central das discussões para o futuro da Medicina Veterinária e da Zootecnia. Ações integrativas entre as áreas já têm entrado nos protocolos e sido usadas pelo governo federal e pelos estaduais. 

De acordo com o Ministério da Saúde, a saúde única surgiu do termo “One Health”, que significa “Uma Só Saúde”, que começou a ser usado no início dos anos 2000. Entretanto, na América Latina, essa junção de conceitos vem do conhecimento tradicional de povos indígenas.

A saúde única está nas campanhas de vacinação, nas ações educativas e na alimentação do gado no pasto, por exemplo, e estará inserida na rotina do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) e dos Conselhos Regionais, que fiscalizam e realizam ações formativas e educativas com profissionais credenciados. Estão em jogo não só fatores ambientais, mas ainda econômicos e até culturais.

"[...] para nós e para a comunidade científica a saúde é integrada. E o que isso significa? É como se a gente tivesse um elo de corrente formando os elementos da saúde do planeta, que envolvem principalmente os humanos, animais e o meio ambiente. Por exemplo, a última pandemia que tivemos agora, que foi a pandemia da Covid, é um exemplo muito importante disso, porque ela veio de um local onde não haviam cuidados suficientes em relação à prevenção de doenças e controles alimentares, o que fez com que o agente causador se desenvolvesse”, indica Daniel Viana, presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Ceará (CRMV-CE). 

Daniel explica a corrente: “O animal vira alimento para a população, é inspecionado e garantido sua saúde, para que a população receba lá no supermercado e no frigorífico um alimento sem risco e de qualidade. Esse aspecto envolve especialmente a área de prevenção de saúde”, atenta. 

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Biosseguridade na Zootecnia 

Aliado ao trabalho do veterinário, vem também o zootecnista na linha de frente dos processos produtivos dos animais, seja na granja ou nas fazendas. Uma das principais atribuições do profissional para este campo é a garantia que não entrem doenças no campo, usando o conceito da biosseguridade,  conforme explica Pedro Henrique Watanabe, professor de Zootecnia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador de nutrição de suínos. 

"O zootecnista precisa estar atento no que entra no plantel [grupo de equinos e bovinos reservados para produção e reprodução]. Ele fica responsável por diminuir os focos de entrada de doenças, em um trabalho contínuo e conjunto com o veterinário", explica. 

Segundo o Minsitério da Agricultura, biosseguridade em avicultura constitui-se na adoção de um conjunto de medidas e procedimentos operacionais que visam prevenir, controlar e limitar a exposição das aves contidas em um sistema produtivo a agentes causadores de doenças.

O professor indica que uma das áreas de pesquisa da área é voltada para reduzir o uso de antibióticos nos animais, pois eles podem criar resistência ao medicamento e desenvolver doenças.

A ração que as galinhas e os outros animais produtores comem, também precisa ser regulada, de modo a mantê-los saudáveis pois uma granja saudável, significa um ovo saudável e de qualidade, por exemplo. 

"O profissional fica na gerência de granjas e, muitas vezes, trabalha como o nutricionista desses locais. Ele precisa entender a legislação e saber as proibições de medicamentos e outras substâncias que não podem entrar no local e ter contato com o animal", comenta. 

Na UFC, há uma linha de pesquisa que trabalha com a plantação de extratos vegetais que podem substituir medicamentos e balancear a dieta dos animais. "A intenção seria fortalecer o animal e alinhar as exigências nutricionais dele de casa fase. É como um cachorro, que tem ração para filhote, para crescimento, para adulto e para idoso", afirma o doutor em zootecnia. 

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Do cuidado com a granja, o gado e o pasto ao alimento na mesa do brasileiro 

O bife e o ovo que chegam às mesas das famílias brasileiras, por exemplo, são parte de uma cadeia muito mais complexa do que imaginamos. Não há somente trabalhadores da agropecuária envolvidos, mas sim uma equipe multidisciplinar de veterinários e zootecnistas que verificam a qualidade do processo de produção. "Cada ovo que você come é inspecionado por nós", garante o veterinário. 

Ao veterinário, é atribuído o papel de garantir que o rebanho que está no campo possui qualidade e controle sanitária. Já o zootecnista, garante o aumento da produtividade, os deixando saudáveis para o bate. Por sua vez, esse processo de abate também passa por uma série de processos de saúde, e tudo isso pode impedir a proliferação de doenças e evitar endemias e pandemias. 

O veterinário participa de toda a área sanitária e do processo de produção, onde existe um cuidado e um controle para não haver uma destruição ambiental. Esses dois aspectos vão fluir dentro de um processo no qual o animal é tratado, cuidado, e tem sua produtividade aumentada, garantido sua saúde e o seu bem-estar, e então ele é encaminhado para o abate. É um abate que tem controles sanitários e de bem-estar, inclusive para que não haja contaminação ambiental
Daniel Viana
Presidente do CRMV-CE

Responsabilidade ambiental 

Chegar ao fim desse ciclo com sucesso é um trabalho coletivo, e que demanda mudanças de hábitos humanos. 

O professor Gabriel Marinho, medico veterinário e responsável técnico do Complexo Veterinário da Universidade de Fortaleza, aponta ações de saúde coletiva que podem ser adotadas visando promover a Saúde Única: 

  • Campanhas de vacinação contra a raiva e outras doenças;
  • Castração de animais;
  • Monitoramento de animais selvagens, como saguis (eles podem transmitir raiva);
  • Responsabilidade ambiental.

"Hoje nós temos na universidade um projeto de captura de castração de felinos, e também lidamos com animais do campo. Nós castramos e vacinamos eles tanto para a raiva quanto para a zoonoses, o que promove um campo mais saudável e monitorado em relações às doenças que esses animais podem transmitir para seres humanos", explica o veterinário. 

Neste ano, o Brasil completou 10 anos sem casos de raiva humana transmitida por cães. O último caso foi em 2015, no Mato Grosso do Sul, na fronteira com a Bolívia.

Uma situação cotidiana e que é perigosa para essa cadeia de fatores é a alimentação de animais silvestres por transeuntes e turistas em parques. As placas que proíbem a alimentação desses animais por essas pessoas não está lá à toa: há um risco real de transmissão de zoonoses que podem ser graves e desequilibrar o meio ambiente. "Oito a cada dez casos de transmissão ocorrem por causa do sagui", alerta Gabriel.

Populares mundialmente localizadas às margens dos rios Tietê e Pinheiros, em São Paulo, as capivaras também representam risco de transmissão da febre maculosa, uma doença grave transmitida pela bactéria Rickettsia, cujos sintomas, em humanos, incluem febre alta, dor de cabeça, dores no corpo e manchas avermelhadas na pele.

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de novembro foi celebrado o Dia Nacional da Saúde Única, criado para relembrar a abordagem integrada contra ameaças ao meio ambiente e à saúde pública.

"Desde a criação, em 1983, do Programa Regional de Eliminação da Raiva, da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), os casos na América Latina caíram em 98% (de, aproximadamente, 300 registros naquele ano, para apenas 3 em 2024). No Brasil, os avanços reforçam o compromisso com a saúde única e o País já trabalha para consolidar esse resultado no cenário internacional", registra o Ministério da Saúde (MS). 

Futuro do campo pode estar na prevenção

Para a médica veterinária mestre em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Romeika Reis Lima, é preciso "insistir em mais do mesmo" e focar em uma ação chave: a prevenção. "A gente precisa mudar a forma de enxergar essa relação da sociedade e do ser humano com o ambiente e com os animais". Um dos exemplos mais citados 

Um meio ambiente saudável, com foco em coleta seletiva e controle de matéria orgânica, vai reduzir a incidência de vetores que podem deixar animais e, por consequência, humanos doentes, deve ser o objetivo, segundo a pesquisadora em veterinária. 

"Se a gente não enxergar a saúde única como um caminho de saúde populacional, a gente vai continuar errando. É por não enxergar o caminho de saúde única que a gente viveu políticas canicidas, que a gente enxerga a esporotricose [doença felina] como um caminho, por exemplo, de fazer eutanásia dos gatos o tempo inteiro. Isso ocorre porque a gente não está enxergando um meio ambiente adequado para ser controlado, para fazer um controle populacional, para ter uma educação ambiental e uma educação de seres humanos para lidar com os animais. Isso tudo precisa estar integrado", afirma. 

R$ 231 milhões
por ano foram investidos em vacinação contra a raiva entre 2023 e 2025 

A professora enfatiza também que políticas públicas devem fortalecer em áreas com o encoleiramento público, que previne no animal doenças como a leishmaniose. Essa doença é de alta gravidade em cães e pode ser transmitida para humanos após o mosquito hospedeiro picar o cachorro. 

"O cão é o principal reservatório dessa doença, e acaba fazendo esse caminho amplificador dela. Então, a medida de controle mais eficaz é a através da prevenção da picada, pois o cão é parte do seio familiar humano. Essas campanhas de encoleiramento público existentes precisam ser cada vez mais constantes", explica. 

O presidente do CRMV do Ceará, Daniel Viana, corrobora a fala de Romeika Reis e pontua que Uma Só Saúde envolve, “por exemplo, vários elementos que tem desde um processo educativo a uma ação direta”.

“Quando um estado ou um município, ou a própria nação, educa as pessoas para não jogar lixo na rua, ela está ensinando a pessoa fazendo educação ambiental para que o bueiro não fique obstruído, para que no momento de chuva não tenha doenças ali estagnadas, como, por exemplo, proliferação de roedores, que vão transmitir a leptospirose para a pessoa e para o animal. E isso vai impactar também, além do risco ambiental, nos animais e nas pessoas”, reforça.