Conheça a escola pública do Ceará com mais alunos aprovados no ensino superior em 8 anos
Três painéis de tamanhos expressivos afixados em paredes de diferentes corredores da área interna da Escola de Ensino Médio Dr. César Cals, em Fortaleza, chamam atenção de quem adentra o local estruturado em dois andares e com 1.200 alunos. Se for para expressar o orgulho que os conteúdos que eles detêm geram, de fato, os banners precisam ser grandes. Cada um deles tem o nome completo e a foto de cada aluno da escola da rede pública que conseguiu entrar na universidade nos anos de 2021, 2022 e 2023. O de 2024 está sendo providenciado, relatam no local. Ele também virá recheado de conquistas.
Em 2025, a Escola Dr. César Cals, situada no bairro Farias Brito, chegou aos 50 anos. A unidade compõe o rol das tradicionais escolas públicas de Fortaleza e, na última década, tem consolidado um diferencial: é a instituição da rede estadual com mais egressos aprovados no ensino superior, conforme contagem oficial de dados da Secretaria da Educação (Seduc).
Entre 2017 e 2024 - período o qual a Seduc garante que tem dados sistematizado sobre o assunto e pode disponibilizá-los - 1.982 estudantes que concluíram na escola foram aprovados em instituições de ensino superior, incluindo as instituições públicas (federais e estaduais) e particulares.
Um levantamento solicitado pelo Diário do Nordeste à Seduc, indica, com dados contabilizados pela gestão até junho de 2025, que, dentre as 751 escolas da rede estadual, 704 tiveram alunos aprovados em universidades nos últimos oito anos, sendo a Escola Dr. César Cals a que está no topo da lista nesse quesito. Vale destacar que essa marca se refere a número absolutos. (Confira abaixo lista das escolas)
Essa quantidade pode ser ainda maior - tanto no caso dela, como nas demais unidades - já que, no dia a dia, a própria escola segue fazendo essa contagem, tendo em vista que, alunos que não ingressaram imediatamente após o término, podem acessar a vaga em processos seguintes e, por vezes, informam à escola que atualiza os dados. Por exemplo, na contagem da própria escola já foram 1.280 alunos aprovados somente nos “pós-pandemia”, entre 2021 e 2024.
Diário do Nordeste publica em 2025 a quarta edição do projeto Terra de Sabidos, que neste ano tem como foco o “destino universidade”. O especial percorre Fortaleza e cidades do interior como Itarema, Ipueiras e Granjeiro, e conta experiências de egressos de escolas públicas do Ceará que acessaram a universidade, seja via Sistema de Seleção Unificada (Sisu) ou Programa Universidade para Todos (Prouni). As experiências apontam quão desafiantes, mas também recompensantes, têm sido as oportunidades que abrem portas e alteram a vida dos jovens e de quem os cerca.
Localizada na Av. Domingos Olímpio, a Escola Dr. César Cals é uma das unidades tradicionais em Fortaleza e é reconhecida por bons resultados. A instituição recebe alunos de diversos bairros de Fortaleza, e também da Região Metropolitana, de cidades como Aquiraz, Eusébio, Horizonte e Caucaia.
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A escola ainda funciona no modelo regular, de 7h30 às 12h e 13h às 18h30. São 400 alunos no 3º ano. Nos próximos anos, - tendo em vista a promessa do Governo do Estado de universalização do modelo de tempo integral até 2026 - deve passar por uma mudança no formato ampliando, dentre outros, o tempo de permanência dos estudantes na escola.
Valorização do acesso e das oportunidades
Para os egressos Amanda Vitória Feitosa dos Santos, João Pedro Rodrigues Uchôa e Gabriel Viana, todos com 18 anos, os números que sustentam a boa marca da escola, no dia a dia, é traduzido em alterações profundas das próprias trajetórias.
Os três concluíram o ensino médio na Escola Dr. César Cals em 2024 e entraram no ensino superior em 2025. Ainda aguardam para ver os rostos e nomes em um banner imenso no corredor da escola, já que o painel - com o maior número de aprovados dos últimos anos - ainda está sendo providenciado.
Eles foram aprovados em universidades públicas que, assim como centenas de jovens brasileiros moradores de periferia, viram o sonho distante pouco a pouco ganhar materialidade. A cada divulgação de resultado entre o final de 2024 e início de 2025, a aspiração se aproximava.
Hoje, Vitória se realiza cotidianamente a cada ingresso em sala de aula, participação em grupo de estudos, monitorias, leituras, troca com professores e colegas, nos processos do novo mundo, agora, acadêmico, no qual, por direito, e por desempenho, eles têm lugar.
Rotina renovada, com muita celebração e desafios. No caso de Amanda, moradora do Bairro Ellery, cuja principal renda familiar é o Bolsa Família, pago à mãe, que trabalhava como camareira até ser acometida por um câncer de mama na pandemia de Covid-19 e após o tratamento não ter conseguido se realocar no mercado de trabalho, a oportunidade chegou via conquista da vaga na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A estudante passou no curso tanto na UFC como na Universidade Estadual do Ceará (Uece) e também em uma instituição particular com bolsa de 100% do Prouni. Hoje, tem “aproveitado tudo o que pode na universidade” em uma experiência que ela classifica como “incrível”, apesar das dificuldades, sobretudo, em um curso ainda elitizado, avalia.
Eu me maravilho com tudo o que tem. Com os projetos, com a extensão. Eu como no Restaurante Universitário de graça, pois sou de baixa renda. Faço Casa de Cultura (curso de linguas na UFC). Tô aproveitando tudo o que eu posso. E participo de um cursinho que é lá da Faculdade, o Paulo Freire. Eu já fui aluna do cursinho, e hoje, eu sou voluntária na administração do cursinho. Ajudo a construir algo que me ajudou.
Já na trajetória de Gabriel Viana, que é do bairro Carlito Pamplona e cursa Letras Português-Francês na Uece, o ingresso na universidade significa um pioneirismo na família. É o primeiro do núcleo familiar a alcançar o feito e relata o quanto a experiência na Escola o ajudou a ter clareza sobre a formação que desejava e o que precisava fazer para alcançá-la.
Na Escola, ele atuou como monitor de redação quando era aluno, e segue ainda hoje. No atual momento, recebe uma bolsa “simbólica” de R$ 200,00 para desenvolver o trabalho que auxilia na produção e correção de textos dos estudantes.
Outro percurso completamente alterado pelo acesso à faculdade é o do jovem João Pedro Rodrigues Uchôa, morador do Pirambu. Em 2025, ele iniciou a faculdade de Licenciatura em Matemática na UFC, depois de ter sido aprovado em outros 3 processos seletivos - Uece, Uva e em faculdade particular pelo Prouni - para o mesmo curso, que é também, conforme ressaltado por ele, é “o dos sonhos”.
A realidade na minha área você está lá para tentar terminar a escola e arranjar um emprego. Eu tinha sonhos, mas tudo isso era muito distante. Eu sempre vi a escola como uma oportunidade. Desde criança. Só que quando eu era criança, eu não sabia que precisava fazer faculdade para ensinar. Eu admirava muito. No primeiro ano do ensino médio, eu tive uma disciplina eletiva de matemática, e a professora ensinava e todo mundo aprendia. Pensei que queria ser igual a ela. E eu senti muita vontade de ser professor de matemática porque eu sempre me encantei.
João Pedro também ressalta que o desejo de “mudar de vida, veio lá do ensino fundamental”, mas na sua realidade, fazer faculdade “não era uma opção”. Isso se reflete inclusive na trajetória familiar, na qual as demandas por concluir o ensino médio e seguir imediatamente rumo a busca por trabalho, impossibilitou futuros.
“Na minha família, já era só trabalho. Eles faziam de tudo para eu ter o futuro que eles nunca tiveram. Me incentivavam. Meu pai, minha mãe, minha vó, foi uma comemoração só (quando foi aprovado). Porque antes não tinha opção. Aí, quando a gente chega e conquista um lugar que eles poderiam conquistar, mas não conseguiram, é muito bom”.
Na universidade, a experiência, segundo ele, “tem sido muito puxada, mas também muito legal, eu to vendo exatamente meu sonho: o porquê das fórmulas de matemática, até a filosofia da matemática. Tudo de forma muito aprofundada”.
As questões da permanência
No Ensino Médio, os três estudantes de baixa renda chegaram a receber os valores do Pé- de-Meia, programa do Governo Federal que paga “uma bolsa” mensal aos alunos pobres desta etapa de ensino para incentivar a permanência dos mesmos. Na universidade, João Pedro segue recebendo, mas agora o Pé-de-Meia Licenciatura, bolsa que também é paga para tentar incentivar a permanência de quem faz a opção pela carreira da docência.
Nas universidades, a rotina é complexa, ponderam eles, tanto pelo nível da formação, como por questões práticas e até financeiras. Além disso, embora celebrem o ingresso, e saibam que na antiga escola essa é uma realidade muito generalizada, já que o índice de aprovação no Sisu e Prouni são elevados, eles ressaltam que no espaço universitário a presença de egressos da rede pública ainda encontra uma série de dificuldades.
“Na faculdade tem gente que já teve muito mais acesso a conhecimentos do que eu. E eu me junto com o pessoal que era da escola pública e vai se integrando. A gente se junta e dar aula um pro outro, faz aulas para nós mesmos, resolver exercícios. Se a gente não se juntar, não tem como”, destaca João Pedro.
Em todos os casos, os estudantes relatam que fazem planos de seguirem em formação, conquistarem o diploma, e até prosseguirem nos estudos após a graduação. Os três se visualizam exercendo as profissões, ainda que muitas transformações ainda possam ocorrer no percurso acadêmico, incidindo inclusive nas decisões que tomarão mais à frente.
Há também consenso entre eles do quanto a capacidade de se inspirar e ser inspirado interfere positivamente como fator de estímulo e até de impulso real.
Em todos os casos, os três, sempre que acionados ou mesmo proativamente, podem, eles retornam à escola para formações e momentos pedagógicos com os novos alunos. Uma espécie de sentimento de “devolutiva e responsabilidade” relatam ao Diário do Nordeste, como um compromisso para que novos egressos da rede pública também vivenciem as boas chances que eles estão em pleno usufruto.
"Os alunos do terceiro ano de agora vêm falar comigo, pedem orientação. Como a gente se inspirou na geração anterior, a gente também serve de inspiração para quem está agora. Eu vi muitos amigos meus que entraram (na escola) entendendo menos de universidade do que eu. Alunos da escola pública que entraram (na escola) que não vêm a faculdade como opção, porque a opção deles é terminar a escola e ir trabalhar. E isso pode mudar e nós podemos ajudar", reforça Amanda Vitória.
O que é feito para preparar?
Na Escola, no interior da unidade, em cada painel há o número destacado de aprovações - entre 2021 e 2023 - e as instituições de ingresso: Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Estadual do Ceará (Uece) , Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e aqueles que entraram em instituições particulares via Programa Universidade Para Todos (Prouni) do Governo Federal.
São centenas de vagas contabilizadas, um número incalculável de obstáculos superados e um outro tanto de mudanças geradas. O coordenador do pré-vestibular da Escola César Cals, Geh Rubens, explica que um antigo diretor, Eliseu Paiva - que faleceu em decorrência da Covid 19 na pandemia -, tinha o sonho de garantir o amplo acesso dos estudantes à universidade e isso, nos últimos anos, intensificou os trabalhos que hoje se consolidam em resultados.
“Há cinco anos, temos focado muito na aprovação dos estudantes na universidade. Em 2022, tivemos mais de 100 alunos aprovados e foi uma grande e grata surpresa. Nós estávamos saindo da pandemia e tivemos esse resultado. E vimos que era possível, e esse número foi crescendo. Veio dessa vontade de dar continuidade a este sonho e vontade do Eliseu”, detalha.
Ele explica que para a escola alcance esse cenário positivo no qual a aprovação tem sido em “larga escala” há duas dimensões que se articulam e são trabalhadas de forma paralela:
- Acompanhamento do estudante: é o pilar da estratégia para aprovação. Essa iniciativa, segundo o coordenador, é considerada ao longo dos três anos do Ensino Médio e consiste em entender o perfil dos alunos, monitorar como ele avança ao longo do tempo, não sendo considerado somente notas e resultados, mas outros aspectos como maiores dificuldades, os desejos, as condições, e o alinhamento dos eixos estruturantes da formação na unidade a essa demanda.
- Estratégias: é a forma prática de aplicação do planejamento como a realização de simulados, aulões, reforço no contraturno, tutoria, célula de estudo, laboratório de redação e acompanhamento da saúde mental.
A escola também tem um elevado número de alunos. para se ter dimensão, são 12 turmas só de 3º ano. O que, por certo, faz com que ela naturalmente tenha mais gente ingressando no ensino superior, pela própria quantidade, do que escolas menores. Mas, na rede estadual, outras escolas, inclusive de mesmo perfil na Capital, têm quantidade semelhante de alunos.
Os alunos têm 6 horas aulas por dia e precisam comparecer à unidade de segunda-feira a sábado, em geral, todos os alunos fazem o Enem, como treineiros no 1º e 2º ano, e como candidatos no 3º ano. Outro destaque é que também tem uma preparação intensa para o vestibular “tradicional” da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Na escola César Cals a gente tem muito incentivo dos professores, mas também dos próprios alunos. Quando teve greve em 2024, os alunos continuaram dando aulas. Ajudando os demais. É uma escola onde as pessoas são muito unidas
Outro ponto, destaca o coordenador, é que mapeamento feitos dentro da própria escola indicam que embora sejam de baixa renda, isso não impede que o comportamento das famílias seja de estímulo à entrada da universidade.
“Isso foi medido em uma pesquisa científica da UFC na escola. Foi mapeada a questão socioeconômica dos nossos estudantes com outras escolas. A diferença é que as famílias (dos alunos do César Cals) querem apostar nesse estudante. Eles às vezes não têm renda. Mas procurar a nossa escola é um investimento, um investimento comportamental”.
Geh também enfatiza que embora a grande maioria dos alunos que ingressam na escola já tenha essa vontade de prosseguir na formação no ensino superior, um dos diferenciais, é que aqueles que não têm, “acabam construindo” envolvidos pela cultura da instituição. “Levamos muito a sério esse compromisso social. Nossa meta é que eles saiam da escola prontos para realizar seu sonho. Não saiam da escola sem um futuro”.