Preconceito contra mulheres de grupos sociais minorizados afeta saúde mental e amplia sofrimentos
Ser mulher com deficiência, negra, bissexual, lésbica, trans, indígena, dentre outras identidades, é, na sociedade brasileira, pertencer a grupos historicamente excluídos e inferiorizados. E isso tem efeitos que se manifestam também na saúde. Pesquisas científicas têm estudado essa correlação.
Mulheres enquadradas nessas identidades, além de suscetíveis ao adoecimento mental como todos os demais grupos sociais, têm o risco agravado, não por serem quem são, mas por estarem na mira de comportamentos discriminatórios, violentos e estigmatizantes cujos efeitos afetam diretamente a autoestima e o bem-estar psicológico de quem é o alvo.
No dia a dia, essas situações se manifestam e, muitas vezes, “tomar consciência” sobre elas não é um processo fácil. Na vida da cearense Nayara Braz, 22 anos, que relata ter desde a infância sinais de ansiedade e pânico, diversos entendimentos sobre os estressores mentais aos quais está exposta por ser uma mulher negra vem sendo formulados, nos últimos anos, em processos terapêuticos.
Ela, que é formada em Ciências Sociais e hoje atua como bolsista em um equipamento cultural público, explica que quando criança, embora, diversas vezes, tenha tido crises de ansiedade e, em paralelo, tenha recebido tratamento diferenciado em decorrência da sua cor/raça, com depreciação dessa identidade, não compreendia exatamente os significados desses processos.
Na quarta edição do especial jornalístico "Nenhuma a Menos", uma série de 10 reportagens — que integra o "Projeto Elas" —, o Diário do Nordeste discute atitudes, costumes, tradições, aspectos biológicos e comportamentos que impactam na saúde mental de meninas e mulheres, visando debater formas de buscar seu bem-estar, entendendo que essa é uma demanda coletiva, de toda a sociedade, e que atravessa questões que vão além de doenças, pois ultrapassam temas como saúde e envolvem educação, cultura, política e economia.
Quando eu entrei na faculdade, quando eu vi que existia um fórum de pessoas negras e aquelas pessoas me reconheceram como pessoa negra. E aí eu pude de fato entender que era uma pessoa negra. Porque eu nunca tinha pensado sobre raça, eu nunca tinha pensado que as pessoas tinham uma cor. Eu nunca tinha parado para pensar em cor. Eu não gostava de pensar sobre a minha cor, eu não gostava de olhar no espelho e pensar sobre a minha cor.
Termos como “neguinha”, conta Nayara, sempre fizeram parte das referências atribuídas a ela quando criança. E, muitas vezes, associados a comportamentos negativos. “Então, quando eu escutava alguma coisa sobre cor, era ruim. Eu não queria pensar sobre isso. Só que eu comecei a pensar tipo 'talvez eu seja mesmo neguinha'. Só que eu não queria ser 'neguinha', porque eu atrelava isso a uma coisa ruim”.
Na faculdade, em 2020, acrescenta, ao ver um movimento de jovens universitários organizados discutindo o assunto, “começou a ler e voltar ao passado, identificar as cenas de racismo que viveu”.
Essas descobertas foram acompanhadas da identificação da necessidade de voltar a ter cuidados mais efetivos com a própria saúde mental, visto que outras experiências de vida, já a tinham feito anteriormente buscar a terapia como uma forma de ajuda e tratamento.
“Decidi que eu precisava entrar em uma terapia racializada. Porque eu não sabia o que, na minha trajetória, tinha sido atravessado por raça. Então, eu precisava de uma ajuda terapêutica para isso. E como eu já tinha experiência de a terapia ter me ajudado muito no relacionamento abusivo, eu sabia que ia me ajudar muito também a me perceber como uma pessoa negra”, aponta.
Acesso a tratamento e cuidados
Nayara também menciona um ponto que, nos últimos anos, já tem recebido mais atenção de pesquisadores e gestores da saúde, mas ainda é um gargalo: o acesso a tratamentos mentais por parte da população minorizada, como a população LGBTQIAPN+, mulheres, pessoas negras, pessoas com deficiência e outros grupos étnicos/raciais.
Ter renda e tempo para acessar tratamentos de saúde ainda é um privilégio, destaca ela. Outro aspecto da busca ajuda, aponta, é o desconhecimento e a ignorância de parte da população que ainda tem uma série de barreiras para abordar o sofrimento mental.
É muito importante falar que terapia é cara. E para muitas pessoas, terapia é luxo. Então, não tem como a gente falar de terapia sem falar de raça e classe, porque, para chegar nisso, você precisa ter uma condição financeira e, na maioria das vezes, que não têm condições financeiras são as pessoas negras.
Ela reitera que cresceu “tendo crise de ansiedade, chorando e escutando que era frescura”. Mas, reforça que não há sequer como “culpar” quem a rodeava visto que a própria falta de acesso à informação, a serviços e atendimentos gera, segundo ela, essas percepções equivocadas e negligência nos cuidados mentais.
Cresci num lar periférico, com o pessoal da geração anterior. Eu sou a primeira geração que as pessoas escutam falar em terapias. Na geração da minha mãe, ela não faz terapia e ninguém próximo a ela fez. As pessoas não falavam sobre. O que as pessoas sabiam era da existência do CAPS e na cabeça delas só ia cuidar de quem era louco. É algo distante e deturpado.
Outro destaque de Nayara é que o fato de desde 2022 fazer uma terapia racializada (abordagem terapêutica que considera o pertencimento e os demarcadores raciais na construção das subjetividades) não significa que nesse acompanhamento todos os encontros com a psicóloga tenham como foco o assunto raça.
Segundo ela, o auxílio da profissional nesse processo a faz refletir sobre como o tema raça atravessa várias dimensões da sua vida, incluindo conflitos, tensões, sentimentos e emoções.
Saúde mental e “minorias”
Na literatura científica, na década de 1950, o psiquiatra e filósofo francês, Frantz Fanon, já formulava estudos que, dentre outros pontos, abordam a conexão entre racismo e sofrimento mental. Isso a partir de formulações sobre como a desumanização a qual a população negra foi submetida em processos opressores de colonização teve efeitos sobre a constituição da identidade dos colonizados, produzindo traumas e gerando doenças mentais.
Já na década de 1990, a condição de adoecimento mental vivenciada por pessoas que pertencem a grupos minoritários e sofrem constante opressão é denominada de teoria do “estresse de minorias”.
A conceituação desenvolvida pelo psicólogo social e psiquiatra norte-americano Ilan Meyer, nos anos 1990, argumenta que pessoas enquadradas em determinados grupos vivenciam estressores específicos adicionais ao cotidiano por serem vítimas de determinadas opressões relacionadas às identidades.
O estudo inicial que produziu o conceito monitorou situações vivenciadas por homossexuais nos Estados Unidos, mas a formulação, nas últimas décadas, tem englobado grupos minoritários de modo geral, como a comunidade LGBTQIAPN+, os negros, pessoas com deficiência e demais indivíduos que vivenciam recorrentes situações de preconceito, racismo e discriminação.
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A doutora em Psicologia Social, pesquisadora e docente no programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), Kaline Lima, explica que “é consistente na literatura que preconceito é um fator de risco para a saúde mental e isso mostra a necessidade de um cuidado que vá além do tratamento individual, focando também em mudanças estruturais e sociais. Isso acontece porque os grupos minorizados socialmente enfrentam cotidianamente estresses adicionais e barreiras institucionais e estruturais que promovem as desigualdades sociais”.
Ela, que também coordena o Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (LEPES), detalha que a identidade social se refere ao “fazer parte de grupo social, que em alguns casos, pode ser um grupo social minorizado ou desvalorizado socialmente”.
E essa identidade, reforça, “é um componente importante para formação do autoconceito das pessoas. Se sentir pertencente a um grupo, sentir orgulho de fazer parte, e compartilhar experiências em comum com semelhantes pode levar a uma maior autoestima positiva”.
Os estressores enfrentados ao longo do tempo por populações minorizadas, aponta a pesquisadora, “se acumulam ao longo do tempo, gerando um desgaste emocional e psicológico que aumenta o risco de transtornos mentais como ansiedade, depressão e estresse pós-traumático”.
O chamado “estresse de minoria”, acrescenta ela, envolve não apenas a situações específicas de discriminação, mas a internalização de preconceitos de modo que as pessoas se colocam contra si mesmas e a sensação de estar constantemente em alerta, de modo a tentar se antecipar de alguma atitude preconceituosa que possa acontecer seja no trabalho, na rua, em serviços de saúde, ou até dentro de casa.
Ela também reforça que outra dimensão desse problema é que os preconceitos sofridos por esses grupos acabam se perpetuando socialmente pois há uma naturalização e invisibilização das experiências de sofrimento. “Em muitas situações, o sofrimento de pessoas de minorias é desvalorizado ou deslegitimado, sendo considerado exagero ou fragilidade. Isso contribui para uma negligência no atendimento adequado”.
O SUS já olha para essas questões?
A pesquisa também avalia que embora o Sistema Único de Saúde (SUS) tenha nas diretrizes a garantia de um atendimento universal e igualitário, assim como programas voltados para a saúde mental de populações vulneráveis como a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), “ainda há um longo caminho para atenção aos aspectos interseccionais que envolvem o pertencimento de diferentes grupos sociais”.
Uma das razões, explica, é que “há uma série de lacunas na formação dos profissionais de saúde mental no que se refere às especificidades das minorias sociais”.
Alguns estudos, inclusive, mostram que profissionais de saúde, às vezes, reproduzem preconceitos e estigmas que estão presentes na sociedade, o que pode levar à revitimização das minorias e à desvalorização de seus sofrimentos, causando traumas e evitação em procurar novamente por ajuda.
Logo, um dos pontos de melhoria é a ampliação da formação dos profissionais de saúde, segundo ela, com a inclusão de temas como racismo, LGBTfobia, sexismo, machismo e outras formas de discriminação.
A pesquisadora também destaca que tendo em vista as características desses processos, além do acolhimento individual, “é importante que os profissionais e instituições de saúde mental promovam intervenções estruturais e educativas que visem a diminuição do preconceito nos serviços de saúde, por meio de ações afirmativas, como letramento racial, de gênero, respeito à diversidade, bem como a implementação de políticas que garantam o acesso igualitário a todos os grupos aos serviços”.
Construir uma sociedade mais saudável
A discriminação e o preconceito embora, infelizmente, sejam condutas marcantes da sociedade brasileira, muitas vezes não são admitidos e isso, analisa a pesquisadora Kaline Lima, “impede que a sociedade construa coletivamente ações para resolução desse problema”.
As pessoas não admitem que são preconceituosas por uma série de motivos que abrangem aspectos culturais e sociais. Culturalmente, nosso país foi difundido como uma democracia racial, em que pessoas de várias identidades étnico-raciais conviviam em harmonia, o que é uma ideia falsa. Do ponto de vista social, com base em pesquisas da psicologia, a maioria das pessoas acha vergonhoso ser apontado como preconceituoso. Mas, na realidade, somos preconceituosos em alguma medida, porque vivemos em uma sociedade desigual que estrutura grupos dominantes que ditam as normas sociais e que alguns grupos devem ser inferiorizados.
Nesse sentido, para agir de modo preventivo, como é possível atuar para evitar que as populações minorizadas adoeçam mentalmente por questões relacionadas às próprias identidades?
Para a pesquisadora, é essencial desenvolver abordagens multidimensionais a partir de iniciativas individuais para desconstruir preconceitos e de reivindicações de mudanças estruturais da sociedade. Ela acrescenta: “o caminho se daria pela educação, políticas públicas, fortalecimento identitário desses grupos, por meio de intervenções psicológicas voltadas para a promoção da equidade e do respeito à diversidade”.
No campo educativo, ela aponta que a educação para diversidade deve ser curricularizada nas instituições de ensino. Não só nas escolas mas também nas universidades. “Esse processo é necessário para trazer mais informação, letramento racial e de gênero e valorizar as múltiplas identidades existentes”, aponta.
Outro caminho, do ponto de vista estrutural, é que a “sociedade precisa perceber as discrepâncias de acesso a bens, serviços, cargos e status de alguns grupos sobre os outros e exigir que as instituições promovam políticas de combate às discriminações, trazendo mais equiparação e representatividade em todas as esferas”.
No Brasil está em andamento um estudo internacional intitulado “Pesquisa Smile” que investiga a saúde mental de pessoas identificadas como "minorias sexuais e/ou de gênero”. Essa pesquisa é liderada pela Universidade Duke, dos Estados Unidos, e no território nacional é realizada em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
Um projeto piloto já foi realizado em 2017 em seis países (Brasil, Quênia, Vietnã, Índia, Camboja e El Salvador) e a nova etapa tem sido aprofundada no Brasil, Quênia e Vietnã. A professora de Psicologia do IFRJ, Jaqueline Gomes de Jesus, coordena a pesquisa.
No dia a dia, quando abordamos os cuidados em saúde e especificamente em saúde mental, muitas vezes, as identidades das pessoas que precisam de cuidado parecem ser encaradas como homogêneas.
Há elementos relacionados aos cuidados com a saúde mental que cabe para qualquer pessoa, como na saúde em geral. Mas quando vemos as pessoas na perspectiva de saúde integral é importante entender que há particulares.
Essas particulares, acrescenta, “orientam as questões ligadas à saúde específica de grupos e, em geral, tem relação com determinantes sociais que esse grupos vivem”. Esse público, diz ela, pode ser mulheres, pessoas negras, indígenas, homens, pessoas LGBTQIAPN+. “Há impactos da discriminação na saúde integral e, portanto, na saúde mental dos indivíduos”, completa.
Outra dimensão é que a discriminação e o preconceito embora sejam condutas marcantes da sociedade brasileira, muitas vezes não são admitidos, o que tem o potencial de gerar nas pessoas em sofrimento mental ainda mais camadas de dores e enfrentamentos.
Nesse contexto, Jaqueline destaca que “quando os profissionais de saúde não reconhecem que o preconceito e a discriminação impactam a saúde das pessoas, eles reiteram violências mesmo quando não querem, mesmo quando as pessoas necessariamente não são lgbtfóbicas. Então, é importante haver essa informação no entendimento de que não se está falando de questões particulares de indivíduos LGBT, você está falando de questões coletivas de uma população, uma população que é discriminada”.
Em cenários negativos e impactantes Jaqueline pondera que um dos primeiros cuidados são as políticas públicas e informação. Mas não uma informação direcionada apenas ao indivíduo. De acordo com ela, é preciso apostar em estratégias que alcancem as escolas, os profissionais da saúde, as famílias, as associações comunitárias.
“É preciso falar para as famílias que quando elas reproduzem lgbtfobia, que quando elas discriminam seus parentes, vizinhos, colegas, pessoas próximas, amigos, em função do preconceito contra a sua orientação sexual, sua identidade de gênero, elas levam essas essas pessoas à morte, levam ao adoecimento, levam ao isolamento social, ao isolamento físico. Elas também são responsáveis, então precisamos de educação”, reforça.