Não há espaço para fantasia quando a realidade árdua se impõe. Em Fortaleza, as ruas questionam o que é dignidade para muita gente e evidenciam o cansaço de quem luta por sobrevivência. Mas, como um alívio para a dificuldade cotidiana, surgem figuras que doam o tempo para o bem coletivo. São presentes.
Nesta véspera de Natal, o Diário do Nordeste te convida para conhecer as histórias de papais-noéis da vida real. São homens e mulheres sensíveis às carências da capital cearense e com força para contribuir com a mudança não só na festividade, mas ao longo do ano.
A data celebra o nascimento de Jesus – exemplo de compaixão e amor ao próximo – e estampa a figura do Papai Noel que é inspirada em São Nicolau, nascido numa cidade marítima da Turquia Meridional, no século III depois de Cristo, conforme o Vaticano. De origem rica, resolveu dedicar todo o dinheiro aos enfermos e pobres após a morte dos pais.
Cris e a Casinha do Bem
Rua Carneiro da Cunha, nº 159, bairro Jacarecanga. Esse é o endereço da “Casinha do Bem”, uma ONG onde são distribuídas cestas básicas e quentinhas há oito anos. Também são feitas ações para prevenção de doenças, atividades para crianças e formações para mulheres chefes de família em busca de renda.
A construção desse lugar passa pelas mãos da assistente social Cris Braga, de 51 anos, uma das fundadoras do projeto. Ao ser perguntada sobre o valor do esforço para a transformação social, a resposta é firme.
“Eu não acho que seja generosidade, mas sim uma responsabilidade por aquilo que nos foi dado. Temos que encontrar palavras para tomar essa função porque o outro não teve a oportunidade que eu tive. Eu enxergo como fazer minha parte”, frisa.
Cris é a 13ª filha de uma mulher que saiu de Uruburetama, no Litoral Oeste, rumo à Capital com a família. “A gente teve uma infância de até passar fome na periferia de Fortaleza, numa comunidade do Quintino Cunha chamada Rua da Lama”, lembra.
Naquela época, a mãe saía para fazer faxinas e o lanche da casa era farinha com açúcar. Quando o pai conseguiu um emprego num comércio, recebia carnes e outros pedaços que não eram aproveitados. Apesar do pouco, ainda conseguia dividir com a comunidade.
“Aquilo foi me motivando ao trabalho social, lembro da minha mãe fazendo saquinhos para distribuir. Eu não entendia direito, mas ia ajudando”, recorda das cenas no início da adolescência.
Outras referências de ações sociais foram aprendidas quando Cris entrou para o grupo Shalom da Igreja Católica e um tempo depois no Espiritismo. Depois de casada, conseguiu entrar na faculdade. A escolha do curso era óbvia: Assistência Social.
“Passei muito tempo trabalhando com a Casa da Sopa no centro da cidade, fomos um dos primeiros grupos, em 1994, a fazer a distribuição na rua. Naquele tempo tinha bem menos pessoas na rua, na Praça do Ferreira quase não tinha, era mais na Praça Coração de Jesus”, conta.
Esse contexto ficou marcado muito em mim, a gente não tinha perspectiva de nada, às vezes a gente não ia para aula por causa de brigas relacionadas à droga
Há oito anos, uma pessoa em situação de rua apareceu na vizinhança com um machucado grave na perna. Com apoio de outros moradores, conseguiu tratamento e o aluguel de uma casa para o homem.
Naquele movimento de voluntários, algumas pessoas pediam cesta básica, óculos de grau e outras necessidades. “Alguém disse ‘aqui é uma casinha do bem’ e desde esse dia a gente não conseguiu mais fechar”, destaca sobre o lugar que se tornou um projeto após a saída do primeiro beneficiado.
Na pandemia, Cris observava que as pessoas “não estavam morrendo de Covid, estavam morrendo de fome” e conseguiu distribuir até 800 quentinhas por semana. Além do coronavírus, passou a trabalhar com a prevenção de Hepatite, HIV e Tuberculose.
“Nunca vou colocar uma bandeira religiosa e nem partido político porque quero que todos se sintam bem de participar. Eu não tenho medo de andar na rua porque todos me conhecem, ninguém mexe no projeto porque todos respeitam”, acrescenta.
Na segunda-feira (23), quem passou pela Casinha do Bem viu Cris preparando refeições natalinas para saciar a fome e a necessidade de cuidado. Caso você a encontre por lá, além do espírito bondoso, tenha a certeza de uma boa conversa com a simpatia típica do cearense.
Victor e o controle da dor
Há quase um ano, pessoas com doenças incuráveis ou em estado delicado de saúde recebem cuidados por meio da iniciativa Fortaleza Compassiva, na comunidade do Campo do América. São entre oito e 11 voluntários médicos, enfermeiros, nutricionistas e psicólogos, por exemplo – a maioria com atuação prática nos cuidados paliativos.
“Estamos na fase de aprofundar esse laço com a comunidade e criar uma rede de voluntários mais robusta. Vamos fazer cursos sobre como dar banhos em pacientes acamados, fazer higiene oral e outras coisas simples, mas que têm demanda represada”, como explica o geriatra e paliativista Victor Macêdo, de 44 anos.
Contribuir com o bem-estar de desconhecidos faz parte da trajetória de Victor antes mesmo da faculdade de Medicina, quando passou a integrar projetos de grupos kardecistas no Jangurussu, aos 16 anos.
Desde então, sempre encontrou uma causa para engajar. “Eu fui colocando em prática esse lado do social de uma maneira natural, como uma busca que faz parte do meio jeito de enxergar o mundo”, reflete.
Na comunidade, o apoio da voluntária local Lizete é o primeiro passo para o acompanhamento por meio de uma triagem e avaliação de forma mensal. De sete a 10 famílias foram atendidas ao longo de 2024.
“Elas passam a ser acompanhadas a partir de um plano traçado que envolve esse acompanhamento multidisciplinar, mas sem a ideia de substituir a rede de saúde. A equipe entra como um suporte a mais”, reflete sobre as responsabilidades de assistência.
Os voluntários fazem o manejo de sintomas e o controle da dor em pacientes oncológicos constantemente. Em geral, também atendem pacientes vindos do Interior e cuidam de pessoas que conseguem recuperar a mobilidade após os cuidados.
“A gratidão das pessoas engrandece quem trabalha com o voluntariado. Tivemos um relato de uma das pacientes que ela tinha a possibilidade de se mudar, mas disse ‘aqui eu me sinto cuidada’”, exemplifica.
É se colocar no lugar do outro através da empatia, mas ir além: ir para a ação. Se mover para buscar aliviar o sofrimento do outro da melhor maneira e com os melhores recursos. Se a gente não consegue, vamos atrás de quem consegue
Mona Lisa e as páginas de inclusão
Os Titãs cantam algo que é o propósito da iniciativa Periferia Que Lê, criada em 2019 por um escritor local, como uma estratégia de facilitar o acesso aos livros e incentivar a produção literária no Grande Bom Jardim.
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte
Mais de 100 pessoas são impactadas por mês com as atividades em parceria com o projeto Quintal Cultural da Granja Lisboa, como oficinas literárias sobre cordel, HQ, fanzine e outros momentos formativos e criativos para crianças e adolescentes.
Apenas quatro voluntários se organizam para manter a iniciativa em movimento, mas os resultados sustentam o trabalho.
“A gente faz muitas coisas com poucas pessoas por acreditar na transformação social do nosso território, mudanças por um trabalho de formiguinha. Quando alguém tem acesso à leitura, pelo próprio processo de espelhamento de ver pessoas no território como escritores, se enxerga nesse lugar também”, entende a antropóloga e doutoranda Mona Lisa Silva, de 33 anos.
Entre rodas de conversa e contação de histórias, os pequenos ampliam as possibilidades de existência. “A gente pensa os nossos territórios de outra forma, não de perceber o espaço como violento, mas que é cotidianamente violentado pelo próprio Estado que não chega”, avalia.
Mona Lisa reflete que os coletivos produzem transformação social nas periferias. “A gente não só pensa em políticas públicas, mas também enquanto sujeitos culturais e políticos que pensam essas modificações que agitam o território já que a gente não tem tantos espaços de cultura e lazer”, completa.
"Cresci nesse território estigmatizado, mas cheio de incidência política. Fui uma das primeiras pessoas que participou do Jovens Agentes de Paz, e a minha ligação como ativista negra está sempre associada ao território do Grande Bom Jardim", destaca sobre a trajetória.
Os efeitos disso ganham eco nas famílias atendidas e não podem ser dimensionados. "Se a gente consegue trazer mais uma criança dentro da periferia, a gente está mudando a vida de uma família, é uma criança a menos na mira da bala, é uma criança a mais na escola, onde a marginalização não vai ser a única experiência que ela conhece”, aponta Mona Lisa.