Sete penitenciárias interditadas para receber novos presos, por conta da superlotação, falta de oportunidades para educação e trabalho, além de problemas estruturais e denúncias de torturas. Esses são alguns desafios do Sistema Penitenciário cearense, discutidos na elaboração do plano estadual ‘Pena Justa’, pelo Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), pela Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará (SAP) e por outras instituições. O objetivo do programa é acabar com as violações dos direitos ocorridas nas unidades penitenciárias.

O 'Pena Justa' foi criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), que repassaram às Unidades da Federação a obrigação de elaborar um plano com análise e soluções para os problemas do Sistema Penitenciário, até agosto deste ano.  

Os trabalhos começaram ainda no último mês de fevereiro, no Ceará, sob a responsabilidade do Comitê Estadual de Políticas Penais (CEPP), coordenado pelo TJCE e pela SAP. O Comitê realizou uma audiência pública, no último dia 4 de abril, para ouvir outros órgãos públicos e a sociedade civil sobre a situação e os desafios do Sistema Penitenciário cearense.

Isso aqui não é uma benesse para os presos. Nós estamos querendo dar dignidade. Eles estão privados de liberdade, mas não perderam a dignidade. Eles não têm que viver de maneira degradante, dentro de um presídio."
Henrique Jorge Holanda Silveira
Desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará

O supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Execução de Medidas Socioeducativas (GMF), do Tribunal de Justiça do Ceará, desembargador Henrique Jorge Holanda Silveira, explica ao Diário do Nordeste que o Plano Pena Justa "visa minorar o Estado de Coisa Inconstitucional que tem nos presídios, humanizar, tentar ressocializar esse povo (preso), para, quando eles saírem (do Sistema Penitenciário), não regressarem ao presídio". 

O secretário da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará, Mauro Albuquerque, espera um aumento de investimentos do Governo Federal no sistema penitenciário em todo o Brasil: "a Corte maior do nosso país (STF) resolveu olhar para dentro do Sistema Prisional. O que falta dentro do Sistema Prisional gera em questão de recursos". 

Isso aqui é uma cidade, eu tenho aqui cerca de 23.500 presos. Sabe o que isso representa, se fosse um município? É maior do que 120 municípios do Estado do Ceará. Sendo obrigação nossa, toda a assistência da alimentação, da saúde, e a gente faz isso sozinho, só o Estado. Então, se todos os ministérios, toda a estrutura Federal ajudar, cada um na sua área, fica muito mais fácil da gente resolver esse problema", projeta o secretário. 

Foto do desembargador Henrique Jorge Holanda Silveira, do Tribunal de Justiça do Ceará
Legenda: O desembargador Henrique Jorge Holanda Silveira é o coordenador do plano Pena Justa no Poder Judiciário
Foto: Messias Borges

O desembargador Henrique Silveira revela que "as duas vigas mestras" do Plano são educação e trabalho. "Estatisticamente, muitas pessoas saem do presídio e, pouco tempo depois, voltam. Muitos são analfabetos, não trabalham, não têm uma profissão. Ele vai voltar porque não tem o que fazer. Hoje, a maioria vai ser cooptada pelas facções, infelizmente. E, se dermos essa oportunidade de ele desenvolver um trabalho ou estudar, eu penso que ele (egresso) vai voltar menos do que hoje retorna para o presídio", completa.  

Além do oferecimento de oportunidades de educação e trabalho, as instituições públicas irão checar, no Plano, a superlotação dos presídios cearenses, a situação de acomodação dos detentos, a alimentação, os recursos de saúde, denúncias de tortura, entre outros fatores, segundo o magistrado. 

“O Ceará está avançando em várias questões de trabalho, educação e saúde (no Sistema Penitenciário). É piloto no País, referência. Vários estados vêm conhecer como a gente consegue fazer aqui esse trabalho.”
Mauro Albuquerque
Secretário da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará

Mauro Albuquerque diz que tem “esperança no ‘Pena Justa’”, pois é “o que a gente vem fazendo aqui há 6 anos”. “O Ceará está avançando em várias questões de trabalho, educação e saúde (no Sistema Penitenciário). É piloto no País, referência. Vários estados vêm conhecer como a gente consegue fazer aqui esse trabalho”, destaca. 

O desembargador supervisor do GMF espera que o 'Pena Justa' seja uma "mudança de paradigma no Sistema Prisional brasileiro", que pode ter consequências positivas para "a sociedade de uma maneira geral".  

"É uma tarefa muito árdua, mas, se for bem implementado, vai ser um divisor de águas. Todos os outros estados e o Distrito Federal também estão se movimentando. É uma recomendação do CNJ, por decisão do Supremo Tribunal Federal", ressalta o magistrado. 

Uma das ideias do desembargador é defender a criação de escritórios sociais, mantidos pelos poderes Judiciário e Executivo, para prestar apoio e orientação a egressos do Sistema Penitenciário.

Na reportagem da próxima terça-feira (6), o Diário do Nordeste irá abordar dois dos principais desafios do Sistema Penitenciário cearense: a interdição de sete presídios para receber novos presos, em razão da superlotação, e as denúncias de tortura ocorridas nos últimos anos. Na matéria de quarta (7), o DN irá explorar "as duas vigas mestras" do Plano Pena Justa: como a educação e o trabalho são desenvolvidos nos presídios cearenses.

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Legenda: Plano Pena Justa pretende melhorar as condições de educação e trabalho nos presídios cearenses
Foto: Thiago Gadelha

Como o ‘Pena Justa’ foi criado? 

O Plano é uma resposta à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, de autoria do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), ingressado ainda em maio de 2015. O STF reconheceu, no dia 4 de abril de 2023, que o Sistema Penitenciário brasileiro se encontra em um "estado de coisas inconstitucional", em razão da "violação massiva de direitos fundamentais". 

Na decisão, o Tribunal deu prazo de seis meses para que o Governo Federal elaborasse "um plano de intervenção para resolver a situação, com diretrizes para reduzir a superlotação dos presídios, o número de presos provisórios e a permanência em regime mais severo ou por tempo superior ao da pena", segundo o site do STF. Entretanto, já se passou 1 ano e 6 meses.

Ninguém está aqui para dizer que o nosso sistema está perfeito. Nós estamos em evolução. Eu vim conhecer o sistema prisional da Região Metropolitana de Fortaleza após aquelas rebeliões de 2014. Naquele momento, o Sistema estava totalmente quebrado. A partir daquele momento de barbárie, o Sistema realmente foi objeto de investimento por parte do Estado. As unidades foram reformadas, foram inauguradas unidades e o Estado passou a dominar e controlar o interior dessas unidades."
Nelson Gesteira
Promotor de Justiça

O ministro Gilmar Mendes disse, na ocasião, que os presos brasileiros são submetidos a tratamento desumano e inconstitucional, e é necessário garantir a eles direitos básicos assegurados a todos os cidadãos. Já o ministro Luís Roberto Barroso projetou que aquele fosse "um passo relevante para melhorar, minimamente que seja, as condições degradantes do sistema prisional brasileiro". 

Entre os direitos dos presos, previstos na Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), estão: 

Art. 40 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios. 

Art. 41 - Constituem direitos do preso: 

I - alimentação suficiente e vestuário; 

II - atribuição de trabalho e sua remuneração; 

(...) 

V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; 

VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; 

VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;

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Violação dos direitos humanos?

O Diário do Nordeste ouviu outros órgãos convidados pelos poderes Judiciário e Executivo para contribuir com o 'Pena Justa', para comentarem sobre o Plano e as violações aos direitos humanos existentes no Sistema Penitenciário. Foram entrevistados representantes do Ministério Público do Ceará (MPCE), Defensoria Pública Geral do Ceará, Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Ceará (OAB-CE) e Conselho Penitenciário do Ceará (Copen-CE). 

O promotor de Justiça do MPCE na Execução Penal, Nelson Gesteira, ressalta que cada estado brasileiro tem uma realidade no sistema penitenciário e, por isso, terá que elaborar um plano diferente.

"Não adianta fazer o plano mais lindo do mundo, se ele não for exequível. E, para ele ser exequível, nós vamos precisar de investimento público substancial para trazer a efetividade a esse planejamento, à elaboração do mapeamento, da execução e da mitigação final do programa, para atender todas as nossas unidades", acredita.

Gesteira pondera que o Sistema Penitenciário é "um conjunto gigante de unidades, com um universo de pessoas privadas liberdade e, por conseguinte, uma grande quantidade de problemas".

"Ninguém está aqui para dizer que o nosso sistema está perfeito. Nós estamos em evolução. Eu vim conhecer o sistema prisional da Região Metropolitana de Fortaleza após aquelas rebeliões de 2014. Naquele momento, o Sistema estava totalmente quebrado. A partir daquele momento de barbárie, o Sistema realmente foi objeto de investimento por parte do Estado. As unidades foram reformadas, foram inauguradas unidades e o Estado passou a dominar e controlar o interior dessas unidades", relembra. 

Entretanto, o promotor de Justiça aponta que "precisamos de mais unidades, requalificar unidades em funcionamento, a questão de habitabilidade, locais para trabalho, para estudo e para profissionalização". 

Nós verificamos, aqui no Ceará, como o principal problema, a superlotação carcerária. Nós temos uma quantidade de presos muito superior às vagas, e isso acaba refletindo no cumprimento dos demais direitos."
Leandro Bessa
Subdefensor público geral do Ceará

O subdefensor público geral do Ceará, Leandro Bessa, espera que o Plano Pena Justa "acabe construindo políticas públicas eficazes e eficientes para a melhoria da situação do Sistema Prisional do Brasil". "Esse Plano nasce a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, que entende que o Sistema Prisional é um sistemático violador de direitos humanos e, por isso, representa um Estado de Coisas Inconstitucional", reforça.

Bessa sublinha que a expectativa "é muito grande, porque são temas históricos de violações de direitos humanos, que há muito tempo vêm sendo objeto da nossa preocupação enquanto Defensoria Pública". 

"O Estado do Ceará, como componente do Estado brasileiro, é parte desse Estado de Coisas Inconstitucional. Não existe nenhum estado que seja uma ilha imune a essa crítica. Nós verificamos, aqui no Ceará, como o principal problema, a superlotação carcerária. Nós temos uma quantidade de presos muito superior às vagas, e isso acaba refletindo no cumprimento dos demais direitos", afirma o defensor público. 

Por consequência, segundo Bessa, "fica mais difícil a assistência médica, o fornecimento da assistência material, que envolve vestuário, alimentação. Vai ser mais complicada a questão das visitas e, assim, os familiares vão acabar também sofrendo um pouco as consequências da pena. O próprio formato do aprisionamento acaba sendo um tratamento desumano e degradante". 

Sobre as ações de educação e trabalho no Sistema Penitenciário, o defensor público afirma que "temos percebido uma melhoria nessa dois aspectos, mas ainda muito incipiente". "Ainda é necessário um incremento nessas atividades, porque nós enxergamos exatamente nessas duas ferramentas os principais vetores de ressocialização", conclui.

Foto de policial penal e detentos que trabalham no sistema penitenciário cearense
Legenda: Estado avança em ações de trabalho e educação no cárcere para dar outras oportunidades aos presos, quando saírem do Sistema Penitenciário
Foto: Thiago Gadelha

O diretor de prerrogativas da OAB-CE, Márcio Vitor Albuquerque, revela que a Instituição estará presente em vários eixos do Plano Pena Justa, "com a Comissão de Direito Penitenciário, a Comissão de Direitos Humanos, além de outras comissões. Nós estamos em grupos de trabalho como o da educação, do trabalho, da adequação prisional e de prevenção da tortura". 

Para o advogado, o Sistema Penitenciário cearense "vai mal, está superlotado, temos cerca de 23 mil detentos, e temos sete penitenciárias interditadas, que não podem mais entrar presos. Então, a questão aqui é principalmente a superlotação e a existência das facções criminosas". 

"Em 2019 e 2020, foram fechadas 107 cadeias públicas no Interior do Estado. Nós sabemos que várias dessas cadeias não tinham mais condição de funcionamento. No entanto, na nossa ótica, algumas poderiam continuar funcionando ou poderiam ser até reformadas. Isso (fechamento) gerou um efeito negativo, porque aquele que comete um crime no Interior não fica preso na (mesma) Comarca. Isso já desafia a Lei de Execução Penal, porque o preso deve cumprir a pena próximo da família", critica o advogado.

O presidente do Conselho Penitenciário do Ceará, o defensor público Bheron Rocha, espera que o programa Pena Justa "seja um marco na humanização do sistema prisional, garantindo que as penas sejam cumpridas de acordo com a lei, sem violações de direitos. O Projeto prioriza medidas não privativas de liberdade quando possível, reduzindo a superlotação e focando nas possibilidades de ressocialização e não reincidência". 

Rocha pontua que o Copen integra Câmaras Temáticas do Comitê Estadual de Políticas Penais com as funções de fiscalizar o cumprimento das regras, denunciar casos de prisões ilegais ou condições degradantes e propor políticas que priorizem educação, trabalho e saúde nas unidades prisionais.

107
cadeias públicas foram fechadas no Ceará, nos últimos 6 anos. O Estado decidiu trazer centenas de presos do Interior para a Região Metropolitana de Fortaleza, em razão da segurança e da estrutura das unidades penitenciárias.

Para o presidente do Copen, o Sistema Penitenciário cearense "enfrenta desafios graves, o principal deles é a superlotação, pois traz consequências diretas para a precarização da infraestrutura, vagas de trabalho para os encarcerados, atendimentos médicos e jurídicos, dificuldade de triagem e classificação a partir dos perfis criminológicos e questões ligadas aos territórios e facções". 

"O Ceará já avançou em algumas áreas, como a realização das audiências de custódia em todas as hipóteses de prisão, a partir de atuação da Defensoria Pública no estado do Ceará também junto ao CNJ, aprimoramento do sistema de monitoramento eletrônico e concurso público para policiais penais, porém há muito ainda a ser feito", defende Bheron.

O presidente do Conselho Penitenciário aponta alternativas para os poderes Executivo e Judiciário, como priorizar alternativas à prisão, com monitoramento eletrônica e penas restritivas de direitos; investir em infraestrutura e programas de educação, trabalho e atendimento psicológico, qualificando também as famílias e os territórios no acolhimento do egresso; fortalecer órgãos de fiscalização e controle; ampliar a transparência; e capacitar todos os agentes envolvidos com o Sistema de Justiça, com o objetivo de que a aplicação das normas possa evitar prisões desnecessárias.