Deslocados urbanos: o recomeço de quem foi expulso da própria casa pela facção
“Sabe o que é dois minutos? Eles deram dois minutos para eu sair de casa. Só com a roupa do corpo” (sic). Às 23h do dia 31 de maio de 2020, em plena pandemia de Covid-19, Hosana dos Santos, 61, se viu sem nada. Em questão de minutos o próprio lar onde ela morava há 20 anos junto à família foi tomado a mando da facção criminosa Guardiões do Estado (GDE).
Hosana entrou para a estatística de ‘deslocados urbanos’. Vítima do impacto da ‘guerra’ sofrida diretamente por quem vive em áreas periféricas de Fortaleza. Casos com o dela seguem sendo acompanhados de perto por órgãos, como o Ministério Público do Ceará (MPCE) e a Defensoria Pública do Ceará.
“Era um domingo. Eu tava assistindo Sílvio Santos, me lembro como se fosse hoje. Marcaram com um X minha parede, deram uns cinco tiros e começaram a chutar meu portão dizendo que eu ia morrer, que iam matar todo mundo e que o tempo tava passando” (sic), lembrou.
A dinâmica das facções criminosas interfere diretamente nos atendimentos do Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência (NUAVV) do MPCE, como ponderado pela procuradora de Justiça, promotora e coordenadora do Núcleo de Acolhimento às Vítimas de Violência Nuavv, Joseana França, e a psicóloga do Núcleo, Mellyne Nascimento.
“O NUAVV vem com a finalidade de ocupar um espaço precioso e necessário, na atenção à vítima de violência”
Mellyne garante: “tudo tem que ser feito com muita cautela. A questão das organizações criminosas perpassa cada vez mais por outras violências. Nós precisamos compreender o contexto”.
EM MEIO A UMA ‘GUERRA’
Hosana morava na Rua 13 de agosto, no bairro Floresta, em Fortaleza. Uma casa de mutirão entregue ainda na época da gestão do prefeito Juraci Magalhães, segundo ela.
Junto a duas filhas, o neto e o genro, a família passava os dias sob o mesmo teto e viram de perto a ‘guerra’ das facções aflorar no bairro.
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“Eu saía para trabalhar de manhã e só voltava à noite. Passava o dia vendendo minhas coisas, lingerie.Tinha uma vida normal. Quando começavam os tiroteios voltava pra casa mais cedo”, conta Hosana.
Ao lembrar do dia 31 de maio de 2020 Hosana diz que “treme quando começo a falar disso”.
“Começou um tiroteio e tranquei tudo. Fiquei lá dentro apavorada. A Polícia chegou e depois quando o Raio foi embora, eles (facção) voltaram para a rua e marcaram as casas que era pra sair. Marcaram com um X e a minha tava no meio. Picharam meu portão, deram cinco tiros e mandaram a gente sair. Como que eu ia sair com um bando de marginal lá fora?”, recorda.
Apavorado, o genro da vendedora ligou para a Polícia. “O Raio veio e eles estavam com medo também. Deram cobertura pra gente e disseram: não peguem nada, a gente vai dar cobertura, mas vocês têm que sair. Eu não peguei nada. Saí com a minha roupa de dormir. Do jeito que eu tava”, relata Hosana.
“Eu tava muito nervosa, nem consegui fechar o portão. Eu fui para o José Walter para uma casa do meu genro lá. Fiquei apavorada. Eu tinha tudo ajeitadinho dentro da minha casa, televisão, botijão de gás, fogão… Eu tinha reformado minha casa, era boa. Isso tudo ainda aconteceu na pandemia”
Só em ouvir em voltar ao local para tentar pegar o mínimo dos seus pertences, a vítima disse que “tremia”. Depois de alguns dias na casa do genro, passou pela casa de uma amiga, depois na casa da irmã e ainda pediu ao ex-marido, pai de uma das filhas dela, ‘um canto para ficar’.
“Eu pedi a ele. Pedi pelo amor de Deus que ele me desse um lugar e que quando eu melhorasse de vida entregava a casa dele. A casa dele tinha sido derrubada e estava reformando. Lá não tinha água e não tinha luz. Passei uns três meses, eu e minha filha, lá.
A energia com vela e a água a gente pegava no vizinho”, lembra Hosana.
A HORA DO AMPARO
Na condição de ‘deslocada urbana’, até então, Hosana diz que não tinha recebido nenhum apoio do Poder Público: “foi quando um policial do Raio falou assim pra mim: ‘dona Hosana eu queria muito falar com a senhora. Eu tenho muita pena da senhora por ter perdido a sua casa, mas tem um órgão que a senhora pode entrar em contato e que tem gente lá para resolver isso daí, pelo menos um psicólogo, uma ajuda pra senhora”.
“Eu fui. A doutora Joseana me amparou. Advogado, psicólogo, gente que me escutava lá no Nuavv. Graças a Deus, a partir do dia que cheguei ali me senti amparada. Eu pensava: ‘meu Deus, não tenho para onde ir. Questionava a Deus porque eu estava pagando por uma coisa que eu nunca fiz por isso. Ser expulsa da minha própria casa? Como pode isso?”, disse a vítima.
“Você passa a vida construindo, uma pessoa justa e isso acontece. Eu me vi sem nada, me senti um nada, olhando pra um lado e pro outro sem ver nada”
Se existia reviravolta, sobrevida possível para a mulher, ela ali estaria prestes a descobrir. “Eu andava tão nervosa que tive um acidente muito feio de moto, passei dois meses no IJF. Quebrei todos os meus dentes nesse acidente em 2023. O capacete entrou, precisaram cortar toda a gengiva”, conta.
O acolhimento no Nuavv continuava, sendo a vítima acompanhada de perto pela psicóloga e pela promotora: “depois que eu fui lá no Ministério Público o caminho se abriu, eu nunca imaginei passar por uma coisa dessa”.
“De lá para cá eu notei que eu encontrei muita gente boa, feliz, boa por dentro e de coração. Agora eu tenho um namorado e graças a Deus, tô bem. Eu me sentia muito sozinha e agora tem pessoas que somam na minha vida. Ajeitei meus dentes, eu voltei a sorrir e com um sorriso lindo. Até hoje eu vou lá no MP, quando eu estou meio deprimida, sabe? Quando eu chego lá pareço uma celebridade”, diz sorrindo.
“Hoje eu agradeço abaixo de Deus a doutora Joseana. Ela foi muito importante na minha vida. Eu tenho a maior admiração pela pessoa dela. Porque ela é uma pessoa humana, uma pessoa que vê a dor do outro, olha dentro do olho da gente. Faz o impossível e o possível para ajudar. Todo dia eu oro por ela. Essa mulher tem que receber tudo que Deus tiver de bom, ela é muito humana, a pessoa certa para trabalhar no órgão certo. Só quem conhece sabe mesmo”
PREENCHER VAZIOS
Hoje, Hosana mora de aluguel. A vendedora afirma que só consegue pagar mensalmente os custos porque recebe um auxílio do Habitafor (programa da Prefeitura de Fortaleza): “também foi a doutora Joseana que me ajudou a conseguir. Depois de passar por tanta coisa, tantos cantos, hoje eu e minha filha moramos em outro bairro (nome do bairro foi preservado para proteger a vítima)”.
A procuradora pontua que o “NUAVV preenche um vácuo que existia no Ministério Público quando se fala em cuidar das vítimas e dos seus familiares” e lembra: “o simples fato de ouvir já traz um alívio imenso ao sofrimento das pessoas”.
As três formas de se chegar ao Nuavv:
- Ouviu falar do Núcleo? O funcionamento presencial acontece de segunda a sexta-feira, de 8h às 17h, na Rua Assunção, n° 1100, no bairro José Bonifácio, em Fortaleza. É a chamada demanda espontânea
- Via encaminhamento. Segundo a coordenadora do Núcleo, atualmente isso é “quase 90%, dos próprios promotores de Justiça ou externos”.
- Via ofício. O próprio Nuavv tem conhecimento de alguma situação, sem precisar “ser provocado”.
Como chegar à Defensoria Pública:
O subdefensor geral Leandro Bessa ressalta que “se você teve alguma situação em que foi vítima de violência ou algum familiar seu passou por isso, você também sempre pode contar com a Defensoria Pública para essas demandas”.
- Disque 129 é o ‘Alô Defensoria’. A partir de então a vítima é direcionada a determinado Núcleo, a depender da violência sofrida.