Da sequência de absurdos protagonizada pela juíza Joana Ribeiro Zimmer, de Santa Catarina, aquilo que resolvi chamar de delírio, enquanto deveria dar o nome que merece - perversidade - uma prevalece: quando a juíza, diante da menina e sua mãe - aquela que trocaria de lugar com a filha se pudesse porque para a maioria das mães a pior dor é a da cria, a vergonha, o desamparo, a impossibilidade de reverter o pesadelo, o tormento constante de não conseguir evitar a barbárie contra a própria filha -, a juíza insinua: “Hoje há tecnologia para salvar o bebê. E a gente tem 30 mil casais que querem o bebê. Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal”.
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Eu não vou decupar o horror que cabe nessa frase, vou me deter apenas na ideia de que o sofrimento de uma criança de 11 anos, grávida aos 10, que, provavelmente, não sabe como funciona o próprio corpo, mas está ali, carregando o fruto de uma violência sexual, e uma mãe que assiste a tudo, impotente, esse sofrimento pode servir a alguém, pode trazer felicidade a alguém, assim pensa a juíza. Porque uma família pode ser formada e sorrir, não importando se outra foi destruída.
Para isso, basta que a criança (que já nasceu e está viva, mas parece importar muito menos do que a que ainda nem se formou, nem nasceu), aguente a tortura mais “um pouquinho”, leia-se meses. Basta que aquele corpo pequeno seja usado - contra a própria vontade - para produzir um ser humano. Basta que a menina passe pelos medos do parto que assolam muitas mães adultas, imagina uma menina.
E basta que a menina, vítima de violência e de humilhação, viva, pelo resto da sua vida - que considerando a pouca idade há de ser longa - sabendo que o ser humano que gerou - de novo, contra a própria vontade - pode nascer para servir a outra família - isso se a criança for mesmo adotada, se passar pela enorme burocracia brasileira e não acabar abandonada como estão mais de 30.000 crianças que vivem em abrigos no Brasil, e quase 5.000 que esperam por adoção, desprezadas, famintas de amor e humanidade, dados que a juíza, convenientemente, deixou de listar.
Eu queria dizer que isso é o corpo de uma mulher a serviço do mundo, um mundo que a despreza, mas não é. É o corpo de uma criança, que calhou de ter um útero, que calhou de, por conta disso, não ser considerada uma pessoa.
Não existe vida sem o corpo de mulheres ou pessoas com útero e, aqui, corpos de meninas não deveriam ser incluídos. O mundo, a ciência, os deuses, ainda não inventaram outra coisa que substitua o nosso útero. O fato de que só os nossos corpos são capazes de produzir outra vida deveria nos dignificar, não nos escravizar.
Inventem uma máquina, uma cápsula, uma indústria. Criem seres humanos em série, abasteçam as 30 mil famílias que esperam por bebês. Mas deixem as meninas, os corpos das meninas, as vidas das meninas, em paz