‘A Filha Perdida’ não funcionaria com um pai no papel principal e isso é um problema

Legenda: A dor de Leda é pujante, latente, o longa é uma sequência incômoda de angústia

Entre as mulheres da minha timeline, entre as jornalistas dos veículos que leio, não se fala e não se escreve sobre outra coisa. Baseado na obra de Elena Ferrante, o filme A Filha Perdida (Netflix), dirigido por Maggie Gyllenhaal, arrebentou como um tsunami em muitas de nós, mães ou não.

Há tempos um filme não causava tantas discussões e reflexões na ala feminina e, tal qual aconteceu com Maid (Netflix), o silêncio dos homens - sobre o filme em si ou os assuntos que o rondam - é ensurdecedor. Mais um exemplo de que a maternidade, suas dificuldades e o abismo entre os papéis de mãe e pai são considerados temas apenas femininos, logo, não interessam aos homens. O que é um erro.

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Mas o que quero destacar aqui é outro ponto da história. ‘A Filha Perdida’ mostra Leda - vivida brilhantemente por Olivia Colman -, mãe de duas meninas, que tem uma relação multidimensional com a maternidade - como várias mães que conheço -, ora adora as filhas, ora queria que elas desaparecessem.

Ao longo da história, a protagonista agoniza com a sobrecarga de tarefas, com a carreira definhando e com a imensa culpa de ter ido embora para viver por 3 anos longe das crias pequenas, priorizando o trabalho e a vida amorosa. A dor de Leda é pujante, latente, o longa é uma sequência incômoda de angústia. O sofrimento da personagem é tão palpável, e não só o dela, mas o de Nina (uma espécie de versão mais jovem de Leda), que em certo momento pensei no quão injusto é perceber que esse enredo só funciona protagonizado por uma mãe.

Um pai no lugar de Leda soaria deslocado, inverossímil, barato. Aquela agonia, aquele lugar de culpa, de choro, de questionamentos, de sofrimento, só pode ser ocupado pelas mães e considero este detalhe parte das feridas da nossa sociedade.

Homens abandonam seus filhos com pouco ou nada de questionamentos internos ou externos. Dão as costas sem olhar para trás, jamais voltam ou, quando voltam, se angustiados ou culpados disfarçam muito bem.

No momento em que escrevo este texto, coincidentemente, ouço o episódio “Mãedrasta”, do podcast ‘Não Inviabilize’, que conta a história de uma jovem de 20 anos que criou sozinha uma menina de 6 anos, filha do então namorado, porque ele abandonou ambas.

Abandonou aos cuidados da namorada - que não tinha nada a ver com a história - uma filha já órfã de mãe. Foi e não voltou, um clichê, apenas um caso dentre tantos. É assim que os homens partem. À mulher cabe o flagelo de sistematicamente lidar com a dubiedade do papel de mãe, se martirizando inclusive por ser momentaneamente feliz longe dos filhos.

O fato da obra não funcionar com um pai no papel principal não deveria colocar o longa na categoria “coisa de mulher”, ou um assunto ligado exclusivamente ao feminino, como vi alguns críticos de cinema tentando nos fazer pensar.

O desgaste físico, mental, financeiro, profissional, emocional de uma mãe é, definitivamente, assunto de homem.

Se a nossa atual estrutura familiar e social nos mostra que um cara jamais poderia estar no lugar de Leda por não experimentar a imensidão da sua culpa, então já passou da hora desses homens pensarem que a culpa, na verdade, é deles também.

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Leda é mulher, mas quase tudo que compõe aquele recorte da sua vida só existe por conta do mundo masculino. A obra de Elena Ferrante fala, grita, aliás, com todos nós.

Homens não dão ouvidos porque estar desatentos os beneficia. Mas por mais surdos que eles finjam ser, a verdade é que é papel deles também tornar o mundo um lugar menos difícil para as Ledas ao nosso redor.