Arthur e as mulheres empilhadas na estante de troços

Li numa foto, pintada em algum muro – sem saber a autoria – a máxima que diz que “feminismo é a ideia radical de que mulheres são gente”. Ninguém precisa ver mulheres numa zona de guerra para saber que essa sentença carrega uma dolorosa verdade. Mas aconteceu justamente isso. Saiu da boca de um deputado, eleito por voto popular no maior estado do Brasil, e durante uma guerra, uma sequência de frases que expõem a nossa coisificação, o estado perene de empilhamento de mulheres na estante de troços.

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Não tem outro nome, não tem meio termo e a desculpa dada pelo homem-rato, pedindo que, por favor, nos atentemos ao “contexto”, num ato covarde de se safar do indefensável, o prejudica ainda mais. A contextualização acelera o apodrecimento da fala que já era intragável. Vejam:

Comunidades inteiras aos pedaços. Uma fila de centenas de mulheres que estão vivendo no limite da dor. Perderam casas, foram obrigadas a deixar filhos, maridos, pais, irmãos, amigos. Ali, de pé e exaustas, na linha rumo ao nada, não sabem o que está por vir, como será o amanhã, como vão viver, se sequer vão comer. Sentem a perda num lugar nunca antes acessado, sentem solidão, saudade, revolta. Humilhadas, injustiçadas, impotentes, reféns, violentadas. Sentem desespero, perguntam se deus existe. Rezam, oram, choram.

Do lado de fora da linha, no conforto de ser um homem livre, respeitado e protegido em seu país, fazendo um trabalho para posar de “corajoso e defensor dos coitados”, Arthur vê essas mulheres e fantasia sobre o sexo com elas. Ali mesmo, pra facilitar. Fora dali, num cenário considerado ideal, há o perigo da escolha, então melhor que seja num ambiente de miséria e vulnerabilidade, para não correr o risco de essas mulheres o rejeitarem, como o rejeitam muitas em seu país. Essa linha de pensamento só nasce e se materializa através de alguém que vê uma mulher como um utensílio, cuja única finalidade é seu usufruto e satisfação. Um instrumento que o serve.

O deputado que disse o que disse deve ser punido. Há de ter alguma lei humana, neste ou em qualquer país, que condene o crime de coisificação e perversidade. Mas Arthur não está sozinho. É sustentado por uma cultura que, desde sempre, coloca mulheres – como a revista Playboy o fez e faz há décadas, para citar só um exemplo – na lista de acessórios ao lado de carros, charutos, ternos, apartamentos, relógios, armas.

Arthur é amparado também por milhões e milhões feitos à sua imagem e semelhança. Recebem o áudio, riem do áudio, sentem inveja de Arthur, sonham com um “tour de blonde”, checam datas no calendário, traçam um possível plano. Lamentam e se indignam porque, em sua cidade, em seu país, aquelas “coisas” loiras, magras de beleza eurocêntrica, não querem satisfazer suas vontades. Que audácia a delas.

Arthur deu azar de ter a fala vazada por um amigo. Porém, no esgoto do machismo, neste em que nadamos todos os dias, milhares de Arthurs jamais são expostos, mas protegidos, admirados, celebrados, são promovidos, ovacionados, idolatrados, e, para surpresa de ninguém, viram até presidente.

 

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora