Karim Aïnouz fala de Cannes, sexo e política em 'Motel Destino', que tem pré-estreia nacional no CE

Filme que marcou a estreia do Estado no célebre Festival de Cannes terá primeira exibição pós-Cannes em Fortaleza, neste sábado (3)

Legenda: Gravado em Beberibe com elenco e equipe majoritariamente cearenses, "Motel Destino" terá primeira exibição nacional no Ceará
Foto: Divulgação

Pouco menos de quatro meses após celebrar o anúncio da seleção de "Motel Destino" na competição oficial do Festival de Cannes — feito inédito para uma produção cearense — e compartilhar emoções de tamanha "responsabilidade", o diretor Karim Aïnouz se revela "otimista" em relação à primeira exibição do longa depois de Cannes, ocorrida em maio.

Será no Ceará, terra de nascença do artista e da obra, que a produção terá pré-estreia nacional. "É um filme que virá muito ao encontro do público, muito popular, que fala de temas muito caros a todos nós", define o diretor, que também destaca o adjetivo "quente" para falar de "Motel Destino". "Não no sentido sexual, de temperatura, mas humanamente muito quente", elabora, 

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Ressaltando a "movida" audiovisual acontecendo no Ceará — que pode bater recorde de estreias de longas em 2024 —, Karim compartilha os frutos da projeção pós-Cannes do thriller erótico, o compromisso de trazer os próprios filmes primeiro ao Estado, as representações políticas e os possíveis debates sobre sexualidade que a obra pode suscitar.

Confira a entrevista de Karim à coluna, feita por videochamada na tarde da terça-feira (30).

Verso - Você já foi para Cannes várias vezes, mas neste ano com um longa cearense competindo pela Palma de Ouro. O que a projeção internacional do festival agrega a uma produção? Que oportunidades o filme conseguiu?

Karim Aïnouz - Tem sido incrível. Como te falei da outra vez, a seleção de Cannes é sempre muito importante, independentemente de premiação ou não. Você tem, primeiro, uma exposição de mídia gigante e isso facilita muito as vendas no mundo inteiro, as pessoas ficam esperando quais são os filmes que estão na seleção. Foi muito importante nas vendas, na vida do filme. Ele está começando a estrear agora: estreia no dia 22 no Brasil, depois no México, acho que depois entra em cartaz na América Latina inteira e tem algumas vendas sendo negociadas.

Cannes funciona como uma espécie de filtro que, especificamente pra filmes de língua não-inglesa, te coloca num lugar de visibilidade muito importante e muda de fato o valor do filme. Os grandes festivais, não só Cannes como Veneza e Berlim, te dão um selo de qualidade que valida e permite pular algumas etapas, principalmente com relação às vendas. Um prestígio muito grande. Nesse ano, estive como diretor de dois filmes seguidos em competição (Karim teve o longa “Firebrand”, primeiro dele em inglês, selecionado ao festival em 2023), então isso ajudou muito “Motel Destino”, que não veio só como um selecionado, mas dentro de uma perspectiva de trajetória. 

Falando da importância da seleção dele (em Cannes) no Brasil, acho que foi a primeira vez que vi o nome “Ceará” dentro da seleção oficial. Isso colocou a gente no mapa, no sentido literal, de que ele foi filmado no Ceará, tendo um DNA super cearense, não só porque eu ou os atores somos cearenses, mas porque ele conta uma espécie de ecossistema que é muito nosso no sentido da paisagem, da luz, de relações humanas, de humor.

Outra coisa bonita que o filme colocou em Cannes, foi certa sensação de alegria. Foi muito bonito o que aconteceu — e nada daquilo foi planejado —, no tapete vermelho. Me lembro de estar saindo da sessão e o Thierry (Frémaux, diretor do Festival de Cannes) veio falar comigo. Eu disse “foi tão legal a entrada e tal” e ele: “Realmente trouxe um frescor para os filmes em competição”. Depois, um momento muito especial foi a acolhida do filme. Ele me falou que não foi bonita só a entrada, como a recepção, como a gente colocou o filme à prova do público. É o momento mais difícil, um parto mesmo, como ele é recebido, você sente a temperatura do público na sala. Isso foi muito importante não só para o filme, mas também humanamente para quem fez o filme.

No tapete vermelho de Cannes, elenco e equipe presentes dançaram ao som de Aviões do Forró
Legenda: No tapete vermelho de Cannes, elenco e equipe presentes dançaram ao som de Aviões do Forró
Foto: Loic Venance / AFP

Verso - Outro parto deverá ser a exibição do filme no Ceará (no sábado, 3), a primeira dele no Brasil. A estreia é em 22 de agosto, ele foi anunciado para a abertura do Festival de Gramado, mas antes chega aqui. Como se dá essa escolha e compromisso de trazer suas obras primeiro para cá?

Karim - Cara, é muito importante — não para mim, pessoalmente, porque sou daí, tenho o maior orgulho de ser daí e saí daí — porque a gente vem de um lugar, e você talvez saiba disso tão mais que eu, especificamente no audiovisual, que é sempre muito da periferia. Tem uma coisa muito importante que aconteceu especificamente com esse filme que é uma celebração da autoestima da gente. O cinema do Nordeste começa a florescer ali com “Baile Perfumado” (longa de 1996, dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas), na década de 1990 — claro que existiram filmes nordestinos celebrados na época do Glauber (Rocha, cineasta baiano), do Cinema Novo, mas tem de fato o filme que é feito por e no Nordeste. 

Para mim é muito importante que a gente reconheça isso. É uma espécie de acerto de contas que a gente tem que fazer com o cinema brasileiro. Tem toda uma produção cultural que vem do Sul e do Sudeste, especificamente do cinema, e é muito importante que a gente reconheça que existe de fato uma força tão grande ou maior vinda de outras regiões do Brasil. É muito importante que esses filmes estreiem (no Ceará) porque é uma espécie de tomada de território que a gente tem que fazer. 

Toda cidade e estado do Brasil tem um grande Iago (Xavier, protagonista de “Motel Destino”) e uma grande Nataly (Rocha, também protagonista de “Motel Destino”), só que eles não são celebrados. São talentos, obras e processos que são invisibilizados constantemente, então é muito importante que eles sejam hipervisibilizados. Nesse sentido, estrear no Ceará um filme que é feito no Ceará é muito importante. Teve toda uma discussão: “Vamos pra Gramado?”. Vamos pra Gramado, mas o filme tem que nascer onde foi feito. 

É muito importante que a gente tenha essa oportunidade incrível de poder passar o filme aí, porque nesse mês acho que tem quatro filmes cearenses sendo lançados em circuito nacional. É importante também falar que existe uma onda, uma movida, acontecendo no Nordeste, no Ceará especificamente, e isso tem que ser celebrado, reconhecido. Não é mais do que o meu dever passar esse filme no Ceará, é o único lugar no Brasil onde ele podia passar antes de qualquer coisa. É importante porque isso faz com que a sua geração tenha orgulho do cinema que a gente faz, queira fazer também e queira falar das nossas histórias. É muito importante essa demarcação de território especificamente num país onde esse território foi eternamente marginalizado.

Não acho que isso também seja um acidente histórico. É um processo histórico. Esse filme estar passando no Ceará agora é fruto de uma coisa que a gente falou da outra vez que esteve junto, é uma celebração de um processo de formação que começa há muitos anos, com o Porto Iracema das Artes, o Instituto Dragão do Mar. Não é só a estreia de um filme, é a celebração de um projeto de formação que inclui elenco, equipe, então era muito importante que a gente retornasse a generosidade e a participação deles para o lugar de onde eles vêm.

Verso - Você falou sobre o filme ser “muito cearense” não só porque foi feito aqui, mas porque tem muito daqui. Como e onde o público vai conseguir se reconhecer e reconhecer o próprio Ceará na tela? 

Karim - A gente consegue se reconhecer na alma, no corpo, na temperatura dos personagens. É através dos personagens, que são os elementos mais importantes desse filme. Claro que a história e o lugar onde foi feito são importantes, mas o filme tem uma alma muito cearense que se expressa na maneira como as pessoas se movimentam, no sotaque, no afeto que têm umas pelas outras, na maneira como o senso de humor permeia as relações humanas. Imagino que a gente vá se reconhecer nos personagens, no ritmo deles, na maneira como dançam, transam, se apaixonam. Sempre passa pelo humano. O contexto, a praia, o Sol, a luz, tudo isso é muito importante, mas a grande matéria prima do cinema são os atores que habitam aqueles personagens. 

Claro, como com qualquer filme, não importa quantos anos você tenha e quantos filmes você fez, você nunca tem certeza exatamente do que vai acontecer, mas nesse tenho certa intuição: é um filme que virá muito ao encontro do público, muito popular, que fala de temas muito caros a todos nós. É uma história de amor muito bonita, um filme muito quente, não no sentido sexual, de temperatura, mas humanamente muito quente. Tenho a sensação de que ele vai transmitir muita vitalidade para o público, o que é uma das grandes razões de ter feito. Ele vem ao encontro não só do público cearense, mas também do momento que a gente está vivendo no Brasil agora, que é de celebração e de volta à vida. Fico muito otimista em relação à maneira que o filme vai ao encontro do público. 

Os cearenses Iago Xavier e Nataly Rocha protagonizam 'Motel Destino'
Legenda: Os cearenses Iago Xavier e Nataly Rocha protagonizam "Motel Destino"
Foto: Fabiane de Paula

Verso - Há 10 anos, “Praia do Futuro” apresentava Jesuíta Barbosa, que não nasceu aqui, mas se criou enquanto ator aqui. Agora, “Motel Destino” apresenta o Iago Xavier no primeiro grande papel e também destaca a Nataly Rocha. Como você vê esse papel de apresentar, junto a nomes consagrados nacionalmente, novos rostos e nomes que vêm de processos formativos daqui?

Karim - É uma coisa que me mobiliza muito desde o meu começo no cinema e vem se repetindo ao longo dos filmes. Aqui, tinha uma meta muito importante, lembro que no começo a gente falou que tinha que ser um elenco 100% cearense para além do Elias. Na época de “O Céu de Suely”, tive um esforço grande de fazer um elenco pan-nordestino, com atores de quase todos os estados. Aqui, foi uma afirmação da potência audiovisual cearense, que passa por quem está atrás e na frente das câmeras. Era muito importante que a gente viesse com uma força ainda maior (porque) era um filme inteiro filmado no Ceará. A gente tem uma série de atores, atrizes e artistas que estão em espaços periféricos e às vezes não são celebrados.

Tinha uma meta gigante de, primeiro, revelar uma nova geração de atores e, segundo, confirmar outra geração, que é a da Nataly, da Fabíola (Liper), todo o elenco de apoio que estava ali e era muito importante. É legal a gente falar do Iago, mas é muito importante também falar dos outros atores que são fundamentais no filme. A Fabíola é uma atriz importantíssima, o Renan (Capivara), o David (Santos), são realmente atores excepcionais e um filme é sempre uma oportunidade. Para mim, era poder gerar oportunidades para que esses atores pudessem de fato exercitar o talento que têm.
Karim Aïnouz
cineasta

Verso - Aproveitando que você citou o Elias (Fábio Assunção), ele é um personagem complexo na representação de certo conservadorismo no Brasil. De que forma o personagem reflete o estado político do País?

Karim - Um negócio muito concreto para o filme, antes de tudo, é que o tema mais importante dele se chama solidariedade. Fiquei muito impressionado com o que aconteceu no Brasil na época do golpe contra a Dilma (Rousseff, ex-presidente), com a eleição do fascismo no Brasil em 2018 e ficava olhando o negócio acontecendo, o monstro entrando na casa, e a gente brigando entre si. Gente, espera aí, vamos primeiro identificar quem é o nosso inimigo — a gente tem um, que é o fascimo — e tentar entender quais são as nossas diferenças para celebrar e ao mesmo tempo juntá-las pra gente poder ficar mais forte. 

Em última instância, esse é o grande tema politicamente do “Motel Destino” para mim, todo o resto é o resto. É um filme que fala de solidariedade entre grupos distintos — um garoto que tem 20 e poucos anos, desamparado a vida inteira, e uma personagem feminina que também passou por desamparo e abuso no cotidiano. Como é que a gente se junta para ficar mais forte? Contra quem? Aqui, a gente se junta contra o Elias, que é um personagem fascinante. 

Era muito fácil ter feito um Elias monstruoso. Ele é muito diferente de vários políticos e figuras públicas brasileiras que habitaram e continuam habitando a paisagem política com certo protagonismo nos últimos anos. A definição do personagem do Elias para mim é o crepúsculo do macho, aquele macho tóxico que é um ser humano e está desabando. O mais fascinante é que ele está em decomposição. O filme faz uma anatomia do macho tóxico, do patriarca perigoso e do crepúsculo dessa figura. Nesse sentido, ele é um personagem complexo. As pessoas são o que são porque, também, são vítimas de processos que os colocam dentro de uma situação nociva. O patriarcado vai fazendo com que os homens virem muito ruins. Era muito importante entender que o Elias está em decadência. 

Ele é essas duas coisas: um personagem absolutamente tóxico, corrosivo, e ao mesmo tempo um ser humano, mas em decomposição. É tão importante quanto o cinema adentra o inconsciente. Isso já esteve presente em outros filmes, mas aqui tento adentrar o inconsciente desses personagens em todos os sentidos: o do Heraldo, enquanto alguém que está preso e desesperado, o do Elias, que não quer ser excluído e que tem uma relação com o Heraldo que é de afeto, também de desejo. Além das questões de solidariedade e de política muito relevantes, o filme tenta falar dos seres humanos de maneira muito vertical. O cinema é um dos grandes veículos, como as artes visuais, a música, que nos permite adentrar coisas que a gente não necessariamente articula de maneira consciente.

Verso - Há 10 anos, também com “Praia do Futuro”, quando o filme estreou comercialmente, houve certa controvérsia sobre as cenas de sexo, até avisos sobre isso na bilheteria. No atual contexto, como você supõe que vá ser a repercussão das cenas de sexo e nudez de “Motel Destino”? 

Karim - Espero que não traga nenhum debate, não. Quando você faz cinema, tem duas coisas que são muito ricas na descrição e na maneira que você entende um personagem, que são cenas de dança e cenas de sexo. Para mim, elas são muito parecidas, é quando você tira a couraça e de fato se expõe, é vulnerável, sensual, divertido, engraçado. Tem uma bagunça de coisas quando você tem tanto cenas de intimidade e amor, como as de dança. Espero que a gente não entre nesse debate, porque tem outros tão mais importantes de se entrar do que se é muito sexo. Para mim, sexo é celebração da vida, então nunca é demais, para te ser muito franco. Dança também, tudo que é celebração da vida nunca é demais. 

Seria muito triste se a gente entrasse nesse debate de novo, entende, porque a gente tinha que estar debatendo outras coisas: a taxa de mortalidade dos pretos no Brasil, o feminicídio. (Se) a gente ficar debatendo prazer sexual como algo perigoso, acho que a gente está malparado. Fico torcendo que tenha outros debates que o filme suscite que não sejam esses.

Tinha uma coisa especificamente no “Praia do Futuro”, muito séria, muito violenta, que é a homofobia. Aqui, a gente passa por outro lugar da relação sexual. O quão mais juntos esses personagens estão sexualmente, é como se a força deles estivesse nessa fusão corporal. Se gente pudesse debater sexo como uma experiência de vitalidade, seria tão bonito nesse momento histórico. Quem vai querer debater esse filme a partir dessas questões são pessoas que provavelmente têm problemas sexuais…

Verso - E que provavelmente nem veriam o filme…

Ou que provavelmente deveriam, porque é um filme bem animado. Seria muito bom se as pessoas que tivessem questões com relação a isso pudessem ver, porque o filme celebra isso, é absolutamente dionisíaco nesse sentido. Espero que ele seja um bálsamo para a alma e para o corpo. 

Verso - Em relação a isso, houve uma fala pública do presidente Lula (em junho) falando que arte, cultura e filmes, não deveriam “ensinar putaria”. Há uma visão que espera que a arte ensine, tenha certa moral, mesmo em pessoas não necessariamente conservadoras

Karim - Acho que arte ensina a gente a viver melhor, né?