Escola de cinema indígena do povo Jenipapo-Kanindé retoma atividades no Ceará: 'Ferramenta de luta'

2ª turma da Escola de Cinema Indígena Jenipapo-Kanindé inicia atividades neste mês na Aldeia Encantada, em Aquiraz; experiência começou em 2018

Escrito por
João Gabriel Tréz joao.gabriel@svm.com.br
Legenda: Unindo formação em audiovisual e lutas do povo, Escola de Cinema Indígena Jenipapo-Kanindé retoma atividades em 2025
Foto: Arquivo do Povo Jenipapo-Kanindé / Divulgação

Para além da técnica, o cinema feito por pessoas indígenas é marcado por diferentes importâncias simbólicas: é memória, é autoestima, é luta. Nesta toada, uma das principais experiências de formação audiovisual para indígenas no Ceará retoma as atividades a partir deste mês de agosto.

Criada em 2018, a Escola de Cinema Indígena Jenipapo-Kanindé — realizada na Aldeia Encantada, no município cearense de Aquiraz, a cerca de 30 km de Fortaleza — formou 50 realizadores audiovisuais na 1ª turma e, para a 2ª turma, abre a formação para outros povos indígenas do Ceará.

Do Cine Clube Aldeia à Escola de Cinema Indígena

A aposta numa formação em audiovisual há sete anos no contexto Jenipapo-Kanindé veio como resultado natural da relação do povo com a linguagem.

“A nossa Escola de Cinema Indígena Jenipapo-Kanindé já vinha sendo moldada há um bom tempo”, atesta Valdisia Costa Silva, psicopedagoga e integrante da Associação das Mulheres Indígenas Jenipapo-Kanindé (AMIJK), à qual a escola é vinculada, e da experiência formativa.

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“Começou no Cine Clube Aldeia e nas mostras de cinema indígena. Através desses projetos, sentimos a necessidade de criar a escola”, contextualiza, citando dois projetos promovidos pelo povo Jenipapo-Kanindé ao longo dos anos 2010.

O Cine Clube Aldeia ocorreu a partir de 2012, com exibição de filmes tanto produzidos pelos próprios Jenipapo-Kanindé quanto por outras comunidades indígenas brasileiras, além de rodas de conversa.

Formação da escola inclui aspectos teóricos e técnicos do audiovisual, além da prática
Legenda: Formação da escola inclui aspectos teóricos e técnicos do audiovisual, além da prática
Foto: Iago Jenipapo-Kanindé / Divulgação

Já a Mostra Indígena de Filmes Etnográficos do Ceará teve duas edições, realizadas respectivamente em 2015 e 2017, que levaram realizadores e pesquisadores até Aquiraz. Todas as atividades ocorreram com apoio da Secretaria da Cultura do Ceará.

Finalmente, a AMIJK concretizou o projeto da escola, também com apoio da Secult, em agosto de 2018. “Nossos alunos tinham aulas pelo fim de semana, teóricas e práticas. A duração (total do curso) foi de três anos. Os conteúdos eram diversos, que abrangiam os conceitos básicos do audiovisual, e eram ministrados por pessoas não indígenas”, resume Valdisia.

Os alunos eram predominantemente adolescentes, mas havia pessoas de diferentes idades. No total, foram cerca de 50 participantes na primeira turma da Escola.

A conclusão da formação ocorreu em 2021 e, entre os filmes produzidos no escopo dela, estão documentários sobre a Festa do Mocororó, as ligações entre as culturas indígena, de umbanda e cigana, e ainda sobre a relação entre povos indígenas e povos do mar em Aquiraz. 

Em 2025, projeto será retomado com mais indígenas na equipe

Apesar dos resultados positivos, a vontade de dar sequência ao projeto teve que ser revista pelos impactos da covid-19. A retomada foi possível, agora, a partir de recursos da Política Nacional Aldir Blanc.

Entre novidades da 2ª turma, Valdisia destaca duas: a abertura para outros povos além dos Jenipapo-Kanindé e o fato de que a equipe da Escola está, atualmente, formada por mais indígenas.

“Agora, estamos dispostos a formar mais cineastas, porque ainda sentimos a necessidade de formar mais indígenas nessa ferramenta de luta tão importante”, atesta a psicopedagoga.

Parte dessa equipe indígena que se soma ao projeto da escola agora, inclusive, se formou na 1ª turma. É o caso do assessor de comunicação Iago Jenipapo e da professora Jeovania Evangelista.

Ex-alunos são hoje integrantes da Escola

Hoje com 23 anos, Iago entrou na Escola de Cinema Indígena aos 16 anos sem maiores intenções, reconhece. “Eu não tinha uma relação com audiovisual, com comunicação. Estava passando por um momento delicado e vi que poderia ser algo para distrair a minha mente”, relembra. 

“Pela manhã a gente tinha teoria e, na parte da tarde, ia para a prática, fazia ensaios, ia na casa das pessoas, principalmente dos guardiões”, segue. A experiência foi central em diferentes áreas para o então adolescente.

Iago Jenipapo, hoje assessor de imprensa da escola de cinema, foi aluno da 1ª turma da formação audiovisual; na foto, em registro da época
Legenda: Iago Jenipapo, hoje assessor de imprensa da escola de cinema, foi aluno da 1ª turma da formação audiovisual; na foto, em registro da época
Foto: Arquivo do Povo Jenipapo-Kanindé / Divulgação

“Até aquele momento, eu não tinha tanta noção do que era a luta indígena. A partir da escola de cinema, tive uma paixão por audiovisual e também a noção de como o movimento e a luta indígenas eram gigantescas”
Iago Jenipapo
realizador, produtor audiovisual e assessor de comunicação

“Além da escola despertado vontade, querer e paixão pelo audiovisual e pela comunicação, ela também me engajou no movimento indígena. Hoje, sou uma liderança jovem do meu povo”, celebra.

Já para Jeovania, 36 anos, a relação com audiovisual antes da escola era “intuitiva”. “Costumava assistir e fazer vídeos e fotos como qualquer pessoa, mas já sentia que havia algo ali que me instigava — uma vontade de contar histórias e registrar olhares que normalmente não aparecem nas grandes telas”, reflete.

Jeovania Evangelista (à esquerda), com a filha: 'Audiovisual não é só registro, é construção de narrativa, é política e é arte'
Legenda: Jeovania Evangelista (à esquerda), com a filha: "Audiovisual não é só registro, é construção de narrativa, é política e é arte"
Foto: Acervo pessoal

Na experiência, define, aprendeu “a usar a câmera não só como instrumento técnico, mas como ferramenta de expressão e memória”. 

“Percebi que o audiovisual não é só registro, é construção de narrativa, é política e é arte. Aprendi a olhar para as imagens com mais consciência, entendendo que cada enquadramento, som ou corte carrega um ponto de vista”
Jeovania Evangelista
professora

Profissionalização e pertencimento

Para os dois, as experiências advindas da formação tiveram impactos em diferentes níveis, inclusive na profissionalização.

“Foi tudo através da luta indígena. Eu recebia convites muito dentro do território, até procurar mais formações. Hoje, além de eu fazer os conteúdos da aldeia, também faço de outros movimentos indígenas do estado do Ceará”, explica Iago, que enumera, ainda, atuação em trabalhos em fotografia e design gráfico.

Para Jeovania, mesmo após a formação “a escola continuou sendo um espaço de troca e referência”. “Participei de mostras e até de produção de filme, mantive contato com professores e colegas. Agora, posso dar a minha devolutiva para o meu povo”, ressalta.

Para Iago Jenipapo, a experiência na escola trouxe aprendizados não apenas sobre cinema, mas sobre a própria luta indígena
Legenda: Para Iago Jenipapo, a experiência na escola trouxe aprendizados não apenas sobre cinema, mas sobre a própria luta indígena
Foto: Lidiane Anacé / Divulgação

A afirmação da identidade indígena a partir do audiovisual também é ecoada. “A Escola ensinou mais do que técnica: ensinou sobre pertencimento, identidade e escuta. Assumir a câmera é assumir o poder de contar nossas próprias histórias”, ressalta ela.

Iago dialoga: “Além de usar como meio de trabalho, meu ganha pão, uso como ferramenta de luta não só do meu povo, mas de todos os povos indígenas. Apesar dos nossos ancestrais nunca terem visto uma câmera, um celular, é uma comunicação ancestral porque nossos corpos e nossos territórios são ancestrais”.

Aula inaugural da segunda turma da Escola de Cinema Jenipapo-Kanindé aconteceu em 29 de julho; a partir deste mês, as aulas irão ocorrer quinzenalmente, sempre aos fins de semana
Legenda: Aula inaugural da segunda turma da Escola de Cinema Jenipapo-Kanindé aconteceu em 29 de julho; a partir deste mês, as aulas irão ocorrer quinzenalmente, sempre aos fins de semana
Foto: Iago Jenipapo-Kanindé / Divulgação

As falas corroboram a defesa de Valdisia acerca da importância do olhar para o audiovisual e a comunicação a partir de dentro dos territórios indígenas.

“(Isso) está chegando com força nos territórios indígenas, principalmente depois da pandemia. Outros povos estão usando essa ferramenta, alguns com alguma carência em relação a isso, mas outros bem fortalecidos”, avalia.

“Vivemos em um mundo onde a comunicação é muito forte, principalmente na juventude. Então, usar essa ferramenta a nosso favor é muito importante para o fortalecimento da nossa luta”, sustenta.

Escola de Cinema Indígena Jenipapo-Kanindé

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