1º longa dirigido por pessoas trans no Ceará cria fantasia inspirada em projeto ambiental de Icapuí

Com direção de Noá Bonoba e izzi vitório, terror “Iguaraguá” conta história do desaparecimento de um peixe-boi que impacta a trajetória de bióloga marinha

Escrito por
João Gabriel Tréz joao.gabriel@svm.com.br
(Atualizado às 11:01)
Legenda: Primeiro longa dirigido por pessoas trans no Ceará une o ambiental e o ancestral em produção que aposta no terror como gênero
Foto: Lii Coelho / Divulgação

Ao longo deste mês de setembro de 2025, história vem sendo feita em Icapuí, distante cerca de 200km de Fortaleza. Por lá, uma equipe de cinema está gravando o primeiro longa dirigido por pessoas trans no Ceará: “Iguaraguá”, de Noá Bonoba e izzi vitório, uma fábula de terror que une temática ambiental a reflexões sobre ancestralidade.

A trama se passa na fictícia cidade cearense de Manitu, uma comunidade litorânea ligada à vida marinha. Nascida lá e cuidadora do peixe-boi Iguaraguá em um centro de preservação do local, a bióloga Aira se vê envolvida em reviravoltas ligadas a um trauma do passado quando o animal, prestes a ser colocado de volta na natureza, desaparece de repente.

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Inspiração em projeto de preservação ambiental

A ideia de “Iguaraguá” surgiu quando izzi (que assina em minúsculas) viajou para Icapuí e conheceu o trabalho de preservação de peixes-bois-marinhos realizado na praia da Peroba pela organização ambiental Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis).

“Achei muito incrível o contexto onde a comunidade local se envolve com o trabalho da ONG e comecei a pesquisar inicialmente sobre o animal. O peixe-boi-marinho foi muito citado nos tratados coloniais, confundido com monstros, morto para uso de sua gordura na produção de energia elétrica”, partilha.

Direção e roteiro do longa cearense 'Iguaraguá' são assinados por izzi vitório e Noá Bonoba
Legenda: Direção e roteiro do longa cearense "Iguaraguá" são assinados por izzi vitório e Noá Bonoba
Foto: Tainá Cavalcante / Divulgação; Divulgação

Noá se somou ao projeto quando izzi assistiu a um espetáculo teatral dirigido por ela, “Notas de uma terra devastada”, que abordava possibilidades de futuro da humanidade diante de um cenário de catástrofes naturais e causadas pela ação humana.  

“Ela também tratava de muitas questões que eu estava trazendo pro filme, então entendi que era ela a pessoa certa pra estar comigo no projeto”, segue ele.

“Começamos a escrever o roteiro em 2019. Em 2021, fomos aprovados na (lei) Aldir Blanc em um edital de desenvolvimento de roteiro e fomos morar na praia da Redonda para realizar a escrita do roteiro”, contextualiza Noá.

Terror e fantasia para imaginar futuros

A união das pesquisas e a aprovação no edital, com possibilidade de contratação de consultorias e aprofundamento sobre o trabalho de preservação animal, possibilitou a concretização do roteiro, que aposta em aspectos de fantasia para contar a história de Manitu, Iguaraguá e Aira.

No elenco, o longa cearense conta com nomes como Ellicia Maria, Ana Marlene, David Santos, Muriel Cruz, Honório Félix, Samara Garcia, Jupyra Carvalho e Marynho.

Artista cearense Ellicia Maria é um dos nomes que compõem o elenco do filme
Legenda: Artista cearense Ellicia Maria é um dos nomes que compõem o elenco do filme
Foto: Linga Acácio / Divulgação

“Nosso filme opera nas dobras dos gêneros terror, suspense e drama familiar/comunitário”, define izzi. Com o sumiço do peixe-boi-marinho, a bióloga se lança numa busca pelo animal que é marcada por mistérios e que borra fronteiras entre passado, presente e futuro. 

A aposta no terror e no uso de elementos fantásticos, explica Noá, surge “para falar de forma sensível e política sobre o Ceará”. 

“O gênero é usado mais como ferramenta de fabulação do que como regra narrativa. A fantasia, nesse caso, abre espaço para imaginar futuros outros e para dar voz a seres que habitam o subterrâneo e que desafiam a lógica hegemônica de olhar para a terra”
Noá Bonoba
cineasta

Neste sentido, a narrativa se desenvolve evidenciando a ligação entre aspectos ancestrais e contemporâneos do Estado. “A temática ambiental se desdobra não apenas como denúncia de degradações atuais do território, mas como um gesto de reinscrição das forças ancestrais que habitam o subsolo cearense”, aponta a diretora.

Uma entidade mítica e ctônica (do grego antigo khthónios, refere-se à terra e ao subterrâneo) ligada à história e ao território da cidade de Manitu, a Cobra de Sal surge como um importante símbolo deste balanço. 

Abordagem ambiental de 'Iguaraguá' reflete questões ancestrais e também contemporâneas do Ceará
Legenda: Abordagem ambiental de "Iguaraguá" reflete questões ancestrais e também contemporâneas do Ceará
Foto: Linga Acácio / Divulgação

“O filme mostra como a degradação ambiental, intensificada por práticas extrativistas e pela lógica desenvolvimentista, enfraquece a potência da Cobra, traduzindo de modo ficcional os impactos contemporâneos das crises climáticas e sociais”, avança a diretora e roteirista.

A partir dessa abordagem, o projeto espelha, na resistência e na ancestralidade daquela comunidade, “outras formas de habitar e proteger o mundo”, como diz Noá. Em diálogo, izzi adiciona: “O filme procura dizer que são os povos originários, os corpos dissidentes que vão ter as ferramentas necessárias para entrar nessa disputa”.

“O filme costura questões contemporâneas, como gentrificação, devastação ambiental e disputas territoriais, com linhas de força ancestrais, como mitos, espiritualidade e cosmologias locais, propondo uma escrita cinematográfica em que os seres ctônicos não são metáforas, mas operadores de resistência e fabulação política”
Noá Bonoba
cineasta

“‘Iguaraguá’ é um filme que vai falar sobre como conseguimos, em um mundo em colapso, reunir os saberes tradicionais, populares, empíricos, aos saberes científicos e tecnológicos para entrar numa disputa de futuro”, resume izzi.

Luta por políticas afirmativas 

As escolhas temáticas e também as formais para contar essa história espelham, ainda, um aspecto central da produção de “Iguaraguá”: além de ser o primeiro longa dirigido por pessoas trans do Ceará, ele também tem presença majoritária de profissionais trans na equipe, incluindo chefias de departamentos.

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Um dado também relevante do projeto — e inclusive crucial para que esteja sendo realizado no momento — foi a aprovação dele em um edital de produção com recursos da Lei Paulo Gustavo gerido pelo Estado.

A chamada pública contou — após demanda, pressão e “muita luta”, como ressalta Noá — com reserva de vaga para pessoas trans, além de outros grupos minorizados. Em relação à política afirmativa para as pessoas trans, editais posteriores deixaram de contar com essa conquista, segundo a equipe.

"Precisamos que políticas como essa sejam mantidas, pois elas garantem uma diversidade de corpos não apenas nas telas, mas também nas áreas técnicas e criativas dos projetos"
izzi vitório
cineasta

“Há menos de dez longas dirigidos por pessoas trans na história do cinema brasileiro. Esse é um dado mortífero. É preciso que todo o setor se engaje em uma luta política para reverter esses dados”, reforça Noá, que além de diretora e roteirista é também atriz e pesquisa transgeneridade e cinema.

“Entendemos que o foco na contratação de profissionais trans é também uma política efetiva, mas também precisamos lutar para fazer nossos próprios filmes. Essa é uma urgência que não podemos mais empurrar para depois. É necessário que todo o setor entenda e engaje a luta por reservas de vagas mínimas voltadas para a nossa população em todos os editais. Em todos os espaços”, defende.

“Filme-escola”

Ao acessarem os recursos para concretizar a produção e optarem por compor a equipe com chefias majoritariamente ocupadas por pessoas trans, “Iguaraguá” também age em prol de aspectos como empregabilidade e acesso desses profissionais a oportunidades de trabalho.

História do longa-metragem foi inspirada em projeto de preservação de vida marinha que atua em Icapuí
Legenda: História do longa-metragem foi inspirada em projeto de preservação de vida marinha que atua em Icapuí
Foto: Lii Coelho / Divulgação

“Essa sempre foi uma luta que encampei quando se fala de contratação de pessoas trans dentro do mercado audiovisual. O que ainda escutamos bastante é que não existem pessoas trans capacitadas para ocupar certos cargos”, explica Noá.

“Desde ‘Lalabis’ (curta de 2023 dirigido por Noá) venho tentando entender o processo de fazer cinema como um processo pedagógico”, compreende a artista. “Iguaraguá”, então, desponta como “filme-escola”, como adjetiva izzi.

“Muitas pessoas estão assinando suas funções pela primeira vez e isso pra nós não se apresenta enquanto problema, o que não quer dizer que nosso processo tem sido perfeito ou mais fácil”, avança o diretor. 

Os artistas ressaltam uma abertura ao acolhimento do “erro” na experiência do longa. “A cada dia percebo que nossa equipe cresce e se fortalece… Aqui temos nos dado espaço para falhar e de alguma forma, tentado acolher esses erros”, reflete.

“Muitas pessoas só precisam de um voto de confiança. Experiência só se ganha fazendo. Praticando. E em ‘Iguaraguá’ criamos esse espaço para o aprendizado”, sustenta Noá.

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