1º longa dirigido por pessoas trans no Ceará cria fantasia inspirada em projeto ambiental de Icapuí
Com direção de Noá Bonoba e izzi vitório, terror “Iguaraguá” conta história do desaparecimento de um peixe-boi que impacta a trajetória de bióloga marinha
Ao longo deste mês de setembro de 2025, história vem sendo feita em Icapuí, distante cerca de 200km de Fortaleza. Por lá, uma equipe de cinema está gravando o primeiro longa dirigido por pessoas trans no Ceará: “Iguaraguá”, de Noá Bonoba e izzi vitório, uma fábula de terror que une temática ambiental a reflexões sobre ancestralidade.
A trama se passa na fictícia cidade cearense de Manitu, uma comunidade litorânea ligada à vida marinha. Nascida lá e cuidadora do peixe-boi Iguaraguá em um centro de preservação do local, a bióloga Aira se vê envolvida em reviravoltas ligadas a um trauma do passado quando o animal, prestes a ser colocado de volta na natureza, desaparece de repente.
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Inspiração em projeto de preservação ambiental
A ideia de “Iguaraguá” surgiu quando izzi (que assina em minúsculas) viajou para Icapuí e conheceu o trabalho de preservação de peixes-bois-marinhos realizado na praia da Peroba pela organização ambiental Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis).
“Achei muito incrível o contexto onde a comunidade local se envolve com o trabalho da ONG e comecei a pesquisar inicialmente sobre o animal. O peixe-boi-marinho foi muito citado nos tratados coloniais, confundido com monstros, morto para uso de sua gordura na produção de energia elétrica”, partilha.
Noá se somou ao projeto quando izzi assistiu a um espetáculo teatral dirigido por ela, “Notas de uma terra devastada”, que abordava possibilidades de futuro da humanidade diante de um cenário de catástrofes naturais e causadas pela ação humana.
“Ela também tratava de muitas questões que eu estava trazendo pro filme, então entendi que era ela a pessoa certa pra estar comigo no projeto”, segue ele.
“Começamos a escrever o roteiro em 2019. Em 2021, fomos aprovados na (lei) Aldir Blanc em um edital de desenvolvimento de roteiro e fomos morar na praia da Redonda para realizar a escrita do roteiro”, contextualiza Noá.
Terror e fantasia para imaginar futuros
A união das pesquisas e a aprovação no edital, com possibilidade de contratação de consultorias e aprofundamento sobre o trabalho de preservação animal, possibilitou a concretização do roteiro, que aposta em aspectos de fantasia para contar a história de Manitu, Iguaraguá e Aira.
No elenco, o longa cearense conta com nomes como Ellicia Maria, Ana Marlene, David Santos, Muriel Cruz, Honório Félix, Samara Garcia, Jupyra Carvalho e Marynho.
“Nosso filme opera nas dobras dos gêneros terror, suspense e drama familiar/comunitário”, define izzi. Com o sumiço do peixe-boi-marinho, a bióloga se lança numa busca pelo animal que é marcada por mistérios e que borra fronteiras entre passado, presente e futuro.
A aposta no terror e no uso de elementos fantásticos, explica Noá, surge “para falar de forma sensível e política sobre o Ceará”.
“O gênero é usado mais como ferramenta de fabulação do que como regra narrativa. A fantasia, nesse caso, abre espaço para imaginar futuros outros e para dar voz a seres que habitam o subterrâneo e que desafiam a lógica hegemônica de olhar para a terra”
Neste sentido, a narrativa se desenvolve evidenciando a ligação entre aspectos ancestrais e contemporâneos do Estado. “A temática ambiental se desdobra não apenas como denúncia de degradações atuais do território, mas como um gesto de reinscrição das forças ancestrais que habitam o subsolo cearense”, aponta a diretora.
Uma entidade mítica e ctônica (do grego antigo khthónios, refere-se à terra e ao subterrâneo) ligada à história e ao território da cidade de Manitu, a Cobra de Sal surge como um importante símbolo deste balanço.
“O filme mostra como a degradação ambiental, intensificada por práticas extrativistas e pela lógica desenvolvimentista, enfraquece a potência da Cobra, traduzindo de modo ficcional os impactos contemporâneos das crises climáticas e sociais”, avança a diretora e roteirista.
A partir dessa abordagem, o projeto espelha, na resistência e na ancestralidade daquela comunidade, “outras formas de habitar e proteger o mundo”, como diz Noá. Em diálogo, izzi adiciona: “O filme procura dizer que são os povos originários, os corpos dissidentes que vão ter as ferramentas necessárias para entrar nessa disputa”.
“O filme costura questões contemporâneas, como gentrificação, devastação ambiental e disputas territoriais, com linhas de força ancestrais, como mitos, espiritualidade e cosmologias locais, propondo uma escrita cinematográfica em que os seres ctônicos não são metáforas, mas operadores de resistência e fabulação política”
“‘Iguaraguá’ é um filme que vai falar sobre como conseguimos, em um mundo em colapso, reunir os saberes tradicionais, populares, empíricos, aos saberes científicos e tecnológicos para entrar numa disputa de futuro”, resume izzi.
Luta por políticas afirmativas
As escolhas temáticas e também as formais para contar essa história espelham, ainda, um aspecto central da produção de “Iguaraguá”: além de ser o primeiro longa dirigido por pessoas trans do Ceará, ele também tem presença majoritária de profissionais trans na equipe, incluindo chefias de departamentos.
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Um dado também relevante do projeto — e inclusive crucial para que esteja sendo realizado no momento — foi a aprovação dele em um edital de produção com recursos da Lei Paulo Gustavo gerido pelo Estado.
A chamada pública contou — após demanda, pressão e “muita luta”, como ressalta Noá — com reserva de vaga para pessoas trans, além de outros grupos minorizados. Em relação à política afirmativa para as pessoas trans, editais posteriores deixaram de contar com essa conquista, segundo a equipe.
"Precisamos que políticas como essa sejam mantidas, pois elas garantem uma diversidade de corpos não apenas nas telas, mas também nas áreas técnicas e criativas dos projetos"
“Há menos de dez longas dirigidos por pessoas trans na história do cinema brasileiro. Esse é um dado mortífero. É preciso que todo o setor se engaje em uma luta política para reverter esses dados”, reforça Noá, que além de diretora e roteirista é também atriz e pesquisa transgeneridade e cinema.
“Entendemos que o foco na contratação de profissionais trans é também uma política efetiva, mas também precisamos lutar para fazer nossos próprios filmes. Essa é uma urgência que não podemos mais empurrar para depois. É necessário que todo o setor entenda e engaje a luta por reservas de vagas mínimas voltadas para a nossa população em todos os editais. Em todos os espaços”, defende.
“Filme-escola”
Ao acessarem os recursos para concretizar a produção e optarem por compor a equipe com chefias majoritariamente ocupadas por pessoas trans, “Iguaraguá” também age em prol de aspectos como empregabilidade e acesso desses profissionais a oportunidades de trabalho.
“Essa sempre foi uma luta que encampei quando se fala de contratação de pessoas trans dentro do mercado audiovisual. O que ainda escutamos bastante é que não existem pessoas trans capacitadas para ocupar certos cargos”, explica Noá.
“Desde ‘Lalabis’ (curta de 2023 dirigido por Noá) venho tentando entender o processo de fazer cinema como um processo pedagógico”, compreende a artista. “Iguaraguá”, então, desponta como “filme-escola”, como adjetiva izzi.
“Muitas pessoas estão assinando suas funções pela primeira vez e isso pra nós não se apresenta enquanto problema, o que não quer dizer que nosso processo tem sido perfeito ou mais fácil”, avança o diretor.
Os artistas ressaltam uma abertura ao acolhimento do “erro” na experiência do longa. “A cada dia percebo que nossa equipe cresce e se fortalece… Aqui temos nos dado espaço para falhar e de alguma forma, tentado acolher esses erros”, reflete.
“Muitas pessoas só precisam de um voto de confiança. Experiência só se ganha fazendo. Praticando. E em ‘Iguaraguá’ criamos esse espaço para o aprendizado”, sustenta Noá.