Racismo, negrofobia e morte social: quando não basta apenas a consciência
O último dia 20 de novembro foi o Dia da Consciência Negra, data que convida toda a sociedade brasileira a refletir sobre o racismo estrutural, que marca a sociedade brasileira, relembrar as lutas de resistência dos africanos escravizados e de seus descendentes, pela liberdade, por reconhecimento social, por cidadania, por direitos; e explicitar a contribuição dos negros e negras para a construção da sociedade brasileira, para a cultura, a literatura, as artes e o pensamento brasileiros.
No entanto, o racismo e a condição social do negro não são apenas questões de consciência. O racismo e a negrofobia, ou seja, o medo e a rejeição ao corpo, à pele negra, não se passam apenas ao nível do consciente, não podem ser erradicados socialmente apenas a partir de mudanças nas formas de pensamento, não podem ser combatidos apenas com uma argumentação lógica e racional.
Quando dizemos que o racismo antinegro é estrutural, não apenas no Brasil, mas em grande parte do mundo, é porque ele habita as estruturas do inconsciente individual e coletivo. A rejeição à negritude, ao ser negro, o medo de aproximação com a condição do ser negro, habita, muitas vezes, o próprio inconsciente dos militantes pela causa de combate ao racismo, habita e dilacera internamente os próprios negros.
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O pensamento moderno ocidental foi profundamente marcado pela empresa colonial e pela escravização dos negros africanos. As teorias raciológicas instituíram a raça, a cor da epiderme, as formas corporais, como critério de avaliação da própria humanidade dos humanos. As teorias evolucionistas colocaram os negros no estágio menos avançado da evolução da espécie humana e defenderam sua maior proximidade com nossa origem animal, simiesca. No imaginário ocidental houve a definitiva fusão entre a condição de escravizado e a negação da humanidade daquele que se tornava uma mera mercadoria, uma coisa, um bem móvel, uma ferramenta de trabalho, um objeto disponível, à mão, para todas as violências, simbólicas e físicas, para todas as formas de torturas e de sevícias, inclusive de cunho sexual, uma carne animal disponível para todos os prazeres sádicos e para todas as perversidades e perversões.
No Benin, os negros, antes de serem embarcados nos navios negreiros, tinham que dar sete voltas em torno da árvore do esquecimento, para esquecerem não apenas as suas terras, os seus parentes, os seus semelhantes, a sua cultura, a sua língua, mas, com esses esquecimentos, perder a própria condição humana.
Ser escravizado, tornar-se negro, pois era essa condição jurídica que conferia a própria negritude que, por seu turno, lhe servia de argumento de legitimação, equivalia a perder a humanidade, ser escravizado era uma morte social, era deixar de ter pertencimento e reconhecimento como um ser igual aos demais humanos, passando a ser algo sem nenhum direito, sem nem mesmo o direito à vida, que passava a estar nas mãos de outros. Para que a escravidão se sustentasse, era preciso todo um trabalho de construção do negro como esse outro radical da humanidade, como essa besta de carga, esse animal que, embora tivesse aparência humana, por sua cor de pele, por sua origem e sua condição jurídica, não podia merecer reconhecimento e empatia, não podia ser percebido como um igual.
A escravização de outros seres humanos requereu a construção de um imaginário, de todo um aparato simbólico em torno dessas carnes, desses seres que terminaram por gerar ansiedades, angústias e fobias diante de sua simples presença. Os negros foram associados ao reino do diabólico, dada a sua cor ser há muito utilizada no Ocidente para remeter ao reino das trevas e do pecado. As igrejas cristãs fizeram das crenças e religiões de matriz africana indícios dessa proximidade da negritude com as forças do mal. Foi um passo para que o próprio ser negro fosse visto em si mesmo como a encarnação da maldade.
A escravidão foi mais do que uma instituição que teve um final numa determinada data, a escravidão era relacional, era amparada em relações sociais e pessoais profundamente hierárquicas, violentas, desiguais e autoritárias, entre alguém considerado humano e alguém de quem era completamente retirada a humanidade, era a relação entre um proprietário e sua propriedade, sua posse, era a relação entre um sujeito e um objeto. Quando a instituição acabou as relações entre brancos e negros, entre brancos e afrodescendentes continuaram reproduzindo a escravização e toda violência, raiva, ódio, medo, subalternidade a que deu origem.
O corpo negro continuou sendo produzido socialmente por inúmeras formas de violência, desde a violência simbólica da humilhação, do desprezo, da abjeção, da injúria, do preconceito, até a violência física dos espancamentos, linchamentos, enforcamentos, castrações, assassinatos, torturas, etc. A carne mais barata no mercado de trabalho, no mercado do sexo, no mercado da exploração, no mercado da miséria, continuou sendo a carne negra. Matar e violentar uma carne negra continuou sendo visto com normalidade.
Quem é branco não faz ideia de como o corpo e a subjetividade negros são formados na luta por, antes de tudo, ter o reconhecimento como um ser humano. Não há uma pessoa negra que não tenha sido vítima de atos de racismo, pois o racismo se manifesta muitas vezes de forma sutil e até inconsciente. O racismo habita o mais profundo do ser coletivo e individual e se manifesta por palavras, ações, gestos, reações, sentimentos, emoções que, muitas vezes, fogem ao controle da consciência daquele que mais professa o discurso antirracista e de quem se diz uma pessoa não preconceituosa. Mas é o racismo que faz com que sejamos tomados pelo medo ao ver um negro vindo em nossa direção numa rua deserta, durante a noite; é o racismo que nos faz instintivamente nos agarrarmos a nossa mochila, quando um negro entra no ônibus; que sejamos tomados por certa prevenção ao ver um negro ou uma negra sentar ao nosso lado; que consideremos todo negro como uma ameaça de estupro às nossas filhas ou mulheres; que fiquemos alertas e vigiemos os passos do negro que entra na loja; que faz o policial achar que todo negro é bandido, até prove em contrário (e muitas vezes nem tempo para isso lhe é dado).
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Os negros estão aprisionados pelos grilhões cotidianos da suspeita de serem perigosos, desonestos, vagabundos, fedidos, feios, incapazes para o trabalho intelectual. Os negros têm que conviver a vida toda com a condição de fora de lugar, de algo que está no lugar errado, de não haver espaços e tempos para eles: se estão fora do lugar de subalternos e escravizados, de ferramenta de trabalho e exploração, da carne a ser seviciada e objeto de todos os desejos de violência e dos prazeres perversos e mórbidos. A educação não é lugar para eles, o pensamento não é lugar para eles, aeroporto e avião não é lugar para eles, as lojas da Zara não são para eles, etc.
É por não entenderem essa condição social do negro como um morto social, alguém que por definição é um não sujeito, que setores importantes das esquerdas considera a ação política dos negros como equivalente a qualquer outra luta dita identitária (dos indígenas, das mulheres, dos homossexuais, dos palestinos, dos trabalhadores) e, muitas vezes, secundária em relação à luta de classes. É não compreender que a ação política dos negros é muito mais radical e premente, pois eles não são sujeitos políticos a que algo falta ou que algo perdeu e o quer de volta, os negros lutam, antes de mais nada, para deixarem de ser aqueles seres a partir do qual o ser humano se define como oposição e negativa. Todos aqueles não-negros (brancos, amarelos, vermelhos, pardos, mestiços, ciganos, judeus) se definem pela distância que mantém e representam em relação ao ser negro, que é o outro sempre a ser recusado (muitos negros vivem a esquizofrenia angustiante e dilacerante de tentarem medir sua distância para o ser negro).
Se os trabalhadores são pessoas, são sujeitos que lutam contra o capitalismo, a exploração do trabalho, se os indígenas são pessoas que perderam e lutam por suas terras, se as mulheres e homossexuais são sujeitos, são pessoas que lutam por direitos, igualdade, reconhecimento, a luta dos negros começa, antes de tudo, para terem direito de existir, para serem vistos como humanos, para deixarem de ser mortos-vivos e serem mortos como carne nua. Os negros não lutam contra uma perda, lutam para deixarem de ser uma ausência, um não ser, um não vivo que é responsável por dar vida aos demais. Os negros lutam para deixarem de ser vistos e ditos como gado que se mede em arrobas, bestas que não servem nem para procriar.
Essa fala chocante do atual ocupante do Planalto foi feita em plena campanha eleitoral e não foi um empecilho para sua eleição, pois ele apenas verbalizou o que está no inconsciente nacional. A luta dos negros não é só por direitos e consciência acerca do racismo, é uma luta muito mais radical e profunda, pois lutam por arrancar dos nossos inconscientes (inclusive dos deles mesmos), de nossas subjetividades, de nossa psique coletiva e individual a mácula de desumanização, de morte social, que a escravização trouxe para as carnes nomeadas de negras, para servir de álibi para essa empresa monstruosa, que continua gerando monstros entre os negros e em nossa sociedade.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.