Padre Júlio Lancellotti mostra que amar é enxergar Deus no humano
Lembrado pelo trabalho com pessoas em situação de rua, sacerdote compartilha o que entende do amor e como vive algo tão concreto quanto revolucionário
Aqueles que quase ninguém vê são os que importam para padre Júlio Lancellotti, pároco da paróquia de São Miguel Arcanjo, bairro da Mooca, em São Paulo – cidade onde nasceu e viu a vocação florescer.
Figura nacionalmente conhecida por encampar defesa e trabalho a favor dos pobres, sujos e desamparados, para ele o amor é dedicar a vida ao outro.
Tem a ver com entrega livre, sem requisitos nem concessões, embora não menos desafios. Amar também é um descentrar de si, abrir espaço para o redor. Exige mudança e comprometimento. Em uma cultura tão autocentrada, mais ainda: vontade.
“É processo contínuo, não é estático. Não tem um momento que acontece, tem que acontecer sempre. Chega a ser conflitivo: ora você vai, ora você volta, nunca será o mesmo”, reflete.
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Das memórias dos primeiros anos, recorda quando estava no seminário, em Bragança Paulista, e precisava ligar para a família. Demorava horas.
O aparelho, movido à manivela, necessitava que uma telefonista atendesse e transmitisse a ligação. Chegava a ser engraçado. Quando passeia por essa lembrança, o sacerdote não deixa de traçar paralelos com a própria filosofia de vida e tempo que cultivou em si. Tem a ver com fluxos: uma vez que tudo muda no mundo, o amor precisa encontrar espaço para caber.
“O amor é dinâmico, muda à medida que os conflitos aumentam, a população, a repressão, a violência. Quando tudo isso fica maior, também aumentam a generosidade, a solidariedade, a misericórdia, a compaixão”. Talvez seja esta a maior prova do gostar: encontrar o divino nas sombras e luzes do humano. Inspirar qualquer tipo de paz, de sentido.
Não é fácil. Lidar com os dilemas da população em situação de rua e, sobretudo, com quem age contra ela, é missão hercúlea. Ataques frontais a padre Júlio se tornaram frequentes nos últimos anos, muito em virtude da polarização política nacional e de visões distorcidas sobre o papel da Igreja e dos cristãos no tecido social brasileiro.
Ele não desiste, porém. Acredita que nenhum de nós pode dizer que está pronto. Nenhum de nós aprendeu a morrer. É como nasce a extraordinária chance para perceber o amor com mais nitidez no cotidiano. Fazer valer o versículo da primeira carta de São Paulo aos Coríntios – espécie de lema do religioso: “Deus escolhe o que é fraco para confundir o que é forte”.
“Isso me guia, mas você não vê o amor com nitidez todos os dias. Às vezes, sim, ele é bem nítido, quando se está mais fragilizado ou discernindo. A força dessa busca e desse ensinamento está aí. A gente precisa estar atento”. Vigilante inclusive para quando o amor balançar. Feito tudo na vida, ele também treme, se confunde, vira do avesso.
Para padre Júlio, essa turbulência é resultado de idealizações – quando, na verdade, amar envolve concretude, fisionomia, nome e circunstâncias, bem distante de algo etéreo. “Às vezes você idealiza, esperando uma resposta, mesmo que ela não venha. Na Pastoral do Povo da Rua, é possível sentir esse amor concreto de diferentes formas. Afinal, é uma população também atingida pela ideologia dominante, pelo egoísmo, pelo individualismo, por várias situações”.
Não são anjos nem demônios: pessoas. Tudo aquilo que perpassa a vida de cada um reverbera na deles também – medo, alegria, fome, coragem, fúria, disposição. Essa visão tão profunda quanto humana traz a padre Júlio duas responsabilidades: a de continuar os projetos e ações que já iniciou; e ter a plena visão de que o amor não é unanimidade. Também traz divisão.
“Se você ama aqueles que são rejeitados, você vai ser rejeitado; se ama os que são derrotados, será derrotado também. Segundo um biblista que gosto muito, o amor é injusto. Ele diz: ‘Se é justo, não é amor’. Justiça tem a ver com o que é seu de direito, que você merece. O amor está em outra faixa: algumas coisas não são nossas, não merecemos, mas precisamos”.
A fala é lúcida o suficiente para perceber que ele também é idealizado por vários Brasil afora. Acham que o sacerdote é capaz de tudo. Não é. “Lembro que um bispo muito amigo, Dom Celso Queiroz, dizia: ‘O tempo vai passando, e a gente vai perdendo: velocidade, acuidade, visão, audição, certas percepções’. Então tem coisas que a partir de determinado momento da vida, a gente vai perdendo”.
Felizmente, há sonhos. Ele não diz quais. Apenas que tem pesadelos na mesma frequência com que deseja realizar passos. Crê que todos sonhamos – embora lembremos mais das imagens que moram na franja da consciência – e quer ter tempo para continuar o que iniciou.
“Espero, trabalho e luto para que a vida seja mais feliz e digna para todos. A gente nunca sabe quanto tempo tem. Na dúvida, fica a intensidade de cada instante. Ainda vamos aprender a morrer, é um aprendizado único e há um momento único de cada um”.
Esta é a história de amor de padre Júlio Lancellotti pela humanidade. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.