Cartas encontradas em casarão de Pacoti revelam amor proibido e intimidades de ex-prefeito da cidade
Mais de 500 correspondências do acervo do Sítio São Luís, zona rural do município, expressam modos e costumes do início do século XX e testemunham como o amor resiste para acontecer
Esta é uma história no coração da Serra de Baturité. Conecta-se ao Sítio São Luís, zona rural de Pacoti, a 100 quilômetros de Fortaleza. Endereço imponente e bonito, guarda segredos. Alguns dos mais preciosos – e por que não tocantes – revelam o amor na condição de resistente. Às vezes, para florescer, ele precisa enfrentar.
Início do século XX. Luiz Cícero Sampaio (1900-1965) – proprietário rural, advogado e ex-prefeito de Pacoti – era jovem quando se ausentou da cidade natal para cursar a Faculdade de Direito do Ceará, na Capital. Ficou de 1914 a 1921. Longe, a única forma de se comunicar era por meio de correspondência postal. Gostava disso, sobretudo porque havia romance.
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Entre as cartas do pai, da mãe, de primos e colegas da antiga escola, muitos bilhetes expressavam saudades, marcavam encontros e passeios. Utilizavam-se de pseudônimos para se concretizar. “A sua Cotovia”, dizia um. “O seu Rouxinol”, demarcava outro. Trato delicado que logo estaria no epicentro de uma proibição.
Isso porque linhas escritas por Alice Lucena – um amor proibido vivido por Luiz – foram interceptadas pela mãe do rapaz, dona Mará. O motivo? A senhora dizia não concordar com “namoro carteado”, isto é, à distância, por meio de cartas. O correto e moral, para a época, seriam encontros presenciais e sob a tutela dos pais.
A estratégia encontrada pelo casal para burlar a interceptação do correio e a curiosidade dos genitores calhou de ser engenhosamente simples. Luiz enviava as cartas para Alice dentro dos envelopes endereçados a um amigo, Maciel, cujo nome passava ao largo de qualquer desconfiança – uma vez este compor a lista rotineira de colegas correspondentes.
A simulação envolvia Luiz e Alice terem inventado que o namoro havia acabado, justificando o aparente fim da prática missivista. Maciel, no entanto, ao estar com os textos em mão, alertava: “Logo que recebas esta, rasga!”. A carta, enquanto suporte físico de informação, precisava ser destruída para não deixar provas do que, na realidade, estava sendo feito.
O costume ia na mesma toada das correspondências de amor no geral. Após o fim de relacionamentos, elas eram queimadas como que para igualmente extinguir, ou minimamente aplacar, todos os sentimentos que carregam, as sensibilidades que traduzem. Pouca coisa, porém, diminui o prazer e a frescura de se saber destinatário de envelopes carinhosos.
Maciel entendia isso tão bem que, no típico papel de alcoviteiro e movido pela lealdade a Luiz Sampaio, deslocava-se até o Sítio Triumpho, a alguns quilômetros do centro urbano, onde morava Alice. A percepção das reações da moça no ato da entrega das cartas – bem como a conversa despreocupada, com perguntas e queixas – era vivência exclusiva dele, uma vez Luiz se encontrar distante.
A cena pode ser imaginada por um poema de Francisco Silvério, nascido em 1860 na Serra de Baturité. Intitulado “Entrega d’uma carta” e escrito em português arcaico, começa assim: “Ella estava já à tardinha/ Sentada junto a janella/ - Cantando em nota singela/ Uma engraçada modinha.// Em seu crochet se entretinha/ Nem viu que ia chegando,/ Somente de vez em quando/ Endireitava a pastinha.”
E continua: “Cheguei-me e disse: - Estás linda!/ Sorriu-se tremula ainda,/ como a flor que a aragem beija;/ Dei-lhe a carta, e com enleio/ Diz ella, ponda-a no seio:; Não quero que a mamã veja”.
A inexistência de correspondências de Alice no acervo de Luiz impede o avanço para o desfecho desse episódio, infelizmente. As cartas foram destruídas pela mãe ou a pedido da própria Alice? Pelo tempo ou pela seleção pessoal do arquivo? Teria Luiz “levado serrote” da namorada, conforme alertado por Maciel? Não se sabe.
O fato é que se o namoro por carta era reprimido pelos pais, havia algo mais profundo ligado às respectivas famílias. E aí é possível traçar um paralelo sobre o lugar social de Alice. Órfã de pai, a “filha da viúva” não se adequava ao ideal materno de namorada para Luiz.
A moral ressabiava-se de que quando uma mulher passava à chefe de casa, a ausência do marido desestruturava a economia e a educação familiar. A falta do pai, acreditava-se, implicava na nula “vigilância” da conduta das filhas mulheres – algo corroborado na visão de dona Mará pela certa liberdade desfrutada por Alice, naquele período, de trocar cartas com Luiz.
Todas as nuances dessa montanha-russa emocional é contada em “Práticas Missivas Íntimas: Correios, sensibilidades e sociabilidades em Pacoti - CE (1914-1920)”, dissertação de mestrado do historiador e professor Levi Jucá pela Universidade Estadual do Ceará. O trabalho nasceu, em primeiro lugar, da pesquisa histórica sobre Pacoti e região do Maciço de Baturité, a qual ele vinha se dedicando desde 2007.
Uma das descobertas foi encontrar um precioso acervo de mais de 500 cartas íntimas pertencentes ao acervo do Sítio São Luís, verdadeiro ícone do patrimônio cultural de Pacoti, enquanto remanescente do período áureo da cafeicultura cearense do século XIX.
A família proprietária cedeu-lhe o acervo para que pudesse organizá-lo. Praticamente todas as cartas encontradas são destinadas ao Doutor Luís Cícero Sampaio, e versam sobre temas distintos. Além dos bilhetes de amor, havia cartas paternas tratando de negócios com o café e dos engenhos de cana-de-açúcar da serra, além de questões relativas a secas, chuvas etc.
“As cartas maternas, por sua vez, tratavam de assuntos de foro íntimo, como quem nasceu, morreu, que festas aconteceram, que dramas foram encenados, as discussões sobre namoro, as saudades ou revelando os mimos de mãe. Notas sobre os doces remetidos juntos da carta e sobre as latas que deveriam ser devolvidas para que ela pudesse enviar mais tijolinhos de laranja na próxima remessa também fazem parte”, conta Levi.
Tudo isso revela a vida privada e como se davam as sociabilidades e sensibilidades entre o interior e a capital, exibindo uma Pacoti rural do início do século XX – embora com alguns ares de modernidade, a exemplo da chegada do telégrafo, a fotografia e o envio mais rápido das encomendas para Fortaleza por meio da Estrada de Ferro de Baturité.
Sendo o município do Maciço de Baturité a sede de outra história de amor incrustada na paisagem – quem não lembra da Capela de Donaninha, contada nesta mesma coluna – é possível dizer que a cidade tem vocação para o romantismo? Levi aposta.
“O clima bucólico e, porque não dizer, melancólico, que a Serra de Baturité favorece com clima ameno, densas matas e um anoitecer precoce devido ao relevo montanhoso, estimula o saudosismo – especialmente entre amantes que se encontram distantes. Por outro lado, o clima e as belezas naturais também são um cenário perfeito para o romantismo, para se viver uma bela história de amor”.
Ele mesmo conheceu a esposa em Pacoti, de onde ela é natural. Namoraram, trocaram cartas e hoj e residem na cidade com dois filhos, frutos do casamento de 15 anos. Um desfecho bastante diferente de Luiz e Alice, interceptados pelos dilemas da sociedade.
Estariam juntos hoje em algum lugar do cosmos? Continuam a dividir correspondências? Que grafia possuem, o que contam um ao outro? O amor, quero acreditar, continua resistindo.
Esta é a história de amor de Luiz Cícero Sampaio, Alice Lucena, as cartas trocadas por eles e o carinho do professor Levi Jucá pelos causos da cidade de Pacoti (CE). Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.
O texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor