Por que Sérgio Reis ou Eric Clapton não devem ser tratados como café com leite

Veteranos da música foram "cancelados" por declarações que, num caso, disseminavam fake news e, no outro, atacavam a democracia

Legenda: Sérgio Reis e Eric Clapton: prestígio artístico não garantiu aos veteranos o direito de falar o que quiserem
Foto: Divulgação

Meu sobrinho Pedro devia ter uns 8 anos quando subiu o elevador indignado com os amigos do prédio. Todos mais velhos, queriam que ele fosse o café com leite na brincadeira. Todo mundo conhece a expressão: você brinca junto de todos, mas as sanções do jogo não se aplicam a você. Sem risco, a brincadeira perde muito da graça. Tentei acalmá-lo e evoquei a voz da experiência.

"Aproveite enquanto pode. Quando tiver a idade do seu tio, você vai querer ser café com leite e a vida não vai deixar", disse para o menino emburrado. Palavras que bem poderiam ser úteis a uns marmanjos por aí.

É certo que a vida dos artistas endinheirados pode ter uma ludicidade que falta à vida adulta normal. Mas isso não garante ao famoso os diretos formais e informais das crianças.

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Recentemente, Sérgio Reis evocou o direito de gozar da condição de café com leite. Até ficou de cama quando foi lembrado que não é assim que as coisas funcionam. No mês passado, outro músico veterano, o inglês Eric Clapton tomou um susto ao descobrir que seus erros de homem não seriam abonados por ser ele um deus da guitarra.

Sérgio Reis mandou um áudio descrevendo o passo a passo de como iria, apoiado por figurões do agronegócio, mobilizar caminhoneiros a parar o Brasil; e coagir o Senado a aprovar o afastamento de todos os ministros do STF. "Se em 30 dias eles não tirarem aqueles caras, nós vamos invadir, quebrar tudo e tirar os caras na marra", proferiu.

À tempestade nas redes sociais, de gente revoltada com seus planos golpistas e antidemocráticos, seguiu-se um maremoto fora delas: virou caso de polícia. A Federal ouvirá o cantor na semana que vem. Reis disse que foi mal compreendido, que era uma brincadeira. Deveria lembrar que muitos passam trote para os serviços de emergência para se divertir à custa dos atendentes, mas quem escreveu o Código Penal não tinha o mesmo senso de humor.

Pinga ni mim, mas com moderação

Sérgio Reis errou duas vezes. Primeiro, por acreditar que, como artista famoso, estaria sempre diante de uma plateia pronta a aplaudi-lo, fosse qual fosse sua performance. Esqueceu que o palco ali era outro. Nem todo mundo que assistiu ao número era seu fã ou apreciava o repertório escolhido.

O segundo erro foi o de acreditar que exista mesmo uma instituição chamada "cidadão de bem", portador de um passe "all inclusive" para cometer toda sorte de absurdos, como compensação a tudo que o tem desagradado. Para usar as mesmas expressões simplórias, há de se fazer lembrar que ser um cidadão de bem não é uma condição existencial imutável: você é cidadão de bem até deixar de sê-lo.

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Um exemplo: que a lei brasileira, hoje, facilite o acesso às armas, não implica que o sujeito possa sair por aí exibindo seu trabuco na janela do carro; intimidando o outro ao acarinhar a corona saindo das calças; ou fazendo vídeos à Talibã, arrotando frases de heróis brucutus de algum reacionário filme de ação dos anos 80. Tais papelões não são apenas ridículos e cafonas, são criminosos. Coisa de bandido, segundo o glossário do cidadão de bem.

A vida de adulto não é feita de café com leite. É um mundo onde se permite bebidas fortes. Pinga, como Sérgio Reis cantou em um antigo sucesso. O cantor, suponho, deve saber que aqueles que exageram costumam acordar nos braços da ressaca. 

Um deus contra a ciência

Em junho, Eric Clapton foi cancelado. Como músico, o inglês construiu uma carreira habitando as esferas celestes do blues e do rock. Um deus, de fato, como costumou ser chamado. Mas essa divindade se relevou um ruidoso opositor da vacinação anti-Covid-19.

Deu entrevistas a canais obscuros, espalhando boataria como se fossem verdades ocultas que não querem que você saiba. Enquanto veteranos como Bob Dylan e Paul McCartney aproveitaram a parada forçada da pandemia para compor e gravar novas, Clapton preferiu se alinhar à cruzada anti-vacina e se dedicou a espalhar teorias da conspiração fajutas.

Sua temporada antivax inclui outras terraplanices e até uma canção gravada com outro veterano, o irlandês Van Morrison. Contudo, versão tiozão do WhatsApp nem de longe é a pior do guitarrista.

Legenda: Van Morrison e Eric Clapton: ídolos do blues e do rock contra a vacina
Foto: Divulgação

Em um show em 1976, Clapton defendeu uma "Grã-Bretanha branca" e mandou os estrangeiros saírem dali - não só da plateia, do país. Se até hoje ele nega ser racista, sua admiração pelo ex-primeiro-ministro britânico Enoch Powell seguiu intocada. Powell foi um reacionário anti-imigração, com inclinações fascistas. Clapton, vale lembrar, se notabilizou com guitarrista de blues - uma tradição musical estrangeira e negra. Ser racista, num caso assim, seria uma contradição em termos, não apenas criminoso como cínico.

Há mais. O deus da guitarra também foi um marido abusivo, que batia em Pattie Boyd (com quem foi casado de 1979 a 1989) e a estuprava, quando chegava em casa carregado de álcool e drogas. Não se trata de boatos maldosos de alguma biografia não-autorizada. São confissões do próprio Clapton, em entrevista ao jornal inglês Sunday Times, de 1999.

Clapton foi do hall da fama ao dos cancelados. Não recuou, como tantos, nem buscou descansar a imagem ou atender aos anseios éticos de seus críticos. Semana sim, semana não, ele reaparece entoando o mantra anti-vacina.

A lógica do cancelamento

Cancelar a obra junto do ser humano que a criou é um dilema que parece não ter solução.

Isso se dá, em parte, porque o próprio cancelamento é uma instituição contraditória e paradoxal. Quem apedreja acredita que, por meio dele, é feita a justiça. Que o sujeito seja demitido, ignorado, sofra e tome chá de sumiço. Ele está terrivelmente próximo a mecanismos punitivos bastante primitivos, como o linchamento ou o encarceramento perpétuo. É possível uma recuperação do cancelado? Acaso, em algum momento, pode dizer que cumpriu sua pena? 

Mas tampouco se pode exigir um tipo de imunidade parlamentar para as celebridades. A verdade é que, se os artistas misturam vida pessoal e persona pública, em benefício próprio, como querer que o público desfaça esse laço?

Clapton certamente não foi entrevistado como um idoso anônimo que tomou vacina, mas com o Deus da guitarra, capaz de ser ouvido por milhares de pessoas nos quatro cantos deste mundo esférico. Nem Sérgio Reis acreditou que seria ouvido por seu histórico como liderança política. Em ambos os casos, só pareceu uma má ideia quando deu errado.

Pelo jeito, um achou mesmo que era um deus e o outro, um caubói justiceiro. O primeiro existindo para além da ciência, o segundo, das leis de seu país.

Ou, pelo menos, agora que a confusão lhes bateu à porta, é no que querem que você acredite.



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