Paranoia é uma patologia inscrita no vocabulário do senso comum. Sobretudo no cinema, a ficção nos forneceu histórias exemplares, simplificações que embasam o leigo. Com propriedade fajuta, esse faz seu diagnóstico de indivíduos, de instituições, da própria sociedade e até da história. Busca-se sempre os sintomas do delírio e da mania de perseguição. O Brasil de 2021, nessa perspectiva, é paranoico. Trata-se de um caso severo, possivelmente irrecuperável.
São os comunistas que conspiram e planejam uma invasão do país, como uma ficção científica dos anos 1950; é a nanotecnologia maléfica fabricada em laboratórios do Oriente, mecanismos de espionagem e de escuta, que ainda convertem pessoas em ímãs ambulantes; é a vacina de mentira que não protege da doença que não existe; é a economia que melhora, enquanto a fome decola num foguete (abastecido com gasolina a R$ 6,6/l).
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O caso brasileiro, ao que parece, só parcialmente pode encontrar socorro na psiquiatria e na psicanálise. Para compreender a abdicação coletiva da razoabilidade e o desprezo pela realidade, é indicado recorrer à filosofia, onde ela discute ética; para o tratamento, a bibliografia incontornável é mesmo o Código Penal.
Quando a desrazão tem sintomas inegáveis de oportunismo e charlatanismo, a sabedoria e a ignorância populares convergem ao receitar um tratamento: remédio para doido, é doido e meio.
A paranoia parece um universo existencialmente muito rico e demasiado complexo, ambíguo e interessante para ser evocado a explicar ideologias tão débeis, maluquices que exigem tratamento a base de água fria.
Descrita pela primeira vez, por médicos franceses, há mais de 250 anos, ela fascinou homens e mulheres da ciência e das artes, e parte deles mal conseguiu disfarçar a admiração por esse estado da mente. Viram nela, por vezes, a capacidade de clarividência e uma liberdade de certos tabus. O mais transgressor dos autores da geração beat, William Burroughs (1914 - 1997), dizia que o paranóico é um sujeito que "sabe alguma coisa do que está realmente acontecendo" (o psicótico, segundo ele, seria aquele que sabe exatamente o que está rolando).
Desconfiado do Governo dos EUA, assolado por forças políticas reacionárias, Norman Mailer (1923 - 2007) descrevia a paranóia como "a faculdade mais útil ou a mais destrutiva do espírito humano". "Nunca se sabe quando é dedicada a você ou à sua destruição", completava, destacando a ambiguidade desse quadro clínico.
Burroughs e Mailer foram homens instáveis, com episódios de violência, de abuso de drogas legais e ilegais e gosto pela transgressão. O elogio que fazem a um estado patológico deve ser lido, pelo menos em parte, a partir da disposição que tinham para o confronto das ideias prontas, do bom-mocismo social, que sob camadas de cinismo, é violento e intolerante à diferença.
Mas é na companhia de Daniel Paul Schreber (1842 - 1911), autor de um livro só, que se pode ter o mergulho mais profundo e revelador sobre o tema, incluindo suas implicações existenciais, políticas, espirituais e éticas. Schreber não foi um estudioso dos estados paranoicos; foi, ele mesmo, alguém que conviveu com vozes, com visões e com ideias apartadas do real.
"Memórias de um doente dos nervos" (com uma nova edição nas livrarias, pela Todavia) é o relato das experiências e das revelações que Daniel Paul Schreber, um juiz alemão culto e respeitado, teve ao passo que sua saúde mental foi se degenerando. O autor descreve o que passou nos sanatórios e reflete sobre o que lhe diziam vozes extra-mundo, em sua ambígua relação com esferas celestes.
“Sou também apenas um homem e, portanto, preso aos limites do conhecimento humano; só não tenho dúvida de que cheguei infinitamente mais perto da verdade do que os outros homens, que não receberam as revelações divinas”, escreveu Schreber, num relato que faz o leitor experimentar suas lentes alucinadas, capazes de enxergar perseguições e tramoias num mundo que, como um boneco, é controlado por fios invisíveis.
Sigmund Freud (1856 - 1939) recorreu ao livro para desenvolver as teorias do ensaio “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia”, o principal que escreveu sobre o tema. Em correspondência com companheiros de ofício, o psicanalista austríaco brincou que "Schreber deveria passar a professor de psiquiatria e diretor de uma clínica psiquiátrica".
"Todo o livro de Schreber", escreveu Freud, "é permeado pela amarga queixa de que Deus, habituado ao trato com os mortos, não compreende os vivos". É preciso não confundir as coisas: esse é menos um comentário teológico do que a constatação de nosso destino na Terra. Um mundo que parece vocacionado ao delírio e, com frequência, se desprende do real e da razão. Com a ajuda de loucos fajutos, que veem no caos e no fim do mundo a oportunidade para sua perversa definição de felicidade.
"Memórias de um doente dos nervos", de Daniel Paul Schreber. Edição da Todavia, com tradução de Marilene Carone; e ensaios de Elias Canetti e Roberto Calasso. 480 páginas, em formatos físico e digital.