O humor autodepreciativo do brasileiro é a matéria-prima do meme "this represents Brazil more than soccer and samba" (isso representa o Brasil melhor do que o futebol e o samba). A peça é apresentada a um estrangeiro fictício, como um atalho para se compreender nossa singularidade nacional para além dos símbolos culturais mais famosos do país, já devidamente convertidos em clichês.
A piada, claro, é voltada para o próprio brasileiro, o único a ter referências para interpretar o significado de cada peça e compreender a ironia de alguém tê-las escolhido. Acaso o Brasil precisasse de uma tradução do que é o país para mostrar a alguém de fora, bastaria que alguém apresentasse ao gringo um clássico da literatura, comodamente traduzido na maior parte dos idiomas. Falo de Franz Kafka (1883-1924).
Como se sabe, o escritor não era brasileiro, mas nascido no então Império Austro-Húngaro.
De início, não foi Kafka quem se aproximou de estéticas ou imaginários brasileiros (ainda que outro meme o inclua entre os “cearenses famosos”). Foi o Brasil que – primeiro, pouco a pouco, e, nos anos recentes, aceleradamente – se fez kafkiano.
Para o dicionário Houaiss, kafkiano é uma palavra derivada do sobrenome do escritor que “evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, especialmente em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade". Em inglês, o Oxford define “kafkaesque” como “reminiscente das qualidades opressivas ou de pesadelo do mundo ficcional de Franz Kafka”.
Não é preciso ir longe para reconhecer nossas qualidades kafkianas. O livro mais conhecido do autor, “A metamorfose” (1915), parece falar com o presente. É como uma fábula, com tudo que uma tem direito: um animal que, se não fala, certamente pensa; e, nas entrelinhas, uma crítica ao comportamento dos homens e seus costumes.
É um livro-gatilho. Dispara inquietações relacionadas às palavras-chave destes 15 meses de maus augúrios: doença, apatia, pobreza e morte.
A trama é bem conhecida: depois de uma noite de sonhos intranquilos, Gregor Samsa acorda para uma realidade ainda pior do que seus pesadelos. Não, não é uma pandemia à solta e com devotos. No caso de Samsa, ele se transformou em um inseto gigante. O absurdo de sua nova condição não o livra das ansiedades cotidianas. Ao contrário, as agrava. Se preocupa com a hora, com as tarefas por fazer, com o dinheiro que deixará de ganhar para bancar a casa, com os pais e a irmã mais nova.
A trama se desenrola quase inteiramente entre as quatro paredes do quarto do protagonista. Uma espécie de quarentena. Sem culpa pelo mal que sobre ele se abateu, Samsa sofre menos da “doença” do que da indiferença e do ressentimento contra ele. O inseto vale pouco, não por sua condição monstruosa, mas por ser, agora, incapaz de render algo à família. É imputada-lhe a culpa que certamente não tem.
Outra das histórias-gatilho de Kafka perpassa o universo da justiça e das leis. Das instituições que funcionam como máquinas de morte.
Em "Na colonia penal" (1919), o autor descreve a visita de um estrangeiro a um país não nominado. Lá, ele assiste à demonstração de um aparelho de tortura, usado na punição de pessoas que não foram julgadas e a quem não é dado conhecer por quais crimes foram condenados. Há mesmo uma dimensão de espetáculo nesta prática, quando até crianças endomingadas acompanhavam a excruciante execução.
A atmosfera é de paranoia; a compreensão entre as pessoas, precária; e a ameaça, constante. Talvez não tenha ficado claro: ainda estou falando do livro.
Prisões arbitrárias, violências praticadas por forças de segurança e repressão, sem qualquer amparo nas leis e em algum princípio humanístico, a renúncia a se reconhecer o direito à vida. É o resumo daquela história de Kafka ou um breve retrospectivo do noticiário?
Talvez nem todos reconheçam as brasilidades de Kafka ou o que há de kafkiano no Brasil. De toda forma, o autor é um clássico e sua leitura certamente tem algo a nos dizer. Na definição de Italo Calvino (1923-1985), clássico é "aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível".
O próprio autor responde, do passado, a pergunta de "por que devemos ler Kafka?". Em uma carta de 1904, escrita a seu amigo Oskar Pollak (1883-1915), ele explicava que "precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que nos angustiem profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos".
Kafka é um autor do diagnóstico, nunca do prognóstico e da cura.
O que há de mais kafkiano no Brasil é justamente o elemento mais sinistro das histórias do escritor tcheco: a apatia diante do absurdo. "Quando questionam e confrontam seus infortúnios, os personagens de Kafka o fazem como se estes fossem ordinários, normais. Seus esforços são tão eficientes quanto uma nota de repúdio.
O terror da imaginação de Kafka pode ser interrompido, fechando-se bruscamente as páginas do livro, desligando a tela do e-reader. Claro, é possível que as imagens do absurdo e da alienação ainda acompanhem o leitor em seus sonhos intranquilos. Já o terror na vigília da realidade kafkiana, porta afora e cabeça adentro, seguirá por um tempo difícil de precisar.
Ao alcance de cada um, está a recusa intransigente de se comportar como os personagens de Kafka, que oscilam entre a apatia e o ódio. Gente que deveria existir apenas na ficção, gente que olha para seus pares sem ser capaz de distinguir homens de baratas, tomando o fim destes tão desejável quanto o daquelas.