Perda gestacional e neonatal: 'Eu me sentia só, em um luto não validado pela sociedade'
Quatro mães contam como enfrentaram o luto e a solidão após perderem seus filhos ainda na barriga ou antes de completarem um ano. São histórias para acolher a dor das mães de anjos
De repente, elas foram arrastadas para a escuridão. Tornaram-se "mães de anjo" porque perderam seus filhos na barriga ou antes de completarem um ano de idade. Viram o desejo da maternidade se esvair, levando amores que elas ainda lutam para reencontrar em um luto que a sociedade não reconhece.
Enquanto vivenciam uma dor profunda, escutam que sua tragédia particular foi desejo de Deus, um destino melhor para filhos que poderiam ter de viver com sequelas. Ouvem que não devem ficar tristes porque logo poderão engravidar de novo. Sofrem ao ver o mundo querer substituir seus filhos para reduzir uma dor que, elas sabem, permanecerá ali. São histórias que mostram a distância que ainda precisamos percorrer, nos atendimentos da saúde e na vida, para aprender a acolher essas mães.
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Michele: "As pessoas evitam falar dos nossos filhos para nos proteger, e é isso que mais machuca"
A maternidade não era um sonho para Michelle Fernandes, pelo menos não até descobrir que estava gerando uma vida. Descobriu que estava grávida em abril de 2022 e sentiu que seria menina, a quem daria o nome de Mariana por conta de uma história que certa vez ouviu na igreja. Todos os dias, Michelle cantava para ela a Consagração à Nossa Senhora. A bolsa rompeu com 21 semanas de gestação durante uma viagem à Guaramiranga. Na maternidade, Michele ouviu que deveria induzir o parto para não colocar sua vida em risco, mas decidiu continuar a gestação.
"Aquela foi a notícia mais difícil que eu tinha ouvido até então. Eu não conseguia escolher interromper a gestação, para mim era como se tivesse dizendo um não para minha filha", conta. Vivenciou então uma rotina difícil no hospital, com exames, noites sem dormir, medo e aflição. "Mas também a esperança e o amor que eu nunca havia experienciado igual", diz.
Quase duas semanas depois, com a infecção aumentando, entrou em trabalho de parto por 12 longas horas. "Mariana veio a esse mundo no seu tempo e sem nenhuma intervenção. Tão pequena e tão forte, tão linda e tão amada. Se pudesse escolher, teria dado minha vida pela dela", ela diz. Mariana viveu apenas dois dias, e Michelle mergulhou em um luto solitário.
"É uma dor que lhe rouba os sentidos. Eu me sentia só, em um luto não validado pela sociedade. As pessoas evitam falar dos nossos filhos para nos proteger, e era isso que mais machucava. Mariana passou dois dias me presenteando com seu amor, sua força e sua garra. Me ensinando a respeito do amor, da fé, da esperança e principalmente, que não temos o controle de nada. Ainda venho aprendendo sobre isso"
Evellyn: "Depois de 11 paradas, meu guerreiro descansou, deixando um vazio que nunca será preenchido"
Um amadurecimento precoce da placenta levou Evellyn Moreira para uma cesária de emergência com 38 semanas de gestação. Arthur nasceu em um parto tranquilo e tudo ficou bem. Aos três meses, teve uma bronquiolite e recebeu alta. Mas semanas depois os médicos o diagnosticaram com pneumonia e disseram que ele precisaria de um procedimento para colocar um acesso central.
"Quando recebi meu filho, ele já estava entubado e com dificuldades para respirar. Ali meu chão começou a abrir", conta Evellyn. "Depois de 11 paradas, meu guerreiro descansou, deixando um vazio que nunca será preenchido", diz.
Em meio à dor, uma enxurrada de comentários que deveriam consolá-la a machucavam ainda mais: "Foi melhor assim do que se ele tivesse ficado com alguma sequela", "Daqui a pouco vocês vão ter outro filho", "Deus quis assim". Ela conta que se sentia perdida porque não encontrava com quem compartilhar a dor sem ser julgada ou vista como "coitada".
"Fui extubada no dia que minha filha faleceu. Fiquei sabendo da morte dela dois dias depois"
Camila Leal perdeu duas filhas, e não há palavra que abarque o horror de sua dor. Maria Júlia nasceu no final de uma manhã de domingo com 27 semanas de gestação depois da mãe perder todo o líquido amniótico e ter prolapso de cordão. Passou apenas quatro horas e meia viva. No ano seguinte, Camila descobriu que estava grávida de Maria Flor. Seguiu numa gestação tranquila até a trigésima semana, quando foi infectada pelo coronavírus e precisou ser internada com 50% dos pulmões comprometidos em 2020.
O quadro piorou, e novamente Camila precisou passar por uma cesárea de emergência. Foi entubada para recuperar a capacidade de respirar sozinha enquanto a filha, prematura, lutava para viver. "Fui extubada no dia que a Maria Flor faleceu. Fiquei sabendo da morte dela dois dias depois, quando eu fui transferida para o quarto", conta. Apesar de toda a dor, Camila diz ser grata pelas poucas horas que viveu com as filhas. "Entendo que essa é a história delas e que eu não posso mudar", conta.
Sheila: "Peguei meu filho sem vida nos braços"
Depois de três fertilizações in vitro, Sheila Takaki realizou o sonho de engravidar de forma natural. Mas na nona semana de gestação, o chão se abriu. A ultrassonografia de rotina indicava que já não havia batimentos cardíacos no feto. "Foi o fim de um sonho", conta. Um ano depois, ela engravidou novamente. A gestação evoluiu, mas os exames de rotina indicavam que o bebê tinha os batimentos cardíacos lentos. "Nosso chão abriu. A cardiopatia era tão complexa que o médico falou que não sabia se ele ia sobreviver até o nascimento", conta.
Ele sobreviveu. Mas no primeiro mês de vida precisou passar por duas cirurgias. Recebeu alta aos três meses, dependendo de oxigênio e se alimentando por sonda. "Foi muito difícil, tive muito medo", conta Sheila. Otávio precisava ser aspirado todos os dias. Se no hospital a mãe era poupada de ver o procedimento, precisou fazer sozinha em casa de um dia pro outro. Cada mês era uma vitória. "Com 10 meses, na hora da cirurgia definitiva ele se foi… e me levou junto. Lembro tanto daquele dia. Peguei meu filho sem vida nos braços", conta.
Camila, Evellyn, Sheila e Michelle conseguiram elaborar o luto em um grupo de mães de anjo chamado "Da Dor ao Amor", que faz reuniões mensais para compartilhar histórias e acolher. O grupo foi idealizado por Lucas Ramalho e Tatiana Viana, que, ao passar, em março de 2019, pela perda da filha Beatriz (ainda na gestação, aos nove meses), perceberam que a perda gestacional era um assunto pouco falado e com pouca literatura disponível.
"O grupo me ajudou a validar meu luto da primeira perda, a perda gestacional. Eu mesmo não validei minha dor por conta da sociedade que não enxerga como um verdadeiro luto. Sofri em silêncio", conta Sheila. Michelle conta que é importante conversar com quem passa pela mesma dor. "Nos sentimos acolhidas, ouvidas. Podemos contar nossa história e falar do nosso sentimento sem julgamento".
O tema ainda é tabu, inclusive entre profissionais da saúde. Para chamar a atenção sobre a importância de tratar a perda gestacional e neonatal de forma mais humanizada e honrar a memória dos filhos que partiram, o grupo abraça a campanha internacional Wave of Light (em português, Onda de Luz) neste domingo, às 19h, na Praça Luiza Távora. Neste dia e horário, pais, familiares, amigos e apoiadores da causa de todo o mundo acendem velas em uma corrente de amor pelo Dia da Sensibilização à Perda Gestacional.