Uma casinha na região da Santa Cecília abriu as portas aos galerosos. Com parte do DNA cearense, o espaço aproveita o interesse maior do público pela leitura desde a pandemia e estimula o direito à cidade e o senso de comunidade
Já faz uma década que a arquiteta cearense Larissa Viana, de 40 anos, se mudou para São Paulo. Mas não escolheu qualquer São Paulo. Há muitas cidades dentro da capital econômica do país, e ela encontrou sua bolha na região da Santa Cecília, aquele dos ceciliers, os moradores de classe média que amam plantas e são descolados. Foi lá que, nos últimos 10 anos, Larissa viveu em vários apartamentos e abriu uma livraria pequena numa época em que as gigantes estão fechando. Com o pensamento no direito à cidade e o prazer de vivenciar São Paulo a pé, ela se prepara para receber muitos autores e leitores cearenses na casinha que traz todo o sentimento do mundo - e a coragem que ela levou do Ceará.
"A gente teve, eu e a cidade, muitos momentos e processos distintos. Teve momentos em que eu me senti muito violentada e hostilizada nessa cidade. E também momentos de muito acolhimento, amparo, amor, solidariedade", ela conta. Tanto que, dez anos depois, ela ainda não sabe se gosta da cidade. "Gosto da Santa Cecília e minha vida se realiza muito aqui", diz.
Vivendo em um bairro em que as pessoas realmente andam a pé e aproveitando o interesse maior do público pela leitura desde a pandemia, Larissa se uniu com a amiga Tamires Lima, também arquiteta, e criou a livraria Sentimento do Mundo. O nome é uma alusão ao poema de Carlos Drummond de Andrade, do qual as duas sócias gostam muito. Não é um lugar só para comprar livros, mas para desacelerar o tempo, tomar um café e se sentir livre. "A gente acredita na transformação e na potência do espaço e pelo espaço", afirma.
A crença levou as duas amigas salvas pela literatura durante os tempos difíceis de pandemia a alugar uma charmosa casinha acima do nível da rua e reformá-la com um orçamento muito pequeno para integrar os espaços. A marcenaria ficou por conta das duas sócias e dos amigos, que se organizaram em mutirão para tirar o sonho do papel.
"Sentimento do Mundo é um poema do Drummond, que começa falando: Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo. Então, já fala muito sobre ser cearense. Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, a vontade de fazer acontecer, que é a coragem que a gente tem"
Foi assim que nasceu a livraria Sentimento do Mundo, com senso de comunidade e aconchego. É lugar para tomar água potável de graça nos dias de calor extremo, mas também para tomar um cafezinho grátis para embalar uma boa conversa, tal qual fazemos no Ceará. Larissa acredita que a potência dos encontros se dá também pela literatura. E espera, em plena Santa Cecília, promover muitos encontros com cearenses. Construir comunidades várias, no eixo e fora do eixo. "Temos obras de autores cearenses. Jarid Arraes, Lira Neto, Socorro Acioli, Xico Sá. Queremos, inclusive, fazer um bem bolado com todos eles, fazer um evento, uma atividade. Já fica aí o convite", ela diz.
Sentimento do Mundo é uma casinha charmosa com piso de taco, uma escada instagramável e parte do seu DNA é cearense. Está sempre recebendo uma exposição, um clube de leitura, um pocket show. Um lugar para circular e pra sonhar, estimular o senso político, se agalerar na megalópole.
É um dos sonhos de Larissa, menina criada no interior do Ceará, filha de funcionários públicos que decidiu ousar no comércio. Ela ri. Estava levemente preocupada de contar ao pai sobre o novo empreendimento, feito com amor e visão de mercado. Contou que era na região da Santa Cecília, lugar de classe média universitária. "Este não é nesse bairro aí que mora um monte de estudante da USP? Pois vai dar bom minha filha", encorajou. Larissa ri. Vida longa ao novo espaço para ler, pensar e se agalerar.