Nego Gallo: 'Há artistas e artistas. Eu já nasci cancelado pelo racismo'

O movimento negro levou um menino que veio das comunidades do Rio de Janeiro para morar no Moura Brasil ao mundo do rap. É de lá, com versos, que o rapper Nego Gallo hoje fortalece sua voz

Legenda: Nego Gallo, um rapper da costa oeste de Fortaleza que de vez em quando desce o país até o Sudeste para influenciar na cena nacional
Foto: Beatriz Jucá

Carlos Eduardo da Silva tem falas fortes, mas não quer pesar. Aos 49 anos, está preocupado em ser honesto consigo mesmo enquanto a inquietação lhe revira a alma por dentro. Nos últimos anos, viu a polarização política incendiar a sociedade e voltou os olhos para si. "Eu vivi esses anos. Entendo que houve movimentos para que pessoas como eu fossem apagadas da história. Não posso deixar isso barato", diz, sentado em um café em Fortaleza, com o capacete da moto acomodado no braço.

Você talvez já o conheça pelo nome artístico: Nego Gallo, um rapper da costa oeste de Fortaleza que de vez em quando desce o país até o Sudeste para influenciar na cena nacional. Foi o movimento negro que o levou ao rap e é de lá que hoje ele fortalece a voz.

O menino que cresceu na comunidade da Penha, no Rio de Janeiro, chegou em Fortaleza aos 12 anos com a mãe, que buscava a parte cearense da família na comunidade do Oitão Preto, no bairro Moura Brasil. Dentro do táxi, Carlos se assustou quando o motorista disse: "Só vou até aqui". Aquela noite foi a primeira vez que dormiu numa rede. No dia seguinte, acordou e descobriu que ali pertinho estava o mar. "Valha meu Deus, o povo mora do lado da praia!", admirou-se.

Foi o início de um longo caminho para que ele conhecesse mais de si e da sua ancestralidade. Sabia que estava num lado do país que era visto como um lugar de fome. "Eu pensava: como minha mãe saiu de um lugar para outro que não tinha nada? Meu pai dizia que a gente ia morrer de fome, e eu tinha medo. A miséria aqui era uma coisa que doía", lembra.

Veja também

Naquela época, ele viu as brigas de gangue crescerem na comunidade. Um dia, conversando com um amigo, ouviu algo que lhe deixou pensativo: "Tá vendo os caras que estão se matando? Só tem preto". Gallo sentiu aquela inquietação bater e foi apresentado ali ao movimento negro. Leu livros, tocou no bloco Afro pelo centro da cidade, percebeu-se como jovem preto da favela. 

"Quem formou sobre minha negritude foi o Olodum, o Ilê Aiyê. Não tinha um comunicado do Sudeste para cá", ele ri. "Era banda Reflexu's. O grande lance era cantar Madagascar na sala de casa", conta. Era um tempo de não explicar a negritude. Ela só era, com as tranças nagô, as falas, o longo tempo circulando pelas casas de candomblé.

No mergulho pelo movimento negro com os amigos da costa oeste, Gallo era convidado a mergulhar no rap. "Minha formação musical não era essa", diz, apegado às referências do funk carioca. "Eu não gostava do rap porque não tinha as minas, só os caras", conta. Mas aí foi convidado pelos amigos do movimento a escrever uma letra, e finalmente aceitou. O trabalho rendeu quatro faixas para um disco do grupo Cultura de Rua.

Nego Gallo
Legenda: Nego Gallo
Foto: Clara Capelo

Foi aí que começou a história do Gallo com o rap, que o levou depois ao grupo Costa a Costa junto com o amigo Don L. Enquanto via gente replicar o rap americano, Gallo sempre se preocupou em imprimir no que faz sua latinoamericanidade. Viveu hiatos na arte. Mergulhou no trabalho como educador social com moradores em situação de rua. Homem preto crescido na periferia, nunca deixou de se ver como trabalhador antes do artista.

"Há artistas e artistas. Eu já nasci cancelado pelo racismo. Não era nem para eu estar aqui. Minha vida foi margeada por formas para impedir meu crescimento: seja pela violência policial ou pelo racismo que coloca você nas piores condições. E nunca fui um rapper de abrir mão deste lugar de trabalhador. Nunca me vi em um lugar diferente pra fazer arte", diz.

Desde a pandemia, ele aguça o olhar para dentro de si. E vê a extrema direita influenciar a favela, o rap e a cidade, mas também tem cada vez mais se perguntado se está sendo honesto em sua proposta pessoal como ser humano. Que caiam as máscaras. Gallo tem palavras fortes, mas não quer pesar. "Acho linda a música do Caetano: Sou um preto norte-americano forte, com um brinco de ouro na orelha. Mas o que me toca mesmo é Eu prefiro andar sozinho, deixem que eu decida a minha vida", diz, em alusão à canção de Belchior.

Foto: Clara Capelo

É assim que ele planeja tentar projetar a voz a partir daqui para chegar ao país: vai descer para São Paulo em breve. Sair do hiato musical em que mergulhou mais uma vez durante a pandemia. Ele sabe que precisa vencer o racismo estrutural, diz que não é exatamente o arquétipo do cara que vai fazer propaganda do resort ou do óculos da moda agora.

Mas reconhece que conseguiu ganhar espaço em produções junto com Don L nas plataformas digitais. Tem uma letra no Museu da Língua Portuguesa. Vai lá enfrentar os entraves de sempre e buscar espaço sem tirar os pés do seu chão. "Agora é o Nego Gallo. É uma conquista da independência. Não quero descer pra pesar, mas para ter um alívio", finaliza.

Este conteúdo é útil para você?